Euclides André Mance
Globalização, Subjetividade e Totalitarismo
- Elementos para um estudo de caso: O Governo Fernando Henrique Cardoso
Copyright do Autor © 1998



Capítulo III
(Seções 20 a 31)

20 O Uso Eleitoral da Máquina Administrativa

Sob os regimes globalitários, a democracia é mantida formalmente, mas substancialmente o Estado se vale de todos os mecanismos disponíveis, em sua maioria legais mas também alguns ilegais, para manter a hegemonia de seu projeto. Elencaremos aqui algumas ações legais e outras de legalidade duvidosa desenvolvidas com a finalidade de garantir a eleição de Fernando Henrique Cardoso e a aprovação de uma emenda constitucional, permitindo-lhe a reeleição; elencaremos também ações governamentais voltadas à obtenção de um segundo mandato presidencial.

a) O uso eleitoral da Máquina Administrativa em 1994

Durante a campanha presidencial de 1994 surgiram muitas denúncias documentadas sobre a utilização de verbas públicas com a finalidade de favorecer Fernando Henrique Cardoso (491).

A revista IstoÉ, publicou uma relação de itens nos quais percebia-se a máquina do governo atuando eleitoralmente de modo a favorecer o candiato governista. O texto dizia: "Caravana do Real: Dias antes ou depois de a Caravana da Cidadania de Lula passar, o governo liberava recursos para o município. Petrolina (PE) recebeu R$ 838,5 mil. Obras Públicas: Num bilhete o ministro Alexis Stepanenko pediu a inauguração de hidrelétrica de Xingó antes da eleição. São Francisco: O ministro Aluízio Alves admitiu que o projeto de desvio das águas do rio São Francisco é eleitoreiro. Tarifas: O governo reduziu o Imposto de Importação de combustíveis. Com isso prepara caminho para uma redução no preço. Terrenos: Itamar vai doar terrenos da União para fazer assentamentos urbanos aos sem-teto. Casas Populares: Itamar determinou à Caixa Econômica Federal que facilite a venda de 300 mil imóveis populares. Menos Imposto: Na reedição da MP do Real, o Executivo elevou a dedução por dependente para o Imposto de Renda. Poupança: O Banco Central aumentou o ganho das cadernetas de poupança, tornando-as mais competitivas." (492)

Desses casos, três foram os mais graves. O ministro Aluízio Alves chegou a declarar à imprensa, segundo a revista citada, que o projeto de desvio do Rio São Francisco, estimado em dois bilhões de reais, teria como objetivo eleitoral favorecer o candidato Fernando Henrique Cardoso. Por sua vez, o ministro Alexis Stepanenko despachou bilhetes - um dos quais teve sua reprodução em fac-símile divulgado pela imprensa - determinando a seus assessores que obras do ministério fossem ajustadas ao calendário eleitoral, com a mesma finalidade. Em um desses bilhetes, o ministro afirmava que a obra atenderia a uma promessa de campanha feita pelo próprio Fernando Henrique. A promessa havia sido feita no dia 08 de julho, em Sinop, Mato Grosso, oportunidade em que o candidato se comprometeu a instalar uma linha de transmissão de energia elétrica, a fim de solucionar o problema de falta de luz no local. Dias depois, Itamar Franco assinou a medida provisória 584, liberando R$ 15,4 milhões para a realização da obra, isto é, cumprir a promessa de FHC. No dia 26 de julho, assinou um decreto determinando estado de calamidade na região, o que possibilitou liberar as verbas com maior rapidez. (493) Por sua vez, o Ministro do Planejamento, Beni Veras, pediu prioridade para a execução da obra (494). Em outro bilhete sugeriu ao presidente Itamar que comparecesse à inauguração de um porto em Sergipe tendo em vista "reforçar a candidatura de Fernando Henrique". (495)

Outro caso grave a ser destacado, refere-se "aos recursos das transferências voluntárias da União para os Estados e municípios que inundaram o País a partir de junho, particularmente nos municípios por onde passou Lula durante a Caravana da Cidadania no vale do rio São Francisco" (496) - como noticiou a revista IstoÉ. A solicitação encaminhada para prestação de esclarecimentos à câmara, contudo, concedeu um prazo de 30 dias para a resposta, que a faria coincidir com a ante-véspera da eleição, quando não haveria mais tempo hábil para questionar os esclarecimentos e informar satisfatoriamente a população antes do pleito eleitoral.

Vale ainda destacar que, um bom tempo depois de Fernando Henrique ter deixado o ministério da Fazenda, as novas notas de Real eram ainda impressas com a sua assinatura, como se ainda fosse ministeo.

Frente a todos esses fatos - e considerando ainda que o Governo de Joaquin Roriz, em Brasília, havia utilizado máquinas públicas para preparar o terreno onde seria erguido um palanque para realização de comício de Fernando Henrique (497) - o corregedor-eleitoral de Brasília, Jerônimo de Souza, pedindo ao TSE a abertura de um processo contra o candidato, afirmou: "Tudo isso caracteriza abuso de poder econômico e de autoridade e práticas eleitorais desleais". (498) Afirmou também que Itamar exportava mau exemplo para os estados: "A imprensa provou que a máquina federal está engajada na campanha do candidato oficial e, se o governo faz isso, os governos estaduais ficam tentados a fazer o mesmo." (499) Conforme Jerônimo de Souza, o uso da máquina "pode ter conseqüências fatais em um país de instituições frágeis como o nosso". (500) Por sua vez, Aristides Junqueira, na condição procurador-geral eleitoral solicitou investigações sobre estes episódios. O corregedor-geral eleitoral Flaquer Scartezsini, abriu inquérito concedendo 5 dias para a defesa de Fernando Henrique (501). Os advogados de defesa do candidato pediram, entretanto, que seu depoimento ficasse para depois das eleições, justificando que os seus adversários pretendiam transformar a ida de Fernando Henrique ao TSE em um escândalo: "Será criado, desnecessariamente, um estrondoso fato político a poucos dias da eleição", dizia o ofício (502). A Lei de Inelegibilidades, contudo, não apenas previa, nesses casos, a cassação de registro do candidato mas, inclusive, a cassação do futuro mandato caso o candidato fosse eleito. Como se vê, novamente a ação jurídica resultou em nada substancial.

b) O Caso da "compra de votos" para aprovação da emenda da reeleição

Embora possa emitir medidas provisórias em abundância, com elas o governo não pode alterar a Constituição. Assim, no caso de matérias que impliquem alterações constitucionais, ele necessita da aprovação do Congresso por ampla maioria. Aprovar a possibilidade de sua própria reeleição foi um desses casos - que pode ser analisado sob o aspecto político e sob o aspecto jurídico. Politicamente, o episódio da aprovação da emenda constitucional que permitiu a reeleição do presidente, governadores e prefeitos, foi eivado de denúncias, com gravações de conversas telefônicas sobre pagamentos feitos a parlamentares em troca de votos favoráveis à sua aprovação. Mas, novamente, o judiciário nada fez substancialmente.

Curiosamente, até o início do mês de janeiro de 1997, apenas 228 parlamentares eram favoráveis à emenda; contudo, no dia da votação - 27 dias depois - 336 a apoiaram no primeiro turno, recebendo posteriormente 368 votos no segundo turno. Antes mesmo de sua aprovação, vários jornais estamparam denúncias de que votos estavam sendo trocados por favores, fisiologismos, projetos pessoais e, inclusive, corrupção.

Inicialmente um órgão da CNBB acusou o governo de ter comprado votos para garantir a aprovação daquela emenda. A presidência, então, divulgou uma nota afirmando que aquela acusação era "falsa, desabonadora para o Congresso e insultuosa ao governo " (503). Na nota ainda se lê que "com o avanço da democracia, com a imprensa livre, fica mal, muito mal, que documentos com tanta irresponsabilidade sejam tomados a sério. O governo está convencido de que a má-fé ou a desinformação de seus autores não comoverá a opinião pública e muito menos os eminentes prelados que compõem a CNBB" (504). Sérgio Motta, então, respondeu com veemência as acusações defendendo o governo. Em seguida, contudo, a Folha de São Paulo divulgou fitas gravadas com telefonemas dos deputados Ronivon Santiago e João Maia, ambos do Acre, envolvendo os governadores Amazonino Mendes (AM) e o governador Oleir Cameli (AC). As conversas gravadas caracterizariam a compra de votos, negociações em que Sérgio Motta teria pago aos parlamentares para votar favoravelmente à reeleição. A cúpula do PFL, então, expulsou rapidamente do partido ambos os deputados, reconhecendo - com o gesto - a gravidade e, talvez, a veracidade das denúncias. Na seqüência acelerou-se a tramitação da emenda da reeleição.

A denúncia feita pela Folha de São Paulo e o material que a suportava eram tão contundentes que não havia como se dizer que o próprio Palácio do Planalto não soubesse do esquema. Em uma das fitas, conforme o jornal, João Maia dizia: "Pelo que sei bem é o seguinte: eram os (R$) 200 (mil) do Serjão, via Amazonino, que era a cota federal, aí do acordo... ele falou, prá todo mundo, aí meio mundo aí. (...) Esse dinheiro do Amazonino era o dinheiro que já estava aí... Que o Serjão tinha acertado. Mas, como ele soube, quer dizer, acabou pegando o dinheiro do Amazonino para pagar o cheque dele." (505) Os cheques, todavia, nunca foram usados. Alguns dias antes da votação da emenda no primeiro turno na Câmara - conforme o jornal - eles foram trocados por dinheiro vivo. Ronivon Santiago, segundo o mesmo veículo informativo, teceu considerações sobre o dinheiro da transação: "quem deu foi o Sérgio Motta ao Amazonino, parece." (506) E sobre o ambiente na Câmara, envolvendo a aprovação da emenda, afirmou: "Eu tô sabendo que aquele negócio ali foi muita gente. Todo mundo pegou na faixa de 200, 300... Todo mundo pegou... Teve gente que negociou pagamento de banco, negociou todo deputado aí... todo mundo". (507) Segundo o jornal, apoiado nas gravações, "a barganha pelo voto previa receber R$ 200 mil do governo federal e outros R$ 200 mil do governo do Estado do Acre." (508)

É difícil não considerar que o Governo Federal - principal interessado na aprovação da medida - não estivesse envolvido com o episódio. Fato é que, alguns dias antes da aprovação da emenda, os deputados e governadores do Amazonas e do Acre, envolvidos no escândalo, foram recebidos por Fernando Henrique e seus ministros a fim de terem uma "conversa sobre obras", como noticiou a imprensa. Todos os envolvidos, entretanto, negaram que tenha ocorrido qualquer ato imoral ou ilegal. Somente uma CPI poderia investigar de maneira mais aprofundada tudo o que se passou com as verbas públicas. Contudo, a base governista - que é a maioria do congresso - inviabilizou a instalação da CPI e organizou uma comissão, sem maiores poderes, para apurar o caso em sete dias. Nenhum dos corruptores, porém, foi identificado ou punido.

Mesmo que não tivesse havido corrupção na aprovação da emenda, é preciso destacar juridicamente, contudo, que o parágrafo 5º do artigo 14 da Constituição em, vigor antes da aprovação da emenda da reeleição, determinava a inelegibilidade do Presidente da República, dos Governadores e dos Prefeitos para os mesmos cargos, no período subseqüente. Isto significa que os governantes que foram eleitos sob a vigência daquela lei, tinham seus mandatos então sujeitos a ela. Em outras palavras, esses governantes foram eleitos sob uma lei que os impedia de reeleger-se, no pleito eleitoral subseqüente, para um novo mandato no mesmo cargo. Mesmo havendo a mudança constitucional, o seu mandato está sujeito à lei antiga, do mesmo modo que um crime deve ser punido com a pena que a ele estava estipulado quando foi cometido. Permitir a reeleição para governantes que atingiram tal posto sob a legislação anterior é introduzir a possibilidade do arbítrio, de que as leis possam ser mudadas alterando estatutos jurídicos anteriores aos quais os indivíduos estavam submetidos. É como se o governo decidisse alterar as cláusulas dos contratos de financiamentos da casa própria e todos os que já têm um contrato assinado tivessem que se submeter à alteração daquilo que fora estabelecido.

Esse mesmo expediente jurídico foi utilizado por Alberto Fujimori. Ele havia sido eleito por uma constituição que não permitia a sua reeleição. A constituição foi alterada permitindo que os governantes fossem reeleitos, para um novo mandato consecutivo. Fujimori então se reelegeu sob a nova constituição. Argumentou então que sob a constituição vigente havia sido eleito somente uma vez e que poderia novamente concorrer, legal e legitimamente, a uma segunda reeleição - que, de fato, já era uma terceira. Juridicamente Fujimori foi tão beneficiado quanto Fernando Henrique, por uma nova lei que não regia o seu primeiro mandato.

O mais grave, entretanto, é a concentração de poder cada vez maior nas mãos de um único homem. A emenda da reeleição tornou o poder político no Brasil ainda mais autoritário, aumentando o poder de pressão, barganha e conchavo do presidente, de governadores e prefeitos. Sob esse autoritarismo, as instituições democráticas são mantidas formalmente, enquanto o Executivo - através das medidas provisórias - usurpa poderes do Legislativo, além de pressionar o Judiciário. Progressivamente vai se configurando no país, cada vez mais, um autoritarismo civil de feição globalitária.

A medida da reeleição, também aprovada em países como a Argentina e o Peru, visa dar continuidade à implementação do modelo neoliberal nesses países, com as peculiaridades do Consenso de Washington, que já analisamos. O mais grave é que neles, e também no Brasil, verifica-se a quebra de direitos historicamente assegurados pelos trabalhadores e a fragilização da democracia em níveis distintos, uma vez que a alternância nos poderes, uma importante característica sua, por exemplo, passa a ter prazos extendíveis por quase uma década, com governantes permanecendo no poder por oito anos.

Do ponto de vista do marketing eleitoral, entretanto, é muito mais fácil manter a imagem de um produto que tem aceitação no mercado, do que apresentar uma imagem nova. É mais fácil induzir a sociedade a consumir uma marca que ela já conhece, do que ter de apresentar uma nova marca para enfrentar uma terceira, retirando a primeira do mercado. O que importa é manter o signo. Não importa que na prática o governo não tenha realizado o que se propôs a fazer nas áreas sociais, no crescimento econômico, na geração de empregos, etc. O que importa é iludir a sociedade de que a estabilidade da moeda é duradoura, de que o Brasil é diferente dos Tigres Asiáticos e de que neste país os especuladores não terão vez - sendo que, de fato, quem mais enriqueceu proporcionalmente durante todo o governo Fernando Henrique Cardoso foram os especuladores no sistema financeiro (509). FHC é um signo capaz de servir de representação tanto do PFL quanto do PSDB; dificilmente outro objeto dinâmico teria tais atributos para fundir em uma única personalidade um signo de esquerda e uma política neoliberal, globalitária, de direita.

Por outra parte, as eleições municipais de 1996 provaram que bons programas poderiam ter continuidade, mesmo sem a reeleição dos mesmos governantes. Como já destacamos, é a alternância dos partidos no poder, a rotatividade dos governantes e o não-continuísmo, o que fortalece a democracia. A medida da reeleição, todavia, desconsiderou esses elementos.

Novamente, embora a gravidade do caso e das provas, não apenas não houve a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para averiguá-lo, como também não foi investigado de maneira profunda através de outros mecanismos. A única conseqüência do episódio foi a renúncia dos deputados Ronivon Santiago e João Maia. Renunciando, eles puderam manter intactos os seus direitos políticos para concorrerem nas eleições seguintes, o que não poderia ocorrer se tivessem sido cassados. Como afirmou o jornalista Fernando Rodrigues, "ninguém foi punido". Por sua vez, o ministro das Comunicações, Sérgio Motta, que tinha enviado em maio ao Supremo Tribunal Federal, pedidos de explicações a ambos os deputados sobre terem-no citado nas suas conversas como um dos intermediadores da compra de votos para a aprovação da emenda da reeleição, recuou em setembro da sua decisão de interpelá-los judicialmente, e pediu a extinção dos processos que haviam sido abertos por sua solicitação.

Na mesma época desses episódios a mídia passou a denunciar que Luís Ignácio Lula da Silva, um dos líderes das oposições, morava de favores na casa do proprietário de uma empresa que prestava serviços de ampliação de arrecadação de impostos nas prefeituras do PT e que em troca desses serviços Luiz Ignácio estaria recebendo alguns privilégios. As atenções foram desfocadas e nada se apurou com relação à compra de votos para a aprovação da medida que permite a reeleição de presidentes para mandatos sucessivos e que favoreceu Fernando Henrique Cardoso. Neste último caso, trata-se da técnica de focalizar outro cenário para desviar a atenção do anterior.

c) O uso eleitoral da Máquina Administrativa na eleição presidencial de 1998

Neste item analisaremos apenas dois elementos: a concepção e execução do Programa Brasil em Ação e a utilização da máquina pública pelo governo para interferir na convenção do PMDB, tentando impedir que este partido lançasse uma candidatura própria à presidência e forçando-o a apoiar o próprio Fernando Henrique naquele pleito.

Em junho de 1997, alguns jornais apresentaram informações documentadas mostrando que o calendários de obras do governo estava sendo alterado a fim de fazê-lo coincidir com o calendário eleitoral de 1998, atrelando a inauguração das obras a este último. Dos projetos com conclusão definida, o cronograma previa três inaugurações em 1997, dezesseis em 1998 até às eleições, duas em 1999, uma no ano 2.000 e outra em 2001 (510). Conforme o jornal Folha de São Paulo, "o conjunto de 42 projetos prioritários do governo, Brasil em Ação, transformou-se na principal peça de campanha de reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso e deve movimentar o mercado de empreiteiras e a agenda de FHC. Projeto prevê investimentos de R$ 4,6 bilhões em transporte. Pelo menos sete obras devem ser inauguradas até a eleição." (511) O Ministério do Planejamento, que já coordenava o projeto, passou a controlar também a publicidade oficial do mesmo. Conforme Sérgio Amaral, porta-voz do presidente e secretário de Comunicação, seriam gastos em publicidade para divulgar o "Brasil em Ação" aproximadamente R$ 7 milhões a R$ 8 milhões, somente até dezembro de 1997 (512). Nesta perspectiva de marketing, o brasão da República, que indicava as obras do Governo Federal foi substituído por um outro símbolo, uma bandeirinha brasileira estilizada com ondulações. Com a publicidade o governo desejava dar "visibilidade" às obras.

Mais do que isso, a estratégia semiótica do governo visava mostrar que se o presidente, nos dois primeiros anos do mandato, esteve envolvido com a manutenção da estabilidade da moeda, buscando efetuar reformas que dessem sustentação ao Plano, nos dois anos seguintes ele passou a desencadear ações que promoviam o crescimento do país, perceptível com a realização e inauguração de obras, que provariam o sucesso de sua política, gerando muitos signos indiciais modelizáveis em sua campanha. Como diz o jornalista Nelson de Sá, " ‘Brasil em Ação’ marca um FHC com ‘ações’, não mais sentado na estabilização e no Real." (513) Esta estratégia de marketing, contudo, se deve a Dick Morris, publicitário de Clinton que, com campanhas publicitárias, salvou-lhe o primeiro mandato e criou suportes sígnicos para levá-lo ao segundo. Esta tentativa de separar o mandato do presidente brasileiro em duas fases recobertas por dois signos distintos fica evidente em uma página disponibilizada na Internet pela Embaixada do Brasil nos Estados Unidos: "Nos dois últimos anos, vimos construindo as bases de um crescimento sustentável e socialmente benéfico para a grande maioria dos brasileiros. Sustentável e socialmente benéfico por três razões interligadas: i) apoiar-se na estabilidade econômica; ii) estar associado a mudanças profundas, como a abertura econômica, que promovem ganhos genuínos de competitividade; iii) vir acompanhado da progressiva recuperação da capacidade do Estado de executar políticas sociais eficientes, em bases descentralizadas e não clientelistas." (514) A etapa seguinte do governo, contudo, é caracterizada como promotora da transição para um novo modelo de desenvolvimento nacional, já se tendo superado a fase mais dura do ajuste econômico: "O processo de construção de um crescimento sustentável e socialmente benéfico entra agora em fase de consolidação dos avanços obtidos e preparação para avanços ainda maiores. A percepção do caráter positivo de nossa transição para um novo modelo de desenvolvimento; a maturação de muitas iniciativas deflagradas anteriormente no âmbito do setor público e das empresas privadas; a superação do período mais duro do ajustamento pós-estabilização; o reconhecimento do imenso potencial de expansão da economia brasileira; e a constatação inequívoca da estabilidade de nossas instituições políticas - todos esses fatores somados criam para o Brasil a oportunidade histórica de tornar-se um espaço privilegiado de investimentos no âmbito da economia mundial." Para a realização disto tudo, entretanto, seria necessário, entre outras coisas, "orientar o processo orçamentário no biênio 1997-1998, com vistas a assegurar recursos para as prioridades definidas."

A semiose adotada para criar-se a imagem de que muito já se fez e de que muito se está fazendo - e que para completar o que está fazendo é preciso um próximo mandato de Fernando Henrique que lhe dê continuidade - foi a de dividir signicamente o "Brasil em Ação" também em duas partes. Conforme Antônio Kandir, no Brasil em Ação II o governo faz projetos já para um segundo mandato do presidente. Como noticiou o Jornal do Brasil, "segundo o ministro, através do Brasil em Ação II o governo fará investimentos para ‘romper os limites do desenvolvimento’, eliminando gargalos ou ‘ligações perdidas’, como a Transnordestina, que exigem obras de menor porte mas definitivas para integrar estruturas existentes". (515) Esta obra liga duas linhas de transporte ferroviário no Ceará e em Pernambuco.

O Tribunal de Contas da União, por sua vez resolveu investigar o programa Brasil em Ação. Em documento entregue ao Congresso Nacional em 18 de setembro de 1997, o TCU listou 53 obras do governo com indícios de irregularidades. Segundo o documento - nas palavras do jornalista Oswaldo Buarim Jr - "algumas obras estão paralisadas ou não receberam nenhum dinheiro do Tesouro Nacional neste ano, mas 36 obras listadas pelo TCU já consumiram R$ 423 milhões até a conclusão da auditoria realizada." (516) Entre as obras com irregularidades havia projetos do "Brasil em Ação". A auditoria, que foi realizada "in loco", possibilitou a documentação com fotografias e a realização de levantamentos junto aos próprios canteiros de obras.

Entre estas obras estavam a conclusão da eclusa de Jupiá - obra necessária para o estabelecimento da hidrovia Tietê-Paraná -, que foi retomada, restabelecendo-se um contrato de 1988 sem a providência de um termo aditivo que renovasse os seus critérios e a construção da BR-174, ligando Manaus à Venezuela. Segundo o TCU, houve uma ilegal prorrogação de contratos e as despesas foram fracionadas para serem enquadradas em tipos de licitação que são diferentes das exigidas em lei para este tipo de obras. Conforme o jornalista citado, "o TCU analisou 96 obras, selecionadas de acordo com critérios de regionalização e de facilidade, para identificar as despesas no Orçamento da União de 97. O índice de irregularidades encontrado pelo tribunal é de 55%." (517) Para investigar aprofundadamente o caso, o TCU abriu 16 processos. Em razão disso, alguns dados poderiam ser alterados com um melhor detalhamento.

A alteração do cronograma das obras, feita desse modo, resultou em que algumas delas fossem aceleradas, possibilitando que o presidente as inaugurasse ainda como campanha eleitoral (518), uma vez que a partir de 4 de julho até 25 de outubro o presidente estaria proibido, conforme a legislação, de inaugurá-la. Assim, somente em uma semana de fevereiro foram quatro inaugurações de obras deste mesmo programa em Sergipe, Ceará, Maranhão e Pernambuco. (519) O presidente, contudo, afirmou que o "Brasil em Ação" não tem objetivos eleitorais: "É o cumprimento de compromissos da campanha de 94. Como poderia ser da próxima?" (520) A resposta, entretanto, é muito adequada. Com ela Fernando Henrique diz que os compromissos da campanha de 94 estão sendo cumpridos, mostrando que todos os que nele depositaram a sua confiança não se equivocaram. Por outro lado, a pergunta sugere que as obras inauguradas agora não podem ser as obras da próxima campanha. A imagem que a expressão agencia é a de Fernando Henrique inaugurando as obras prometidas na próxima campanha. Isto é, se ele as inaugura é porque nela se elegeria. Em ambas as imagens mantêm-se a estratégia semiótica de vincular-se Fernando Henrique à realização de obras.

O próximo passo sígnico é associar tais obras com a geração de empregos. Em outubro de 97, Antonio Kandir, Ministro do Planejamento, acabou desautorizando os publicitários da campanha de Fernando Henrique, ao afirmar que está "errado tecnicamente" dizer que o "Brasil em Ação" gera empregos. O programa previa assegurar 3,3 milhões de empregos em 1997 e 3,7 milhões em 1998, dos quais apenas 800 mil seriam diretos: "Embora nós acreditemos que haja geração afirma Kandir -, só dá para falar em empregos assegurados" (521). Por outro lado seria possível afirmar, segundo o ministro que sem o programa, muitos empregos vinculados aos diversos projetos não estariam assegurados. Para colaborar na divulgação do Programa, o ministro pretendia apresentar onze obras vinculadas ao "Brasil em Ação" em uma conferência que realizaria em novembro nos EUA. Conforme o jornalista Igor Gielow, ao final da entrevista, " Kandir deu um alento aos publicitários e cunhou um candidato a slogan no ano que vem. ‘Um em cada 20 empregados brasileiros trabalha no ‘Brasil em Ação’" (522).

A tal ponto chegou a intervenção da máquina pública na sucessão federal que recursos do governo foram utilizados não apenas para aprovar a emenda da reeleição, mas também para inviabilizar o lançamento de candidaturas aà presidência por outros partidos. Neste aspecto, a análise da interferência do governo buscando inviabilizar o lançamento de uma candidatura própria do PMDB é exemplar. O episódio pode ser dividido em quatro capítulos: inicialmente ocorreu o bloqueio da liberação de verbas federais para obras e serviços que atendessem bases de parlamentares e governadores do PMDB; em seguida acenou-se com a liberação de verbas em troca do apoio ao não-lançamento de candidatura própria do PMDB a presidência; no terceiro momento ocorreu o episódio da convenção propriamente dito, com ações sendo impetradas, posteriormente, pretendendo anulá-la e, por fim, a convenção e a convenção oficial do PMDB para homologação do resultado anterior. Acompanhemos alguns momentos desse processo.

Em janeiro de 98 o senador Roberto Requião e seu irmão o deputado Renato Requião, denunciaram o uso político de verbas pelo governo federal. Como prova, apresentaram uma fita com conversas telefônicas gravadas entre o deputado Requião e o assessor do Ministério da Saúde, Marcelo Azalin. Na fita Azalin afirmava que o atendimento das emendas do deputado ao Orçamento da União dependiam de um prévio acerto político junto ao Palácio do Planalto: "O senhor tem que conversar com o Luiz Carlos Santos, da Articulação Política, porque a informação que a gente tem aqui é que tem um problema político lá no Palácio do Planalto (...) A ordem dada é essa. Nesse problema político, o senhor conversando com o ministro Luiz Carlos Santos ou com o Marco Aurélio Santullo (chefe de gabinete), ele passa um fax para nós e liberamos imediatamente" (523) Conforme o senador Requião, a gravação comprovava a existência de perseguição política do governo federal a parlamentares do PMDB, tendo em vista a convenção do partido: "Dessa forma, - disse o senador - querem cooptar o PMDB, ganhar a convenção, evitar candidaturas à Presidência da República. Querem conduzir o processo político na forma sórdida da compra de votos que presidiu a votação da reeleição". (524)

De fato, dias antes da convenção do PMDB que definiria se o partido teria, ou não, candidato próprio às eleições, os jornais noticiavam os acordos prevendo repasse de recursos para estados e regiões cujos parlamentares do PMDB votassem contrariamente ao lançamento de uma candidatura própria, do partido.

Em uma matéria intitulada "Apoio de PMDB-SC a FHC custa R$ 150 milhões - Cálculo reúne pedidos do governador Paulo Afonso Vieira, que diz ter 28 votos na convenção", os jornalistas Lucio Vaz e Luiza Damé, afirmam que "a cúpula da ala governista do PMDB já avaliou quanto custarão os 28 votos que o governador Paulo Afonso Vieira (SC) diz ter sob controle: R$ 150 milhões para investimentos em obras no Estado. Os governistas confiam que a atração dos peemedebistas por verbas e cargos federais garantirá a vitória na convenção nacional de domingo." (525) As negociações envolviam a rolagem da dívida de Santa Catarina, adiantamento - junto ao BNDES - referente a privatizações e recursos do Orçamento da União para serem aplicados em estradas e habitação.

Utilizando a máquina pública, o governo conseguiu, assim, imprimir o rumo desejado à convenção. O preço da vitória, contudo, foi alto ficando um pouco acima do previsto. Conforme os jornais, "governadores e delegações inteiras trocaram seus votos por liberação de verbas. O governador Paulo Afonso Vieira (SC) trocou 28 votos por um adiantamento de R$ 200 milhões do BNDES. O presidente do PMDB do Amapá, senador Gilvan Borges, afirmou que a sua delegação ficou do lado de FHC porque o Estado ‘depende muito do governo federal’." (526)

Após esse processo de cooptação, com recursos da União, de convencionais do PMDB visando garantir que o partido não tivesse candidato a presidente, a ala pró-FHC do PMDB contratou equipes de "pseudo-militantes" para inviabilizar o debate político na convenção do partido. Como destacou a jornalista Cynara Menezes, a militância de aluguel em prol de Fernando Henrique, contratada a R$ 40,00 por cabeça, dominou a convenção do PMDB (527) - "era muito fácil distinguir a militância real da militância ‘fake’, paga para gritar palavras de ordem pró-FHC e contra a candidatura própria." (528) Havia dois grupos contratados no plenário: "Um grupo de 90 mocinhas de minissaia, contratado pelos governistas à empresa Soic Eventos, de Brasília, era orientado a repetir palavras de ordem por dez monitoras com microfones de ouvido, à maneira das estrelas de rock. Quem perguntava às meninas se elas votavam no PMDB ouvia em resposta um sonoro ‘não’. Mesmo as coordenadoras de grupo, como Vânia Ferreira, 26, não demonstravam nenhuma simpatia pelo partido. O outro grupo, formado por 120 pessoas de camisa amarela, na maioria rapazes musculosos, dizia ter sido contratado também a R$ 40,00 pelo deputado Luiz Estevão, da Assembléia Distrital." (529) Conforme a jornalista, "quando o ex-presidente Itamar Franco discursou e se ouviu a todo volume ‘Rá, Rá, Rá, Fora Itamar’, eram eles fazendo jus ao que receberam. Quando vaiaram o inflamado discurso do senador Roberto Requião (PR)... também era uma ação profissional, orientada por animadores de auditório." (530) De fato, Itamar ocupou a tribuna durante 28 minutos, contudo, falou apenas 16, tendo sido interrompido cinco vezes com vaias e apitos das equipes pró-FHC. Em uma dessas ocasiões, afirmou que as vaias não estavam sendo dirigidas a ele, "mas ao Brasil". (531) O deputado Luis Estevão afirmou ter mobilizado militantes das cidades-satélites de Brasília. De fato, conforme a reportagem, enquanto transcorriam debates no Plenário, "uma kombi da Fundação Comunidade, de Luiz Estevão, distribuía comida do lado de fora. Era gente trazida das cidades-satélites de Brasília - mais de 450 pessoas, segundo os próprios coordenadores -, em ônibus fretados, para dar volume ao evento." (532) Por fim, os militantes contratados geraram uma situação que resultou em agressões físicas no plenário da câmara, uma porta de vidro quebrada, militantes e pseudo-militantes feridos, com imagens de uma pessoa ensanguentada sendo veiculadas pelas redes de TV.

O corregedor-geral da Justiça Eleitoral, ministro Nilson Naves, atendendo a uma representação do Partido dos Trabalhadores, já havia notificado o presidente Fernando Henrique Cardoso para apresentar uma defesa contra a acusação de uso da máquina pública com a finalidade de obter apoio do PMDB à sua candidatura. Este apoio aumentaria o tempo do programa de Fernando Henrique na televisão. Contudo, as explicações do presidente foram aceitas e nenhuma sanção lhe foi imposta. Por fim, a outra convenção do PMDB, para homologar a resultado da primeira, ficou para o mês de junho de 98.

Assim, do ponto de vista formal saiu vitoriosa a democracia no Brasil e seu principal expoente, o presidente e renomado intelectual Fernando Henrique Cardoso, que tantos discursos fez sobre a democracia, ao receber títulos honoris causa no exterior. Do ponto de vista legal, a convenção foi legitima e o resultado lhe foi favorável. O presidente não pode ser punido por liberar verbas para obras públicas. Um deputado não pode ser punido por distribuir comida ao povo pobre e os rapazes e garotas que foram "animar" a convenção ficaram satisfeitos ao receber o pagamento que lhes fora prometido. Desse modo, Fernando Henrique não teria um candidato do PMDB como seu opositor durante a campanha eleitoral, o que teoricamente lhe facilitaria a vitória no primeiro turno.

A democracia substancial, entretanto, foi novamente sepultada neste episódio promovido pelo governo e seus aliados, no qual são perceptíveis os traços de um regime globalitário. Este episódio manteve a mesma estrutura de um programa de auditório conhecido no país como "Topa Tudo por Dinheiro", veiculado aos domingos. Em troca de verbas ou pagamentos, as pessoas se dispõem a realizar ações abjetas, mas não perdem a pose. Enquanto Fernando Henrique sai vitorioso, ficou derrotada a dignidade política do país.

d) A Ilegal Campanha de Mídia pela Reeleição de Fernando Henrique Cardoso

Outro exemplo de como se burlou a legislação sem maiores conseqüências, foi a campanha em favor da reeleição do presidente que antecedeu a votação da emenda constitucional que viria permiti-la. Tal campanha, veiculada por rádio e televisão, foi patrocinada por institutos ligados ao PSDB e PFL. O mais interessante, entretanto, é o esclarecimento que os jornais traziam sobre a participação dos partidos na viabilização da campanha: "O PSDB e o PFL precisam arrecadar no mínimo R$ 1,1 milhão junto a empresários e entidades sindicais para pagar a campanha de TV pró-reeleição do presidente FHC. O número leva em conta estimativa de arrecadação dos institutos Tancredo Neves, do PFL, e Teotônio Vilela, do PSDB, responsáveis pela veiculação dos anúncios. ‘Nós ainda vamos pagar a campanha, buscando doações de empresas, pessoas físicas e jurídicas’, disse o presidente do Instituto Tancredo Neves, deputado Vilmar Rocha (PFL-GO)." (533)

Ora, se assim eram os fatos, quem havia pago, até então, a inserção daquela peça publicitária na TV ? Se os dois institutos não tinham dinheiro para veiculá-la, como elas foram parar no horário nobre das emissoras? Será que as emissoras em que a campanha foi veiculada fizeram um contrato para receber quando as entidades pudessem pagar ? Mas o que significa dizer que dois partidos políticos devem arrecadar um milhão e cem mil reais para pagar dívidas contraídas por outras entidades ? Como no caso da Free Press, que servia - na condição de pessoa jurídica - como um anteparo para que o comitê de Fernando Henrique fizesse campanha através da Agência Estado, aqui, dois institutos - como pessoas jurídicas - servem de anteparo para que partidos políticos possam arrecadar doações que financiem campanhas políticas na TV em favor de seus interesses, mas sem "transgredir a lei" uma vez que quem responde pela campanha são os referidos institutos - e o fazem tão bem, que nem recursos tinham para veiculá-la na TV e mesmo assim ela foi ao ar durante dias.

Conforme os institutos, para financiar suas atividades, eles próprios receberiam recursos de empresas, pessoas físicas e jurídicas - entre as quais elencavam-se partidos e sindicatos. Esclarecendo esse aspecto, alguns jornalistas afirmaram que tais institutos, como apenas têm por objetivo divulgar a doutrina dos partidos a que estão vinculados, "...podem receber doações vedadas aos partidos, como de entidades sindicais. Os partidos não poderiam receber, por exemplo - segundo esses jornalistas -, a doação de R$ 200 mil dada pela Força Sindical para aplicar na campanha publicitária. O artigo 30 da lei 9.096, de 1995, veda doação de ‘entidade de classe ou sindical’ aos partidos." (534) Pela mediação deles, contudo, esses recursos puderam ser aplicados na campanha em prol da reeleição de Fernando Henrique.

Quando consideraram que os objetivos da campanha já estavam atingidos, os institutos suspenderam a sua veiculação. Alguns dias depois o presidente interino do Tribunal Superior Eleitoral determinou a suspensão da campanha atendendo a uma representação de partidos de oposição. Na decisão judicial de Costa Porto lê-se: "Defiro liminar para o fim limitado de advertir o PFL e o PSDB para que observem os requisitos legais relativos a seu acesso ao rádio e televisão, sob pena de desobediência". (535) Temos então que PFL e PSDB, valendo-se de institutos a eles ligados, fizeram campanha publicitária paga em favor da reeleição de Fernando Henrique Cardoso - cometendo assim um crime, uma vez que a legislação somente permite propaganda política gratuita, justamente para evitar abuso de poder econômico - e a justiça, contudo, apenas os adverte. Tendo cometido um crime apenas são advertidos. Não deveriam ter sido punidos ? Será a advertência uma punição nesses casos ?


21 As Privatizações - O caso da Vale do Rio Doce

A privatização da empresa Vale do Rio Doce por R$ 3,1 bilhões, é um signo da política neoliberal e globalitária implementada no Brasil. A Vale é a maior empresa exportadora do país e gerava, anualmente, um lucro superior a R$ 500 milhões. Com sua venda o governo visava abater 1,5% da dívida pública (536). De fato, no dia 14 de maio de 1997, o governo usou R$ 1,5 bilhões resgatando Letras do Tesouro Nacional que pagavam juros aproximados de 23,80% ao ano aos aplicadores (537). O restante do dinheiro foi para o Fundo de Restruturação Econômica, e seria utilizado para o resgate de outras parcelas de títulos da dívida interna.

A Vale do Rio Doce compunha um conjunto de 54 empresas com direito a exploração de solo e subsolo. Tratava-se de "41 bilhões de toneladas de minério de ferro, 994 milhões de toneladas de minério de cobre, 678 milhões de toneladas de bauxita, 67 milhões de toneladas de caulim, 72 milhões de toneladas de manganês, 70 milhões de toneladas de níquel, 122 milhões de toneladas de potássio, 9 milhões de toneladas de zinco, 1,8 milhão de toneladas de urânio, 1 milhão de toneladas de titânio, 510 mil toneladas de tungstênio, 60 mil toneladas de nióbio e 563 toneladas de ouro." (538) Além disso, a Vale compunha "...a maior frota de navios graneleiros do mundo, 1.800 quilômetros de ferrovias, por onde trafegam dois milhões de passageiros/ano e 64% da carga transportada por trens no território brasileiro." (539) O dramático, entretanto, é que todo este patrimônio foi posto à venda pelo "preço de meio Proer do Bamerindus" (540).

Todas as privatizações realizadas desde 1991 até dezembro de 1997, renderam ao governo R$ 37,6 bilhões - em dinheiro vivo ou títulos públicos - com a finalidade de abater a dívida interna (541). Esta, entretanto, saltou de US$ 53 bilhões em 1991 para R$ 267,914 bilhões ao final de 1997. Destaque-se ainda que nos dois primeiros anos do governo de Fernando Henrique, a ajuda aos bancos foi responsável por 52,3% do endividamento do governo que emprestou dinheiro às instituições: R$ 48,3 bilhões foi o crescimento da dívida em razão do ajuste bancário (542). Assim, a dívida pública saltou de R$ 153,163 bilhões em 1o de janeiro de 1995 para R$ 306,494 bilhões em 31 de dezembro de 1997, isto é, ela dobrou nos três primeiros anos do governo Fernando Henrique (543). Somente o déficit de contas correntes do governo verificado ao final de 1997 girava em torno de R$ 35 bilhões.

Com isso, todo o patrimônio público do país está sendo escoado pelo ralo das altas taxas de juros que o governo mesmo pratica em nome da preservação do Plano Real. É interessante notar contudo que logo após a divulgação, em fevereiro, do índice recorde de desemprego no Brasil, as taxas de juros que estavam em 34% ao ano caíram abruptamente para 28% e nada aconteceu com a moeda, pelo contrário as bolsas reagiram positivamente. Este fato suscita questionamentos sobre a condução do política econômica, capaz de desperdiçar recursos públicos mantendo uma taxa de juros 6% acima do que seria possível sem nenhum risco para a moeda. Poderia ter sido a redução ainda maior ? Afinal, qual é o critério técnico para definir o patamar desta taxa de juros ? Para o governo é o vetor da entrada e saída de capitais estrangeiros. Se eles entram em quantidade, pode-se baixar as taxas; se eles saem, tem-se que erguê-las. Entretanto nesses quatro anos de Real os capitais que vem para se estabelecer produtivamente no país não atingem o que o governo necessita para estabilizar a economia. Quanto mais as dívidas sobem, menos o capital produtivo externo confia em investir no país. Assim, o governo consome o patrimônio das estatais premiando esse capital que vai e vem, até o ponto em que as taxas de risco não indiquem mais o Brasil como um país seguro para investimentos financeiros. O que a atual equipe econômica faria quando esse cenário possível - e bem provável - se desenhasse e não houvesse mais patrimônio para privatizar ? Eis uma pergunta que nenhum dos membros da equipe econômica se digna responder.

Com efeito, em fevereiro de 1996, os jornais mostraram dados extraídos de um documento da Secretaria do Tesouro Nacional, indicando que ao mesmo tempo em que crescia o déficit público caia o prazo de resgate dos títulos do governo. Com base no documento jornalistas afirmaram que: "a exiguidade do prazo do governo para rolar sua dívida interna aumenta ao mesmo tempo em que se deterioram as contas públicas. E o tempo míngua rapidamente. (...) O fato é que a dívida pública em títulos tinha prazo médio superior a cinco meses em julho do ano passado [1995]. E hoje [fevereiro de 1996] o horizonte não se estende muito além de dois meses." (544) O que o governo faria se o mercado não comprasse títulos públicos o suficiente para saldar as suas dívidas que estariam vencendo e não tivesse mais estatais para privatizar ?

 

22. Ação e discurso coercitivos em meio à simulação democrática

O autoritarismo globalitário é mediado não apenas por clássicos instrumentos repressivos, como tanques e tropas de choque - em casos extremos - mas especialmente pela sedução da opinião pública através de semioses que, modelizando índices de realidade, como imagens de situações reais, os convertem em ícones que são modelizados simbolicamente agenciando interpretantes. Assim, através dessa semiose modelizadora, interpretantes afetivos e energéticos podem ser agenciados como uma reação aos índices de realidade, embora os sujeitos expostos aos ícones não tiveram contato direto com os índices. Essa é outra técnica elementar dos jogos semióticos autoritários sob o regime globalitário. Desse modo, as elites que dominam o capital e, portanto, os grandes meios de comunicação - que são empresas capitalistas - legitimam sua dominação através de um misto de autoritarismo e benevolência, uma vez que elas permitem, e chegam mesmo a atender em parte, algumas reinvindicações populares, o que possibilitará a geração de muitos signos valiosos à sua hegemonia. As reinvindicações, contudo, devem se realizar dentro dos limites da ordem que o projeto hegemônico estabelece. Por exemplo, ninguém pode mais reivindicar aposentaria com 30 anos de serviço, pois esta ordem foi mudada legalmente abolindo um direito. Tudo o que transgride os limites por ela imposto é subversivo ou atrasado. Não corresponde à modernidade e ao progresso do qual as elites são portadoras. Por outro lado, uma reivindicação menor que possa ser atendida possibilita a geração de ícones - imagens do atendimento como objeto dinâmico - que serão modelizados na publicidade governamental como ação efetiva.

Em alguns momentos, entretanto, o governo de Fernando Henrique valeu-se, também, de instrumentos coercitivos para impor medidas de interesse do grande capital. Um episódio marcante foi quando, impondo uma conclusão à greve dos petroleiros, o presidente ordenou que os militares ocupassem as refinarias de petróleo. Disse, segundo alguns, que agindo daquele modo quebrava a espinha do sindicalismo brasileiro. Contudo, sendo sociólogo, Fernando Henrique sabe que a manutenção do regime democrático depende de sindicalismo forte, de partidos fortes, de organizações fortes na sociedade civil defendendo seus interesses em prol da cidadania.

Foram justamente esses segmentos organizados que conclamaram a população para realizar no dia 25 de julho de 1997 um ato na Avenida Paulista em defesa dos direitos da cidadania "perante as políticas de exclusão social e o autoritarismo do governo FHC." (545)

Na primeira data em que estava marcada a privatização da Vale do Rio Doce, o Rio de Janeiro assistiu cenas em que a polícia militar, usando cassetetes e atirando bombas de gás lacrimogêneo, tentava dissolver manifestações da população que protestava contra aquela privatização. A concentração de manifestantes permaneceu o dia todo na Praça XV, em frente ao prédio da Bolsa de Valores. Mais de 100 ações judiciais em vários estados haviam recebido deferimento favorável e conseguiu-se suspender o leilão. Os instrumentos jurídicos adotados foram vários: ações direta de inconstitucionalidade, liminares, ações populares e mandados de segurança. Em outra manifestação dois dias antes da data marcada para aquele leilão - quando Fernando Henrique se encontrava com Carlos Menem, presidente da Argentina, no Copacabana Palace, no Rio -, ocorreu na região de Copacabana uma manifestação que também fora reprimida pela polícia, que buscou acuar os manifestantes atirando bombas de gás lacrimogênio em plena Avenida Atlântica. Atos contra outras privatizações também foram reprimidos com violência, deixando vários feridos (546).

Outra característica dos regimes autoritários é a impunidade. A carta de convocatória da Conferência Nacional em Defesa da Terra, do Trabalho e da Cidadania, assinada por várias entidades, entre as quais a OAB, a CNBB, a ABI, a Ação da Cidadania Contra a Fome e a Miséria, a Associação Brasileira das Organizações Não-Governamentais e a Central de Movimentos Populares, afirma que "seguindo a política de exclusão e massacre promovida pelos governos anteriores (Carandirú, Vigário Geral), em dois anos de Governo FHC a sociedade testemunhou os massacres trabalhadores rurais sem-terra, em Corumbiara (RO) e Eldorado de Carajás (PA), até hoje impunes, como os anteriores, e agora a ignomiosa violência policial praticada pela Polícia Militar de S. Paulo na cidade de Diadema." (547) O documento continua, destacando ações do governo que se caracterizam por desrespeito aos princípios democráticos: "Para atender aos interesses das elites, Fernando Henrique Cardoso governa por Medidas Provisórias, fere a autonomia dos Poderes Legislativo e Judiciário e submete o Parlamento a uma barganha clientelista e fisiológica, com a conivência de ampla maioria do Congresso Nacional. Essas práticas se inscrevem nas piores tradições da história política do Brasil, demonstradas, entre outros atos, pela aprovação da emenda casuísta e golpista da reeleição. Sua vontade imperial se afirma na imposição de uma política anti-social que fere os direitos e os interesses do provo brasileiro, propondo inclusive uma reforma política restritiva e antidemocrática." (548)

O abuso das Medidas Provisórias, que destacaremos à parte, e o atrelamento da parcela maior do Congresso Nacional que aceita ter o país governado desse modo, bem como o amplo domínio de difusão das informações que lhe interessam na grande imprensa, e por fim, o autoritarismo das decisões - uma vez que uma medida provisória reeditada por um único homem torna-se norma vigente para todo o país por um prazo de tempo indefinido - colocam em risco a estrutura institucional da estado brasileiro.

Nessa linha de raciocínio, em que os que estão no executivo federal consideram toda oposição como "burra" e "retrógrada", convencendo a sociedade de que a oposição "não tem proposta", alguns membros do governo imaginam que uma autêntica democracia possa funcionar sem respeito à divergência: "Nós estamos no poder, acabou a necessidade da crítica." - hipotética frase que representa este espírito democrático, denunciado por Roberto Romano, filósofo e professor de filosofia política da Unicamp (549) em seu artigo " ‘Denuncismo’ ou defesa dos cidadãos?".

Romano analisa neste artigo jornalístico um "simulacro discursivo" praticado por membros da hierarquia do Palácio do Planalto, no caso, José Álvaro Moisés quando este afirmava que a denúncia pela imprensa de irregularidades administrativas que ocorrem no governo em nível federal, conduz a um golpe de Estado no país. J.A. Moisés chega ao absurdo de afirmar que "Ser contra o governo é trair o Brasil". O discurso coercitivo de Moisés passa então, a chantagear a imprensa e a cidadania: "Se não curvarem a cerviz, haverá um golpe." Comenta Roberto Romano que foi, do mesmo modo, que "...os burocratas do antigo comunismo exigiram total adesão ao pacto entre a Alemanha nazista e a URSS, em 1939". Assim, " a ‘santa aliança’ matou milhões para garantir os ditadores e os intelectuais que a serviram." É preciso, pois, destacar que "Cérebros formados no autoritarismo, de esquerda ou direita, sempre odeiam o pensamento autônomo." (550). Em outra passagem afirma o professor: "É meridiano o raciocínio dos censores que um dia foram intelectuais: a universidade crítica e a imprensa livre só devem existir enquanto os iluminados, que engoliram o absoluto divino, não chegaram ao poder. Presos às sinecuras (convescotes em Paris etc) e tendo as orelhas lambidas pela adulação, senhores e simulacros julgam urgente, como disse a primeira-dama, ‘educar os jornalistas’, que odeiam, votando horror idêntico aos seus antigos pares acadêmicos que resistem na sociedade civil. É cinismo apontar a imprensa como causadora de golpes quando se trabalha para um governo que pratica o ‘é dando que se recebe’ com parlamentares e depois os aponta como fonte de ingovernabilidade." (551)

Sofrendo esta mesma ação discursiva coercitiva, o judiciário fica bastante susceptível. Algumas vezes, entretanto, membros do Governo pretenderam desqualificar também o judiciário, caso tomassem decisões contrárias aos interesses do governo federal. Considerando este procedimento, argumenta Milton Temer, que se trata "da busca de um ‘autoritarismo consentido’, no qual um déspota supostamente esclarecido daria as cartas... Cabe aos democratas resistir às tentativas do governo de desqualificar seus críticos para fugir à discussão das críticas." (552)

 

23 A Desqualificação do Opositor.

O que possibilitou a eleição de Fernando Henrique no primeiro turno foram 4,28% dos votos a mais que a metade do total, tendo recebido ao todo 54,28% dos votos válidos. De fato, considerando-se apenas os votos válidos, 45,72% dos eleitores não votaram em Fernando Henrique para presidente. Não obstante, o governo impõe seu pensamento como se fosse unanimidade no país e se permite ridicularizar as oposições que também foram democraticamente eleitas sendo, do mesmo modo, expressão de uma certa parcela da sociedade. Em suas críticas aos que a ele se opõem, o presidente vale-se de expedientes, classicamente analisados, de como levar a maioria a dar seu consentimento a teses que são inconsistentes.

Artur Schopenhauer, filósofo nascido no século XVIII, analisou detidamente os recursos normalmente utilizados em debates para que alguém saia vitorioso mesmo sem ter razão, sem ter uma tese correta ou o melhor argumento. Um desses recursos autoritários é desqualificar o opositor, imputando-lhe qualidades pejorativas, induzindo os ouvintes a não conceder-lhe crédito (553). Este procedimento possui grande eficácia mercadológica, sendo um expediente bastante utilizado nos regimes globalitários: trata-se de desmoralizar a dissidência, ridicularizando a oposição e portanto, enfraquecendo a democracia, pois nenhuma democracia é saudável se não houver respeito aos representantes da parcela divergente da sociedade, que não concorda com as políticas governamentais que estão sendo implementadas; a democracia é enfraquecida quando não há respeito pelas instituições que a sustentam.

Esta técnica autoritária tem sido utilizada por Fernando Henrique, seus ministros e por vários veículos de comunicação, como forma de criticar aqueles que fazem oposição ao governo. Conforme um dos editoriais da Folha de São Paulo, considerando o discurso proferido pelo presidente em São João do Jaguaribe (CE) em 1995, "os críticos são tratados com o desprezo de quem parece achar-se dono da verdade. Ora são ‘bobos’, ora ‘impostores’, ora são apenas ‘gatos pingados’, ora integrantes de uma ‘falsa esquerda’, ora pertencem a uma ‘direita carcomida’." (554) E antes de mesmo dessa desqualificação total da "falsa esquerda", ainda na campanha eleitoral, Fernando Henrique afirmou: "A esquerda viável sou eu. O PT ficou careta." (555)

O presidente afirmou, em suas declarações, que a esquerda brasileira é "burra", "fracassomaníaca", "boba", entre outros adjetivos pejorativos, uma vez que ela discorda de suas propostas: "Temos de dizer não à fracassomania. As dificuldades existem, mas nós vamos superá-las" (556) Ao ser indagado sobre a utilização eleitoral do programa Brasil em Ação, Fernando Henrique afirmou que ficarem dizendo que tudo é eleitoral, ou reeleitoral, "é uma coisa tosca, conversa de tico-tico" (557). Ele também criou um novo neologismo, a palavra "neobobismo". Com ela taxou os que o qualificam como neoliberal.

Este modo de produzir semioses que geram interpretantes favoráveis a sua posição, embora autoritário, é bastante sutil. Quando o presidente se refere às organizações populares que defendem direitos assegurados constitucionalmente, os taxa de "corporativistas"; mas quando se refere aos interesses defendidos por banqueiros, isto é, a manutenção de juros altíssimos, afirma agir em favor do "interesse público".

Essa mesma técnica é adotada também pelos ministros de seu governo e pelo presidente do Banco Central. Gustavo Franco, referindo-se a um jornalista - que sempre apresenta dados e análises demostrando as falácias da equipe econômica do governo e que já foi editor de economia de um dos principais jornais do país - chamou-o, ironicamente, de "extraordinário" e de "economista de porta de cadeia" (558).

A base desse procedimento anti-democrático é sempre a mesma: "quem não está comigo, é um dinossauro que parou no tempo ou tem má-fé". O que se deseja com isso é que o público não confira autoridade ao oponente, não lhe dê atenção, esperando com isso que o crítico se cale frente a uma autoridade que o avilta com imputações difamatórias. (559)

Já durante a campanha eleitoral de 1994, esse expediente foi utilizado. Quando o comitê "Desperta Brasil" foi lançado em 15 de agosto de 94 - em uma festa de empresários paulistas em apoio a Fernando Henrique -, por lá circulou um panfleto apócrifo no qual os candidatos a se filiarem no PT eram tratados como "traficante, indigente, trombadinha e desempregado", entre outros adjetivos. (560) Como esclareceu o jornalista Fernando Rodrigues, que fazia a reportagem da festa, o panfleto que é descrito como sendo uma "ficha de filiação ao partido", contém 12 perguntas. "No caso do local de nascimento, o panfleto oferece as seguintes opções: ‘favela, mato, sob o minhocão, outra ponte ou pontilhão, fila do INSS, zona do meretrício.(...) No item profissão, o papel apresenta, entre outras, as seguintes opções: ‘traficante, indigente, trombadinha, desempregado.’ Para a profissão do pai do respondente, o panfleto oferece opções que incluem ‘cachaceiro, ladrão, grevista, terrorista, assaltante, sequestrador.’ Para a mãe, há sete opções no documento: ‘prostituta, sapatão, biscate, pedinte, cafetina de bordel, reprodutora de menor abandonado, mendiga.’ Uma das questões indaga quantas vezes o suposto futuro petista já teria sido preso. No final, o panfleto termina com um pedido: ‘Assinatura digital por extenso.’" (561) Conforme Fernando Rodrigues, "a Folha presenciou o presidente do conselho do Grupo Vicunha, Jacks Rabinobvich... entregando o panfleto a José Luiz Moura..., da empresa de engenharia de avaliação Appraisal. Os empresários olhavam para o documento e riam. Aguardavam a chegada de FHC para um coquetel. Estavam em uma casa na região dos Jardins (zona sul)" (562). Ao perceber que a reportagem os tinha notado Rabinovich afirmou: "Eu acho que quem fez isso foi o PT. Para acharem que estão atacando o Lula" e afirmou desconhecer o autor do panfleto. Por sua vez Moura afirmou que já conhecia o panfleto: "Recebi durante a Copa do Mundo. E tem outros. Não tenho a menor idéia de quem fez. Só sei que ri ao receber." (563)

Panfletos deste tipo circulavam em muitas cidades brasileiras e suas remessas pelo correio tinham São Paulo como procedência. A Justiça Eleitoral, então, deu ordens à Polícia Federal para investigar a origem e autoria dos volantes. Já antecipava, entretanto, Jânio de Freitas que "a própria origem [dos panfletos] faz crer que a investigação, ou não se fará, ou dará em nada." (564)

É interessante notar os tipos humanos que são indicados no folheto como contra-identidade daqueles que o elaboram e divulgam. Tratam-se de indigentes, desempregados, favelados, roceiros, população que vive nas ruas e mora sob viadutos ou pontes, a população que sofre nas filas do INSS, grevistas, pedintes, mendigos, menores abandonados, homossexuais, prostitutas e analfabetos; todos são objeto de escárnio e desprezo. Subjacente a este panfleto está a mesma mentalidade preconceituosa perceptível na ação dos jovens que mataram o índio pataxó Galdino dos Santos em Brasília, ateando fogo em seu corpo. Como que se desculpando do que fizeram afirmaram: "Nós não sabíamos que era um índio, pensávamos que fosse um mendigo." A citação dos excluídos é feita como motivo de chacota - identificar-se com eles é ridículo para os que já se consideram membros da elite ou semelhantes a eles.

Outro conjunto de tipos humanos relacionado inclui: traficantes, trombadinhas, ladrões, terroristas, assaltantes e seqüestradores. Têm-se aqui através da ficha de filiação uma identificação do PT com a contravenção, com o terrorismo e o seqüestro. Como vimos, na eleição de 1989 essa identificação já havia sido feita, mas de modo muito mais impactante, como analisamos no item "A Ditadura Democrática dos Mass Media". O empresário Abílio Diniz havia sido seqüestrado por um grupo político estrangeiro e estava mantido em cativeiro. Quando o cativeiro foi descoberto pela polícia e alguns seqüestradores haviam sido presos, vários veículos noticiosos associaram o grupo ao PT. Em 1994, por sua vez, conforme a Revista Veja, membros da SAE, ligada ao governo, "vincularam o Comando Vermelho e a onda de seqüestros no Rio ao PT." (565) Neste mesmo ano, segundo a mesma revista, a TV Record, do bispo da Igreja Universal, Edir Macedo, "chamou Lula de terrorista" e o jornal da mesma entidade disse que Lula era "o diabo em pessoa". (566)

Esta técnica primária de desqualificar os oponentes aplicando-lhes vários signos que seriam abjetos e, por tal mediação, agenciar, na opinião pública, interpretantes que os desqualificariam, é um exercício autoritário de poder, com o qual as elites reafirmam que somente elas, cuja identidade não está contaminada por aquelas qualidades depreciativas, são capazes de governar de maneira lúcida, em prol dos interesses nacionais.

Imputando qualidades depreciativas aos atores sociais o governo agencia imagens na opinião pública. Posteriormente, quando a sociedade já associou essas imagens a esses atores, o governo passa a criticar essas imagens como se estivesse criticando os atores e a crítica feita às imagens agencia interpretantes reativos contra esses atores sociais reais. Assim, ele pode conduzir a sociedade a uma posição adversa aos atores reais por ele modelizados com essas imagens em seu discurso. Com esta técnica semiótica, Fernando Henrique afirmou, por exemplo, que o movimento sem-terra perdeu o "conteúdo social". E, uma vez que ele não possui mais um "conteúdo social", o governo passaria a se preocupar especialmente com os pequenos produtores. Conforme esclareceu uma agência de notícias, "para o presidente, os movimentos que existem estão se tornando cada vez mais políticos e insistentemente mais violentos." Justificando sua atitude, o presidente afirmou - conforme a agência de notícias - "que realizou assentamentos e deu atenção ao sem-terra, mas que agora tem de olhar para os assentados e os que estão produzindo." (567)

A imagem que fica é que o presidente promoveu inúmeros assentamentos que eram uma questão social reivindicada pelo movimento; contudo, mesmo tendo realizado os assentamentos o movimento continuou existindo embora tivesse perdido seu conteúdo social, mas se tornando um movimento político e cada vez mais violento. Por isso, o presidente dará agora mais atenção aos pequenos agricultores, incluindo aqueles que foram assentados pelo programa de Reforma Agrária de seu governo. Politicamente Fernando Henrique adota um expediente fácil de separar movimento social e movimento político, mas não é tão fácil separar politikós de sociale ou polis de societate, especialmente porque esta última, desde a tradição filosófica da antigüidade, está semioticamente vinculada à tradução latina de expressão grega politicu, como um certo modo de organizar a vida coletiva. Todo movimento que resulta da organização de coletividades com objetivos comuns possui caracteres sócio-políticos indestrinçáveis. Fernando Henrique, como sociólogo, sabe disso; mas como político, cinde as expressões, pois elas possibilitam modelizações distintas que facilitam o desenho de cenários sobre os quais ele paira, uma vez que tanto é político quanto agente realizador de objetivos sociais.

 

24. O enfraquecimento das instituições democráticas sob o Governo FHC

O funcionamento de uma democracia necessita de instituições fortes, com credibilidade, que representem interesses legítimos do ponto de vista da realização da cidadania. Contudo, a estratégia de governo de Fernando Henrique Cardoso implicou no enfraquecimento do papel dessas instituições. Não apenas as oposições políticas foram reduzidas a signos abjetos, mas os próprios partidos ficaram enfraquecidos, havendo a descaracterização inclusive do próprio PSDB - que manteve alguma coerência programática antes de chegar à presidência. As distorções existentes na representação política - fruto da ditadura militar - e a composição de maiorias parlamentares formais que não correspondem a maiorias democraticamente legítimas, agravaram-se com as políticas adotadas por Fernando Henrique para aprovar o que seja satisfatório ao seu governo. O modo como o executivo legisla exuberantemente, não apenas enfraquece o poder legislativo, como traz problemas ao exercício do poder judiciário que, além disso, também é alvo da pressão governista quando toma decisões que contrariam os interesses do governo federal. consideremos brevemente esses aspectos.

Fernando Henrique foi eleito pelo PSDB, mas não tem compromissos com o ideário social-democrata. Programaticamente o Partido da Social Democracia Brasileira defende o controle estatal em certas áreas estratégicas. Quebrando o monopólio estatal das telecomunicações e pressionando pela quebra do monopólio estatal na área do petróleo, o presidente abandonou o próprio ideário programático de seu partido. Por outra parte, as alianças que fez com o PFL, o PTB, o PPB e outros grupos de parlamentares e governadores conservadores - que migraram pelas mais variadas siglas em busca de algum espaço no poder - não permitem também que seu governo seja conceitualmente compreendido como social-democrata, uma vez que elas o impediram de atender substancialmente as demandas sociais, precarizando ainda mais a situação dos serviços públicos de saúde, a situação dos aposentados e provocando o alastramento do drama do desemprego em razão das políticas de juros, importações e câmbio.

O congresso nacional, por sua vez, não é uma expressão democrática dos anseios populares da sociedade, embora uma parcela dos congressistas almeje a realização de uma democracia substancial no país. Tendo uma representação regional distorcida, para a sua composição não vale a máxima "um homem, um voto". Essa distorção realizada nos tempos da ditadura militar quando a oposição começou a ganhar nas regiões sudeste e sul, permanece até hoje ampliando a representação de regiões em que o coronelismo ainda impera. Mais grave que a distorção de representação regional é a própria a despolitização praticada pelo bloco de forças representado por Fernando Henrique Cardoso que hegemoniza a política nacional - que vai da troca de votos por comida à utilização de mídias publicitárias altamente qualificadas produzindo opiniões. Essa conduta hegemônica leva a população mal informada a eleger pessoas que não tem compromisso algum com aquilo que defendem nos discursos que fazem.

Sob os auspícios dessa aliança não se travou no Congresso Nacional um debate político aprofundado sobre vários projetos que foram aprovados. Há um grupo aproximado de 100 parlamentares que mantém uma oposição programática ao governo e um outro grupo aproximado de 50 parlamentares que, na maioria dos casos, compõe com a oposição. Isso perfaz 150 deputados, em um total dos 513 que conformam a Câmara Federal. Mesmo com essa maioria absoluta o governo não aprova facilmente suas reformas justamente porque o enfraquecimento das instituições democráticas tornam os representantes eleitos suscetíveis às práticas de barganhas pontuais em troca de votos favoráveis ao governo: negociam-se cargos, financiamentos para certos setores, subsídios, e toda uma série de compensações, barganhas essas que são assumidas publicamente como se não fossem imorais e ações de má conduta administrativa. Esta prática que ficou conhecida como "toma lá, dá cá" ou "é dando que se recebe" é executada impunemente pelo governo de Fernando Henrique Cardoso e por seus aliados, os quais afirmam ser esse expediente uma conduta normal. A base de sustentação política do Governo não apenas pratica este tipo de conduta como, algumas vezes, até mesmo a defende publicamente. A utilização desse expediente por Fernando Henrique Cardoso - valendo-se das verbas à disposição dos ministérios para realizar obras em bases eleitorais dos que o apoiam (assunto que trataremos à parte) - colabora para o enfraquecimento do congresso e dos partidos, uma vez que, democraticamente, nenhum projeto pode ser aprovado como troca de favores.

A aprovação da emenda da reeleição, como vimos, foi um exemplo claro de que as regras institucionais são mudadas em razão da oportunidade e de conveniências particulares, a fim de permitir a continuidade dessa aliança globalitária que se alojou no poder. Considerando-se que, conforme a vontade do presidente, medidas macroeconômicas podem ser implementadas ou retardadas a fim de que no período eleitoral tudo pareça encaminhar-se bem, agenciando boas esperanças para o futuro próximo, temos que um dos candidatos - com um congresso subserviente e um judiciário que não o alcança - pode adotar medidas que alteram a própria economia do país em favor de sua candidatura. No varejo, pode também condicionar a liberação de recursos a estados e regiões à finalidade de influir na disputa eleitoral, inclusive para inviabilizar o lançamento de candidatos concorrentes por outros partidos. A possibilidade conferida a um dos candidatos a presidente de alterar cenários eleitorais em causa própria com medidas macroeconômicas ou ações pontuais que envolvam recursos públicos, acabou por enfraquecer ainda mais a democracia no Brasil.

A relação do Executivo Federal com os Tribunais é um indicador de que para o governo todo outro poder que seja contrário aos seus interesses é contrário aos interesses do país. Aqui o governo adota os clássicos expedientes de sedução e coerção. Assim, frente às críticas feitas pelo Tribunal de Contas da União - que é um órgão vinculado ao Congresso - ao projeto de implantação do Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM), Fernando Henrique afirmou, em janeiro de 1996, que "Os tribunais são fundamentais nesse processo, porque permitem um outro tipo de controle da sociedade, para verificar até que ponto aquilo que se inova corresponde, efetivamente, ao interesse mais profundo da nação, ou se foi simplesmente um modismo" (568)e elogiou o "caráter democrático" da instituição. Entretanto seu discurso mudou quando afirmou que "os ministros do STF não pensam no Brasil", perante a possibilidade de ver-se derrotado no supremo e ser obrigado a estender o reajuste de 28,86% ao funcionalismo civil. Trilhando a mesma estratégia do presidente, o ministro Sérgio Motta declarou que se o Supremo Tribunal Federal acolhesse o pedido que sustava a privatização da banda B da telefonia celular, o tribunal estaria cometendo "um crime contra o Brasil". Comentando esta situação um parlamentar de oposição comentou: "para os atuais donos do poder, quem não está com eles, está contra o país. As decisões judiciais prestam quando servem à política do governo - como quando da greve dos petroleiros - e são daninhas ao país quando estão em desacordo com ela. Estranhos democratas esses..." (569)

O poder judiciário no país, por sua vez, também vai ficando enfraquecido no que se refere a resguardar os direitos da cidadania. Sob os regimes globalitários ele deve permanecer apenas um instrumento na manutenção da nova ordem a ser implementada no país. A mudança constante da legislação pelo executivo brasileiro esvazia sobremaneira o poder judiciário, que somente opera a partir da referência à lei. Não há como determinar punição quando uma medida provisória, com força de lei, passa a tornar permissível o que antes não o seria. Pior do que isto, quando o Tribunal julga e, ainda que em poucas situações, o executivo é contrariado, este - por sua vez - joga a opinião pública contra o judiciário, do mesmo modo que atua com relação à oposição política. Em seguida altera suas medidas provisórias e, por fim, alcança os seus objetivos.

O caso da legislação tributária pode ser tomado como um dos exemplos sobre isto que acabamos de afirmar. Várias medidas provisórias vão sendo editadas e, a cada nova edição, modifica-se a legislação anterior. Como destaca Osires Lopes Filho, professor de Direito Tributário da Universidade de Brasília, "essa facilidade de impor ao Legislativo o que considera relevante para os seus objetivos tem caracterizado a produção legal que emana do executivo. Tem-se, infelizmente, um Congresso subserviente e desfibrado. A aprovação da MP nº 1602/97 atesta isso. Várias inconstitucionalidades e impropriedades estão ali consagradas." (570) Com o processo de alteração constante da legislação destaca o professor da UNB que a "a obra normativa federal está sempre inconclusa e tosca." (571) O resultado é desastroso para a democracia do país. "Não há estabilidade no ordenamento tributário. O valor segurança jurídica, pelo que consagra de previsibilidade, de permanência, tem sido menosprezado pelo governo federal, na sua volúpia legislativa. Há tanta trama e urdidura desconectadas no tecido tributário do país que o resultado é grotesco." (572)

Tendo a possibilidade de legislar conforme as necessidades políticas, valendo-se das medidas provisórias, Fernando Henrique pretendeu também assumir certos poderes que são constitucionalmente prerrogativas do Judiciário, como ocorreu com a medida provisória de nº 1.570. A partir daí, alguns críticos, que haviam sido seus aliados, disseram que o presidente pretendia tornar-se um déspota esclarecido.

Frente ao enfraquecimento do Poder Judiciário no país, alguns membros do Superior Tribunal de Justiça e inúmeros operadores do direito reagiram incisivamente, buscando preservar, ainda que parcialmente, um caráter mais substantivo a este Poder. Antonio de Pádua Ribeiro, então vice-presidente no exercício do Tribunal Superior de Justiça, publicou, em outubro de 1997, um artigo intitulado Salvem o Judiciário, no qual afirmava que "o Poder Judiciário não pode sucumbir diante de circunstâncias hostis, ainda que criadas por forças poderosas. Sua derrocada atingirá em cheio a liberdade, a democracia e a República, que, sem ele, serão alcançadas no seu âmago. As vítimas serão o povo, a sociedade e a cidadania." (573)

Este apelo se apoia no resultado de um debate na própria instituição. Pouco tempo antes de o artigo ser escrito o Colégio de Presidentes dos Tribunais de Justiça, reuniu-se em Macapá, e, em seu conjunto, denunciou ao país que "a concentração do poder já se vai fazendo ameaçadora à normalidade institucional e à soberania da lei" (574). Naquela oportunidade, um manifesto assinado por renomados juristas convocava os brasileiros a "uma vigília cívica com o objetivo de inverter tendências denunciadas à nação, ‘para que exista uma voz sempre atenta em defesa da Constituição e dos direitos e garantias fundamentais’" (575). Com apreensão, entretanto, destacava Antônio Ribeiro que "o tempo está passando, e nada se tem alterado. Continua o processo de estrangulamento e destruição do Judiciário; as poucas vozes que se erguem para defendê-lo afirma-se estarem a serviço do corporativismo e dos privilégios. Não são ouvidas; ao contrário, são silenciadas. Não repercutem; são abafadas pelo som barulhento dos protestos ou de ironias grotescas. A emoção tem prevalecido sobre a razão. E esse quadro é deletério para os interesses perenes do Estado brasileiro." (576)

Avançando em seu argumento mostrando a tendência autoritária que é revelada pelo modo como o poder judiciário vem sendo tratado, especialmente pelo poder executivo, Antônio Ribeiro destaca que "as grandes ditaduras sempre se utilizaram sobremaneira de elementos afetivos e estimularam atitudes emocionais, mediante um sistema de propaganda de massa fundado em imagens. Exploraram, conscientemente, toda a força do simbólico para atingir o inconsciente coletivo. Grande parte da população condiciona seus pensamentos por imagens, que movem a força da imaginação e iluminam o sentido do tema em debate. Assim, mitos são criados e transmitidos à sociedade, que passa a atuar de acordo com eles sem a preocupação de verificar se expressam a verdade. As distorções daí resultantes são conhecidas. Em época relativamente recente, usaram desse processo o nazismo, o fascismo e o comunismo. Dele também se serviram muitas ditaduras, que se instalaram neste continente não faz muito tempo. As suas nefastas conseqüências são notórias." (577)

Atentos a essa manipulação da opinião através das semioses simbólicas, que agenciam ações emocionais através da geração de mitos e da propaganda massiva, representantes do judiciário também alertam a sociedade brasileira do enfraquecimento da democracia no país. Como destaca Ribeiro, "despertar emoções e gerar mitos constitui o meio mais fácil de direcionar a mente do povo, vítima de terríveis desequilíbrios sociais, para atingir objetivos aparentemente justos, mas inalcançáveis. É um caminho perigoso, que leva a frustrações e fracassos, com graves repercussões de ordem institucional." (578)

O enfraquecimento do judiciário e da noção democrática de justiça leva ao surgimento dos "justiceiros" que desacreditaram das instituições democráticas. Atualmente, "... a opinião pública, influenciada pela mídia, absolve ou condena com facilidade e desprezo à regra do devido processo legal, em gravíssima violação do princípio do direito de defesa. A atuação dos juízes, que estudam direito longos anos e são investidos no cargo após aprovação em rigoroso concurso público, é pura e simplesmente substituída pelo julgamento popular. As consequências são trágicas. A honorabilidade de cidadãos, construída ao longo dos anos, é destruída absurdamente no espaço de horas; famílias e instituições são execradas e desmoralizadas" (579), mesmo que alguns jornalistas venham denunciando o comportamento da mídia emocional que deveria ceder lugar a uma ação investigativa, própria dos grandes profissionais.

Conforme Ribeiro, "o Poder [Judiciário] é vítima das mesmas adversidades que têm atingido a rede de saúde, o ensino - enfim, o Estado brasileiro. Tem lutado, com a atuação cada vez mais intensa dos seus membros, para se livrar das suas deficiências e mazelas. Não dispõe do cofre ou da espada, não legisla. Pouco lhe resta além de denunciar." (580) Embora esta situação, o Judiciário tem inibido, segundo Ribeiro, atos que violam os direitos fundamentais e as garantias constitucionais, como no caso do confisco dos cruzados no Plano Collor ou no caso dos aposentados do INSS, entre outros, em que o judiciário "...garantiu aos cidadãos a salvaguarda de seus direitos ameaçados e violados." (581) Concluindo seu artigo, considera o vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça que "enfraquecer o Judiciário é estimular o arbítrio e a injustiça que já grassam no país. Será isso que a sociedade brasileira deseja? Creio que não. Que os setores responsáveis estejam alertas, pois, sem um Judiciário independente e respeitado, o futuro da sociedade brasileira será pouco alvissareiro." (582)


25. O Globalitarismo implementado pelo Governo FHC

O governo Fernando Henrique saiu vitorioso de quase todos os embates que travou no congresso. Com a reforma administrativa, revogou a estabilidade do servidor público, possibilitando "racionalizar" gastos com a folha de salários; reformulou a "legislação sobre o capital estrangeiro", propiciando "maior estímulo ao ingresso de investimentos estrangeiros e ao reinvestimento", revendo também "normas sobre serviços , tecnologias e propriedade intelectual", com a lei de patentes; combateu os monopólios da União, a fim de "atrair investimentos privados, com vistas à expansão da capacidade de produção"; vem implantando um "sistema de concessões de serviços públicos", buscando "atrair investimentos privados para a prestação de serviços", com o objetivo de ampliar a "capacidade de infra-estrutura necessária ao desenvolvimento econômico" do país; quebrou os monopólios nos serviços portuários, visando reduzir custos e aumentar a eficiência dos portos; promoveu a "reorganização do sistema da previdência social, saúde e assistência social e do custeio da Seguridade Social, com o reexame [e alteração] da aposentadoria por tempo de serviço"; com a nova LDB e outras políticas na área de educação, atuou na elaboração de um programa de reforma no ensino básico, promoveu uma revisão do ensino superior e regulamentou a autonomia universitária; na questão agrária revisou o Imposto Territorial Rural, regularizou e desapropriou terras para assentamento rural.

Todas essas propostas e muitas outras implementadas pelo atual governo, contudo, encontram-se no documento Brasil: um projeto de reconstrução nacional apresentado à sociedade brasileira por Fernando Collor de Melo no dia 14 de março de 1991, no primeiro aniversário de seu governo - e devidamente citadas, aqui, entre aspas (583). Fernando Henrique não apenas implementa o mesmo projeto com os mesmos aliados do ex-presidente, como algumas vezes seus discursos se confundem. A "falta de memória" da sociedade é, em grande parte, o que facilita a manipulação da opinião pública através das mídias, uma vez que as massas perdem a referência indicial da realidade efetiva mergulhando em narrativas semióticas fragmentadas e complexas que agenciam em seus imaginários - através das mídias - interpretantes favoráveis a determinadas hegemonias.

Que dizer do seguinte texto:

"Minha proposta de governo, incorporava como ponto fundamental, o anseio do povo brasileiro por mudanças profundas. Mais do que isso incorporava uma concepção do que seria o Brasil moderno e das condições de realizar o salto qualitativo na vida nacional.

"Sabíamos que o moderno não se mede somente por critérios de avanço técnico ou científico. A modernidade identifica-se com padrões de justiça social, de liberdade política, de distribuição equitativa de renda, de vida digna para todos. Modernidade significa a criação de uma nova cidadania e de uma nova ética de convivência.

"Conhecíamos os instrumentos da mudança: a reforma do Estado, que deveria dedicar-se às funções essenciais na área da saúde, da educação, da infra-estrutura; a liberação da economia dos vícios do clientelismo, dos subsídios, dos cartórios, para que o mercado pudesse ser recomposto e a competitividade empresarial alcançasse níveis internacionais; a abertura da economia ao mundo; o resgate da dívida social, e o enfrentamento real de problemas que afligiam a consciência nacional, como a questão da criança, da violação dos direitos humanos..."

Quando o lemos podemos sentir as inflexões de Fernando Henrique no texto, mas é outro discurso de Collor, repetido à exaustão pelo bloco hegemônico de poder que, depois do processo do impeachment e de um quadro de inércia, se rearticulou em torno da figura expressiva do atual presidente.

Faremos mais à frente uma análise de vários discursos do presidente. Contudo, interessa-nos, aqui, resgatar algumas outras passagens que dizem respeito à sociedade, à democracia, à cidadania para fazermos uma comparação das semioses discursivas de Fernando Henrique e Collor.

"A sociedade brasileira demonstrou inequivocamente, pela força do voto, o seu anseio de mudança, de transformação do País. O fortalecimento da democracia, a conquista definitiva da justiça social e os imperativos do desenvolvimento sustentado e da modernização do Brasil são rumos traçados legitima e soberanamente...(...)

"Não se transforma o país [entretanto] com projetos de governo. As mudanças profundas a que tanto almejamos têm de ser fruto de um projeto da sociedade... As mudanças têm de resultar de uma mobilização do conjunto da cidadania. É hora, portanto, de dar um basta aos interesses corporativos, de dar um basta aos interesses regionais ou clientelistas. É hora de por um paradeiro à fisiologia e ao paroquialismo. (...)

"De forma alguma o recurso ao instrumento da Medida Provisória teve, ou tem, o sentido de diminuir os demais poderes constituídos ou de revelar descrença na prática do diálogo. Trata-se de mecanismo estabelecido pela Constituição que o Presidente da República poderá adotar ‘em caso de relevância e urgência’. Tal requisito foi observado sempre nas situações em que fiz uso desta prerrogativa constitucional.(...) Governamos hoje sob o signo da negociação, do entendimento, do diálogo.(...)

"O Brasil se afastou do trem da história nos anos oitenta; para nós, infelizmente, a chamada ‘década perdida’. Aprofundando tendências históricas nesta década, o estado brasileiro cresceu de forma desmesurada. Passou a ocupar espaços nunca antes imaginados no processo produtivo nacional. Essa hipertrofia do estado, em lugar de induzir o desenvolvimento e a geração de riquezas, acarretou, isto sim, o desperdício de recursos escassos e a formação de bolsões de ineficiência, que só ampliaram as distorções e os erros do passado. (...)

"Seria imoral continuarmos a conviver passivamente com o fato de sermos detentores do rótulo de umas nações com pior distribuição de riqueza do mundo. Somos vistos hoje, infelizmente, como um símbolo da iniquidade social. Isso não pode continuar assim.

"Vamos assumir plenamente a responsabilidade que nos cabe na reversão desse quadro. É preciso por fim ao paternalismo do estado. É preciso dar um basta ao falso assistencialismo. O único caminho é a mobilização de todos... Nenhum projeto... funcionará se não for articulado e levado adiante pela própria sociedade. O governo é apenas um instrumento e não um fim em si próprio. (...)

"A iniciativa privada necessita assumir o papel de agente fundamental no processo de modernização da estrutura produtiva do país e a superação dos desequilíbrios sociais. O Estado deve buscar uma nova relação com a iniciativa privada. Uma relação que supere a falsa dicotomia entre o Estado e o mercado. Esse é o caminho que vem sendo seguido com êxito pelas nações desenvolvidas e as sociedades plenamente realizadas. (...)

"Os governos devem julgar-se, e devem também ser julgados, em função do que estava a seu alcance fazer, e não com base em expectativas irreais de mudança da realidade. É importante repetir que nenhum governo, por si só, muda o País. Os governos podem, isto sim, inspirar e liderar transformações que a sociedade efetivamente deseje e se mobilize para alcançar.

"As nações que se engajam em grandes transformações de sua realidade devem ter uma noção clara do tempo histórico. Problemas e desafios como os que temos diante de nós não se superam da noite para o dia. É preciso ter paciência, é preciso não desistir, avançar sempre com confiança e fé no diálogo."

Pudemos perceber, com estas passagens, que os atuais discursos de Fernando Henrique guardam vários traços de semelhança com o discurso do ex-presidente Fernando Collor. Trata-se da mesma agenda, de uma abordagem semelhante dos problemas do desenvolvimento econômico-nacional e se espera agenciar a mesma adesão social ao projeto neoliberal. As passagens acima, extraídas do discurso proferido por Collor quando apresentou seu Projeto de Reconstrução Nacional (584) formulam idéias-chave que foram retomadas por Fernando Henrique. A modernização do país, a promoção da justiça social, a crítica ao corporativismo, ao clientelismo, ao fisiologismo, a crítica à sobreposição dos interesses regionais que negam os interesses da sociedade como um todo, a crítica ao estado hipertrofiado que desperdiça recursos e gera bolsões de ineficiência, a crítica à concentração de riqueza, ao paternalismo estatal, ao falso assistencialismo, o chamamento da sociedade para a sua contribuição ao bem comum, a defesa da iniciativa privada como agente fundamental da modernização do país, o estabelecimento de um novo relacionamento entre estado e iniciativa privada seguindo o modelo das nações mais avançadas, o realismo político, o papel do governo como inspirador e líder das transformações que a sociedade como um todo deve realizar, a ênfase na temporalidade do processo de mudanças, o ânimo, a confiança e a fé no diálogo - tudo isso são características típicas dos pronunciamentos de Fernando Henrique que estavam presentes naquele discurso de Collor. Ambos também adotaram o mesmo expediente das medidas provisórias.

Essas coincidências não são casuais. Seguramente, várias delas poderiam ser encontradas em discursos de outros presidentes em vários países latino-americanos que assumem o receituário do Consenso de Washington. É preciso destacar que o conteúdo substantivo das proposições neoliberais tem feito os governantes articularem a noção de projeto nacional à noção de abertura internacioal, o sucesso daquele ao modo esta se realiza. Assim, o crescimento econômico depende de fluxos favoráveis de capitais internacionais e a modernização das indústrias depende da competição internacional; do mesmo modo, o insucesso das políticas econômicas encontrará sempre algum elemento do cenário internacional como justificativa: elevação das taxas de juros nas grandes potências, movimentos internacionais de capitais especulativos, reorganização dos mercados internacionais sob blocos econômicos, etc. Nenhum dos governos que implementa este programa afirma, entretanto, que o Estado vem perdendo a capacidade de garantir a soberania nacional, mesmo mantendo políticas dramáticas que podem consumir bilhões de dólares anualmente para manter a estabilidade das moedas nacionais em meio ao processo de globalização. Nos discursos de Fernando Collor, os conceitos de nação, patriotismo e outros do gênero tinham mais destaque que nos de Fernando Henrique. Nos pronunciamentos deste último, expressões como sociedade brasileira, população e até mesmo povo são empregados com mais freqüência. Em ambos os casos, contudo, tais signos são modelizados a partir da mesma linguagem hegemônica neoliberal. Neste contexto, mudaram-se os presidentes e mudou-se, em parte, as ênfases lingüísticas, mas não mudaram, contudo, as políticas neoliberais adotadas e o modo de as mídias serem utilizadas ao convencimento social de que é uma justa necessidade implementar tais medidas em favor do bem comum.

A ofensiva do modelo neoliberal, entre outros aspectos, captura os espaços de liberdade democrática sob a lógica de expansão do grande capital, abolindo qualquer projeto nacional que garanta a autonomia popular. Se considerarmos a história do Brasil, veremos que as elites do país sempre adotaram opções autoritárias em detrimento da real democratização do poder político. Atualmente elas agem conforme esta mesa tradição, seja reformando as leis em função de interesses dos grandes grupos econômicos estrangeiros, seja repassando-lhes parte do patrimônio nacional, tanto através das privatizações, quanto através do pagamento de altas taxas de juros ao capital financeiro internacional. Considerando alguns desses aspectos, José Luís Fiori argumentou que "de fato o Plano Real não foi concebido para elegê-lo, [para eleger FHC], ele é que foi concebido para viabilizar no Brasil a coalizão de poder capaz de dar sustentação e permanência ao programa de estabilização e reformas preconizadas pela ‘comunidade financeira’ internacional" (585). De fato, o patrimônio público do país está sendo usado pelo governo como atrativo para renovar bilhões de dólares em títulos com os quais o país enfrenta o déficit comercial e o pagamento de serviços, juros e amortizações da dívida externa. Se nenhuma alteração dessa política for promovida, quando exaurir o patrimônio público que está sendo vendido, o destino do país será provavelmente semelhante ao do México, com conseqüências que extrapolam o âmbito econômico.

Conforme Maria da Conceição Tavares, as políticas globalitárias adotadas pelo atual governo têm efeitos graves sobre "a intelectualidade, a mídia e as práticas sociais e culturais do país". Comenta a economista que os efeitos desse regime globalitário - que começou a ser implementado no Brasil antes do governo de Fernando Henrique - "vão além do malfadado episódio Collor, convertendo rapidamente as aspirações de nos tornarmos uma nação democrática num simulacro globalitário, delirante e deprimente de manipulação de massa. Em outros tempos essas práticas eram simplesmente denominadas fascismo. Hoje, que os tempos mudaram e a polícia política não voltou a bater às nossas portas, podemos talvez traduzir o nosso globalitarismo periférico pela expressão que Samuelson usou em 1980: fascismo de mercado!" (586)

A caracterização do governo de Fernando Henrique como "globalitário", também tem sido feita por estudiosos do direito, sociólogos e artistas, entre intelectuais de outras áreas. No documento aprovado pelo III Encontro Internacional de Direito Alternativo do Trabalho realizado no Brasil em 1997, caracteriza-se o Governo de Fernando Henrique deste modo: "Ao governo FHC, que adota o ideário neoliberal e subordina-se ao Consenso de Washington, pode ser aplicado o neologismo ‘globalitário’, que combina globalismo e autoritarismo. Sua vertente imperial, centralizadora e autocrática, deve ser denunciada" (587). Por sua vez, Gilberto Vasconcellos, doutor em Sociologia pela USP, afirmou que o governo FHC "é uma ditadura sem presos políticos e sem tortura... ainda. Mas é uma ditadura videofinanceira: uma simbiose num processo que aglutina Estado, mídia e mercado. Incluindo partidos políticos." (588) Esse autoritarismo, por valer-se das mídias, permanece dissimulado. Como afirmou Sérgio Penna Kehl, professor na USP de planejamento industrial e política de negócios, o governo Fernando Henrique é "sorrateiramente autoritário, porque, embora de aparência liberal, é submisso à ditadura dos tecnocratas e também às ações dos aproveitadores que comandam... o sistema monetário internacional" (589). Salientou também que "estamos convivendo, infelizmente, com um novo modelo de governo autoritário: um governo neo-autoritário!" (590) Este neo-autoritarismo é o que temos caracterizado, neste estudo de caso, como regime globalitário.


26. A Teoria Econômica e Política de Fernando Henrique Cardoso

A teoria econômica e política que orienta o governo de Fernando Henrique somente pode ser conhecida considerando-se as suas ações práticas. É na prática que se revela a teoria e não nos discursos que supostamente a manifestariam. Não é correto dizer, portanto, que há uma contradição entre a teoria social-democrata de Fernando Henrique e sua prática, pois de fato a teoria que organiza sua prática não é social-democrata, mas neoliberal. Sua teoria e sua prática, assim, correspondem adequadamente uma à outra. A incompatibilidade que aparece entre o seu discurso de que o governo visa promover o bem estar social e a situação concreta de marginalização e exclusão que vem se acentuando, é resolvida semioticamente pela introdução da temporalidade utópica que possibilita a produção de cenários agenciadores de esperanças, como os que se construíram quando da estabilização da moeda. Do ponto de vista da sociologia do conhecimento estaríamos ante o paradoxo de Karl Mannheim (591) - o caráter utópico ou ideológico do governo de Fernando Henrique somente poderia ser afirmado a posteriori, após a realização do conjunto das reformas, colocando o crítico na posição delicada de não poder combatê-lo invocando a realidade presente. Se, graças às semioses hegemônicas, a responsabilidade da tragédia presente for imputada a outros que não o governo - sejam os empresários atrasados que não se modernizaram competitivamente, sejam os especuladores financeiros internacionais que sabotam os planos econômicos, sejam os "opositores" que combatem as reformas, etc - fica preservada sua utopia e mantida a sua hegemonia. Do ponto de vista de tal estratégia, tudo o que o país está vivendo até agora em seu governo seriam ajustes, inicialmente, monetários, com as medidas provisórias do Plano Real, e posteriormente estruturais, com as reformas constitucionais que, criando a possibilidade de uma nova etapa de desenvolvimento nacional, beneficiaria a todos no futuro. Contudo, para que esta nova etapa possa ter um prosseguimento seguro, a nação deveria reeleger o mandatário pois somente ele seria capaz de conduzir o país a esse intento. Essa construção imaginária da realidade estabelece uma figura narrativa envolvendo atores que são interpretados a partir de uma semiose que concorre para a continuidade da prática implementadora de um mesmo projeto cuja teoria, contudo, se funda em um outro referencial e envolve, de fato, um conjunto mais complexo de protagonistas e de relações.

Considerando a teoria que norteia Fernando Henrique Cardoso, o cientista político José Luís Fiori publicou, em julho de 94, um artigo sob o título "Os Moedeiros Falsos", mostrando a coerência entre o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que colaborara no desenvolvimento da Teoria da Dependência e o então ex-ministro e candidato à presidência FHC. Consideremos, pois, o enquadramento desta coerência sob o pano de fundo do Consenso de Washington e do atual movimento de globalização a partir das referências apresentadas por Fiori, a fim de compreendermos o debate que se lhe seguiu, incluindo as próprias observações de Fernando Henrique a esta análise.

Em 1993, o Institut for International Economics reuniu em Washington cem especialistas de várias parte do mundo em um seminário sobre A Política Econômica da Reforma Política. Um estudo de John Williamson intitulado Em Busca de um Manual de ‘Tecnopolíticos’ teve centralidade para este evento. Em dois dias de reflexão, executivos de governos, de bancos e de empresas, juntamente com técnicos, debateram com representantes de 11 países asiáticos, africanos e latino-americanos, retomando questões que já haviam sido trabalhadas 4 anos antes em outro evento que acabou sendo denominado por Williamson como Consenso de Washington. Entre os temas do debate estava a questão sobre quais seriam "as circunstâncias mais favoráveis e as regras de ação que poderiam ajudar um ‘technopol’ a obter o apoio político que lhe permitisse levar a cabo com sucesso" o programa de estabilização ajustado no Consenso de Washington. O processo possui três fases, como descreve Fiori: "a primeira consagrada à estabilização macroeconômica, tendo como prioridade absoluta um superávit fiscal primário envolvendo invariavelmente a revisão das relações fiscais intergovernamentais e a reestruturação dos sistemas de previdência pública; a segunda, dedicada ao que o Banco Mundial vem chamando de ‘reformas estruturais’: liberalização financeira e comercial, desregulação dos mercados, e privatização das empresas estatais; e a terceira etapa, definida como a da retomada dos investimentos e do crescimento econômico." (592)

Ainda anos 80, contudo, como as políticas monetaristas experimentaram muitos insucessos na estabilização econômica, introduziu-se na discussão do combate inflacionário o "fator credibilidade" que desdobrou-se na discussão da dolarização, por somente algum período, das economias inflacionárias. Já nos anos 90 considerava-se o "fator poder político" como decisivo no sucesso ou fracasso de um programa econômico. Aquele seminário de 1993 daria, então, significativa importância a este tema. O documento de Willianson, resumia as perguntas e hipóteses centrais a respeito das dificuldades peculiares de cada etapa do plano e sobre alternativas que haviam sido encontradas nos diversos países. Segundo Fiori, "porque reconhece os perversos efeitos sociais e econômicos das medidas de austeridade e liberalização sobre as economias e populações nacionais, o autor também entende, com este programa, como fica difícil eleger e sustentar um governo minimamente estável. De onde surgiram várias táticas ou artifícios políticos capazes de fazer os eleitores aceitarem os desastres sociais provocados em todo lugar pelo programa neoliberal como sendo transitórios ou necessários em nome de um bem maior e de longo prazo." (593)

Como condições favoráveis à implantação dos planos apareciam vários aspectos: o fato de os programas serem ampliados após grandes catástrofes, fossem guerras ou situações hiper-inflacionárias que minavam a resistência social à medidas; o fato dos tecnopolíticos defrontarem-se com oposições desorganizadas ou desacreditadas; ou que eles, nas palavras de Fiori, dispusessem "de uma liderança forte, capaz de ‘insularizá-los’ com relação às demandas sociais" (594). Em todos esses casos contudo, foi necessária uma coalizão prévia de poder, forte o bastante, para "aproveitar as condições favoráveis e assumir, por um longo período de tempo, o controle de governos sustentados por sólidas maiorias parlamentares. Esta, sim, uma condição considerada indispensável para poder transmitir ‘credibilidade’ aos atores que realmente interessam, neste caso: os ‘analistas de risco’ das grandes empresas de consultoria financeira, responsáveis, em última instância, pela direção em que se movem os capitais ‘globalizados’." (595)

O Plano Real se inscreve no quadro geral dessas referências, não somente por ter sido elaborado por uma equipe de technopols, mas pela sua própria concepção estratégica de longo prazo que se vincula ao sucesso de sua estratégia de curto prazo: "ajuste fiscal, reforma monetária, reformas liberalizantes, desestatizações, etc, para que só depois de restaurada uma economia aberta de mercado possa dar-se então a retomada do crescimento. Neste sentido, os seus ‘technopols’, como bons aprendizes, sabem que a dolarização inicial da economia será sempre um artifício inócuo se não estiver assegurada por condições de poder inalteráveis por um período prolongado de tempo." (596)

Relevando esses aspectos, Fiori considera que "o Plano Real não foi concebido para eleger FHC, foi FHC que foi concebido para viabilizar no Brasil a coalizão de poder capaz de dar sustentação e permanência ao programa de estabilização do FMI, e dar viabilidade política ao que falta ser feito das reformas preconizadas pelo Banco Mundial." (597) Todavia, ao aceitar, com sua candidatura, ser expressão desse movimento de interesses internacionais, Fernando Henrique age de modo coerente com sua posição desenvolvida nos anos 60, quando da formulação da Teoria da Dependência. Relembra Fiori que "FHC foi um dos pioneiros a investigar e concluir, já em 1963, que ‘a burguesia industrial nacional estava impedida, por motivos estruturais, de desempenhar o papel que a ideologia nacional-populista lhe atribuía’ e que, por isto, ‘havia optado pela ordem, isto é, por abdicar de uma vez por todas de tentar a hegemonia plena da sociedade, satisfazendo-se com a condição de sócio-menor do capitalismo ocidental’" (598).

Fernando Henrique descobria, assim, no empresariado brasileiro, uma característica universal do capitalismo "a de que pode estar associado, indiferentemente, segundo as circunstâncias, a um discurso ideológico protecionista ou livre-cambista, estatista ou anti-estatista, obedecendo apenas ao interesse maior da liberdade de movimento do capital e dos desdobramentos geoeconômicos e políticos da sua continuada internacionalização." (599)

A condição periférica se definia, então, pela falta de uma moeda estável e de capacidade de progresso tecnológico, sendo a condição dependente uma forma peculiar em que estão associados, econômica e politicamente, o empresariado nacional, os capitais internacionais e o Estado, formando um tripé que tanto promoveu a "internacionalização do mercado interno" - com as multinacionais liderando quase todos os setores de ponta e respondendo por 40% da produção nacional - quanto uma "industrialização associada" que seria inevitável sob a perspectiva da burguesia industrial do país. Esta situação estrutural de dependência não impedia o crescimento econômico e não o associava a um único modelo social e político, concluindo-se, portanto, que o caráter autoritário e excludente do capitalismo no país era uma feição que a aliança conservadora impingira ao Estado desenvolvimentista brasileiro.

A trajetória da mesma reflexão destacaria o caráter político do atual processo de globalização, sendo marcantes desde os anos 80, as "... pressões crescentes de governos e organismos multilaterais sobre a condução doméstica das economias periféricas." Assim, os ajustes nacionais não são de ordem puramente econômica, cabendo aos Estados optar e decidir sobre a sua própria conexão na redefinição das coalizões de poder, tanto interna e quanto externa. No quadro brasileiro, o velho tripé e sua coalizão de poder entraram em crise necessitando ser refeitos. Como considerava Fiori em 1994, "dos antigos aliados, a velha elite política está esfacelada regionalmente; o sócio internacional ‘financeirizou-se’; o empresariado local, que já se ‘ajustou’ a nível microeconômico, mantém sua velha opção ainda quando tenha encontrado seu exato lugar enquanto ‘sócio menor associado’, e por isto já se alinhou plenamente com o livre-cambismo anti-estatista do ‘Washington Consensus’; e, por fim, o Estado, falido financeiramente, já foi além disto destruído de forma absolutamente irracional e ideológica pelo governo Collor." (600)

Fernando Henrique, portanto, tinha clareza de que o problema central residia em refazer esta articulação, gestando uma nova coalizão de poder que tornasse o empresariado brasileiro um sócio menor do capital internacional. Assim, afirma Fiori, que FHC "deixou seu idealismo reformista e ficou com seu realismo analítico abdicando dos ‘nexos científicos’ para se propor como ‘condottiere’ da sua burguesia industrial, capaz de reconduzi-la a seu destino manifesto de sócia-menor e dependente do mesmo capitalismo associado, renovado pela terceira revolução tecnológica e pela globalização financeira." (601)

O passo seguinte foi a adesão de Fernando Henrique à estratégia de ajustes propostos pelo FMI e pelo Banco Mundial e a opção por uma aliança de centro-direita não apenas por uma razão de viabilidade eleitoral, mas tencionando o estabelecimento de uma coalizão duradoura de poder: "O que a nova aliança de FHC se propõe, na verdade, é algo mais sério e definitivo: remontar a tradicional coalizão em que se sustentou o poder conservador no Brasil. Este o verdadeiro significado direitista de sua decisão que, aliás, não é de hoje, mas data de maio de 1991, quando apoiou a reorganização do governo Collor em aliança com o próprio PFL de ACM e Bornhausen." (602) Assim conforme Fiori, Fernando Henrique "optou por sustentar a estratégia do Consenso de Washington, valendo-se da mesma coalizão de poder que construiu e destruiu o estado desenvolvimentista de forma igualmente excludente e autoritária. E, com isto, em nome do seu realismo, na verdade está se propondo, ainda uma vez, a refundar a economia sem refundar o Estado brasileiro. E aqui sim, contradiz um ponto essencial de suas idéias e de seu passado reformista." (603)

Outra contribuição, apresentada no seminário de Washington em 1993, foi um estudo comparativo feito por J. Nelson e S. Hagaard considerando 25 países que haviam assumido as teses do Consenso de Washington e como eles haviam reagido econômica, política e socialmente à sua implantação. A conclusão básica era que o projeto não avançava se não houvesse "credibilidade" e que tal credibilidade supunha governos com uma forte autoridade centralizada. Assim, para que se pudesse alcançar um "mercado quase perfeito", era necessário recorrer-se à política e a Estados fortes. Fiori destaca, então, seis elementos que levaram o estudo a esta conclusão:

"Primeiro, porque na maioria dos países que já aplicaram as políticas e fizeram as reformas recomendadas não houve a esperada recuperação dos investimentos. E isso porque, em segundo lugar, o apoio empresarial, interno e externo, não passa do entusiasmo retórico para a cooperação ativa, indispensável inclusive para a primeira etapa da estabilização sem ter garantias sobre as reformas liberalizantes.
Em terceiro lugar, como consequência, aliás, todos os países que lograram vencer a etapa da estabilização contaram com uma ajuda externa politicamente orientada; no caso chileno, 3% do PIB durante cinco anos, de ajuda pública mais um aporte equivalente, durante três anos, por parte dos bancos comerciais; 5% do PIB durante cinco anos no caso da Bolívia; 2% do PIB durante seis anos no caso do México, etc. Mas, em quarto lugar, mesmo quando obtiveram ajuda externa e se estabilizaram, estas economias ‘reformadas’ atravessaram profundas recessões, perdas significativas da massa salarial e aumento geométrico do desemprego, os famosos ‘custos sociais’ da estabilização. Em quinto lugar, mesmo ali onde houve retomada do crescimento, esse tem sido lento e absolutamente incapaz de recuperar os empregos destruídos pela reestruturação e abertura das economias. Sendo que para culminar, em sexto lugar, no caso das experiências bem comportadas, as etapas de estabilização e reformas tomaram de três a quatro anos cada uma, e até uma década para a retomada efetiva do crescimento."
(604)

Torna-se, neste quadro, portanto, bastante difícil manter credibilidade junto aos empresários e aos trabalhadores, concluindo-se que os possíveis resultados positivos dos ajustes preconizados pelo FMI e pelo BIRD necessitam de um poder estável que seja favorável às reformas por um longo período de tempo. Mas como viabilizaram-se eleitoralmente coalizões reformistas que duraram tanto tempo e que necessitavam de apoio popular a um conjunto de medidas, apresentadas pelos tecnopolíticos, que penalizavam o próprio povo ? Nos estudos feitos, três caminhos apareceram: "a) o dos partidos capazes de assegurarem a vitória e a maioria parlamentar por mais de uma década, o que em geral se deu em sociedades com menores índices de inflação e/ou de desigualdade social; b) o da existência de condições excepcionais, de guerra ou recuperação democrática, favoráveis ao logro de acordos sociais e políticos entre partidos, sindicatos e empresários; c) ou então, como os estudos mencionados indicam em quase todos os casos dos países com economias de alta inflação, grande fragilidade externa e extrema desigualdade social, o apelo a regimes autoritários permanentes ou ‘cirúrgicos’, como foi o caso da Turquia no início dos 80 e do Peru mais recentemente." (605)

No cenário brasileiro, Fernando Henrique, em particular, optou pela continuidade do projeto de modernização neoliberal e pela manutenção de um bloco político de centro-direita para a sua consolidação, cuja estratégia socioeconômica, considerando-se os demais países em que foi implantada, gera e aprofunda conscientemente desigualdades sociais. Fernando Henrique assumiu, desse modo, levar adiante um "projeto anti-social e quase sempre autoritário", através de um bloco de forças políticas que sempre foram autoritárias no país, responsáveis pela alta concentração renda no Brasil que se verifica antes, durante ou depois da era desenvolvimentista. "Neste sentido - afirma Fiori - é que se pode concluir, sem ofender a lógica, que FHC realmente aderiu a um projeto de ‘aggiornamento’ do autoritarismo anti-social de nossas elites." (606) Contudo, ele acabou por se transformar em refém de sua própria equipe de tecnopolíticos e passou a ter pouca margem de negociação com os segmentos da coalizão - o que ficou evidente na dificuldade do governo realizar as reformas que lhe seriam necessárias mesmo tendo, teoricamente, a maioria folgada e absoluta no congresso. Fez-se do sucesso antecipado de curto prazo uma arma para a vitória eleitoral, tendo o plano de estabilização nascido de forma autoritária. Conforme argumentou Fiori ainda antes das eleições, "lançado num período eleitoral quando, por definição, as escolhas são livres e os resultados indeterminados, o pré-anunciado sucesso do Plano supõe que só possa haver um ganhador, ou pior, supõe que, quem quer que seja o ganhador, terá que se submeter aos ‘technopols’, a menos que queira enfrentar uma hiperinflação explícita, com fuga de capitais, sobrevalorização cambial e desequilíbrio fiscal gerado pelas altas taxas de juros. (...) E quanto à moeda que nasce ..., seguirá sendo uma moeda virtual ancorada numa paridade cambial, que, por sua vez, está atrelada a futuro político impossível de ser assegurado de antemão." (607)

Luis Carlos Bresser Pereira, coordenador financeiro da campanha de Fernando Henrique, combatia as análises que associavam o candidato a esse projeto globalitário. Segundo ele, tratava-se "... de uma grande sacanagem...confundir o projeto do PSDB para o país com as teses chanceladas pelo Consenso de Washington." (608) Bresser argumentava que o Estado brasileiro estava "falido" em dois sentidos. Por um lado, era incapaz de sustentar a moeda nacional bem como de financiar as políticas públicas. Por outro lado, desde 1930, a intervenção do Estado brasileiro na economia se dera com vistas a alavancar um modelo de desenvolvimento que se baseou na substituição de importações e que a partir dos anos 60 - seguramente desde a década de 80 - revelou-se totalmente superado. Conforme Bresser, segundo o jornalista Barros e Silva, "o programa do PSDB visaria ... devolver ao Estado sua capacidade de coordenar as políticas sociais e não simplesmente deixar a economia à mercê da marcha louca do mercado. Este seria o sentido social-democrata da candidatura FHC, uma resposta contemporânea ao neoliberalismo que Washington procurou vender como a única saída possível para a América Latina ao longo da década de 80." (609)

Em seu artigo respondendo especialmente a Fiori, Fernando Henrique tece várias considerações a fim de ir desmontando, um a um, os argumentos de seu crítico, tentando com isso, solapar-lhe a tese central. Afirma inicialmente que os candidatos à Presidência têm dificuldade em apresentar suas propostas e esclarecer como pretendem executá-las, permanecendo alguns mais na apresentação de sonhos do que de sua viabilização, uma vez que muitas metas seriam inexeqüíveis. Mesmo assim, salienta que, "... os candidatos das principais forças políticas têm propostas e tentam mostrar como pretendem levá-las à prática." (610).

Considerando as suas propostas para o futuro do Brasil e as alianças que seriam capazes de concretizá-las, Fernando Henrique afirma que as análises críticas de suas propostas situam-se no contexto político e não acadêmico e que, em razão disso, os críticos o acusariam de assumir um projeto neoliberal compondo seu pensamento com uma suposta inflexão política à direita: "que eu teria resolvido vestir a máscara do ‘Consenso de Washington’ e andar de braços dados com o clientelismo político ‘nordestino’." (611) Resumindo o ideário do Consenso, afirma que o mesmo se refere "...ao conjunto de políticas ditas neoliberais, a começar pela estabilização da moeda através do ajuste fiscal e da reforma monetária, para prosseguir com as privatizações, a abertura da economia e a retomada do crescimento, no contexto de uma economia globalizada." (612)

O cerne da discussão, entretanto, estaria para Fernando Henrique em outro lugar. Desde a posição de Mario Covas, em 1989, sobre a necessidade de um "choque de capitalismo" no Brasil, a questão posta era: "como fazer funcionar a economia do país e como manter a democracia, ampliar a igualdade e assegurar a justiça social. Em um país como o Brasil, de pobreza e concentração de renda, essa temática é crucial. Em outros termos, para resolver as questões não só econômicas como sociais, existe uma via social-democrática para o desenvolvimento sustentado e para a melhoria da vida do povo que se distinga, por um lado, da crença no automatismo do mercado e na força da empresa e, por outro, do intervencionismo burocrático-estatal?" (613) Para Fernando Henrique a resposta é sim. Esta seria a posição do PSDB que teria ganho hegemonia no espaço político, fazendo com que os partidos à direita desistissem de ter candidatos ou plataformas próprias ou, se as tivessem, deixavam-nas a cargo de ideólogos isolados, como Roberto Campos, por exemplo. Afirma mais ainda que "ao invés dos ideólogos da esquerda comemorarem a inexistência de propostas neoliberais em nossa política – graças à sua inviabilidade prática – fazem o contrário; pintam a cara do PSDB e de seu candidato, como se fossem a encarnação do ‘neoliberalismo’. (...) É patético que os ideólogos que se crêem donos da verdade não percebam que o PFL apóia uma candidatura do PSDB, e não o contrário. E por que apóia? Porque os líderes mais lúcidos do partido reconhecem que é preciso (até mesmo para ganhar as eleições) reformular o ideário liberal, e mesmo liberal-social, e estabelecer uma ponte com as realidades do país." (614)

É neste quadro que a proposta da candidatura de Fernando Henrique teria um significado peculiar, coerente com sua análise sociológica: "assim como há 30 anos mostrei (o que na época era obscuro) que a ‘burguesia nacional’ – ou melhor, a ideologia a ela imputada pela esquerda – não tinha a menor condição de propor um projeto hegemônico para o Brasil por causa do que chamei de ‘internacionalização do mercado interno’, continuo crendo que a globalização da economia – queiram ou não os críticos – existe como consequência de uma nova forma (até tecnológica) de produzir. É esta questão que não está posta por meus adversários nem, portanto, é incorporada às propostas que eles apresentam. Por não reconhecerem, objetivamente, sociologicamente, economicamente, que houve uma mudança no padrão estrutural da economia e da sociedade contemporâneas, têm propostas regressivas." (615)

Respondendo às críticas de Fiori, de que teria abandonado uma postura reformista para viabilizar a reconstrução de uma aliança oligárquica que sustentasse o "Consenso de Washington", Fernando Henrique afirma que perante a ameaça hiperinflacionária que "corroía o Estado e arruinava não só a economia mas a oferta de empregos e os salários do povo", era preciso ser radical, como Ministro da Fazenda, e enfrentá-la, valendo-se dos instrumentos que pudessem debelá-la: "Não se trata, portanto, de colocar rótulos nem de fazer-se uma inversão temporal dos fatos, supondo-se que houve uma ‘inteligência política internacional e superior’ que, como nova mão invisível, desta vez na política, ordenou a disputa eleitoral e dirigiu a ação governamental para impor a ‘pax americana’ em nossa economia. Chega de artificialismo e de estereótipos conspiratórios deste tipo." (616)

Conforme Fernando Henrique, a política de estabilização proposta por sua equipe, sem qualquer tipo de monitoramento do FMI e sem provocar recessões, era "apenas uma tentativa para assegurar condições de governabilidade" e para permitir que o país chegasse às eleições. Após isso, ele pretenderia "reconstruir o Estado" para permitir o combate ao apartheid social. A resposta a esse desafio, " nada tem de neoliberal, mas sim de social-democrata que funcione em uma sociedade de massas, com muita pobreza e marginalização cultural, baseada em uma economia de mercado já inserida, em larga medida, na economia globalizada e ainda incapaz de reduzir as desigualdades. (...) Como não sou incoerente nem reneguei minha tradição de análise sociológica, não preciso usar de linguagem diferente conforme o auditório. Mas daí não decorre que eu defenda o ‘livre mercado’, que desconsidere a necessidade do fortalecimento do Estado, nem muito menos que deixe de ver a ‘dívida social’ como a parte principal e mais urgente a ser resolvida da herança nefasta de nosso passado elitista e antidemocrático. É neste ponto que reside a necessidade da imaginação sociológica para realizar as reformas." (617)

Para Fernando Henrique, os críticos de pouca profundidade veriam o neoliberalismo como alternativa às ideologias passadas e em extinção, como o nacional-autoritário, o nacional-popular ou o nacional-desenvolvimentista. A realidade brasileira e de vários outros países seria outra, apontando uma alternativa a estes modelos. O clientelismo tradicional também estaria quebrado e sem remissão. Sua aliança com o PFL, portanto, nem se faria em busca de votos de uma clientela cooptada, nem assumiria o neoliberalismo como alternativa a modelos do passado, mas visava enfrentar os desafios da realidade brasileira propondo um programa de reformas viáveis ao país: "O grande calcanhar de Aquiles – ou o grande desafio – da presente situação brasileira é precisamente este: a inserção do Brasil no sistema produtivo internacional, para servir os interesses nacionais e populares, requer um Estado reformado capaz de abrir-se eficazmente às pressões e aos interesses da população, especialmente da maioria de pobres que vivem uma cidadania incompleta." (618)

Frente a isso o Partido dos Trabalhadores, embora sua generosidade para com os pobres, seria incompetente em compreender o novo cenário globlal e preso aos interesses corporativos da burocracia: "Por minimizarem a revolução produtiva que já ocorreu e o próprio papel da iniciativa privada (melhor dito societária) na produção e incorporação de inventos tecnológicos e por não darem a devida importância à crítica ao corporativismo estatal – forma moderna e não por isso menos negativa do clientelismo político – são incapazes de ajustar ao contexto contemporâneo a luta pela igualdade e pela erradicação da miséria. Não percebem que, a despeito das intenções que podem ser generosas, a ação da estatal que estimulam cria uma nova barreira à melhoria das condições gerais de vida do povo e ao avanço da economia para tornar possível aumentar e distribuir a riqueza." (619)

Por sua parte, a proposta de Fernando Henrique, do PSDB e dos que o apoiam, era reformar o Estado, "...enfrentando os interesses corporativos, para criar os instrumentos de uma nova articulação entre o país e a ordem mundial, sem que esta se dê, como hoje, à matroca, respondendo automaticamente às propostas internacionais ou refugiando-se no protecionismo de um ‘estatismo envergonhado’, manipulado pelos interesses corporativos de funcionários, às expensas dos interesses da imensa maioria do povo. Em outros termos, dado o colapso, que vem de longe da ‘burguesia nacional’ e dada a ineficiência do Estado, estaremos condenados com ou sem ‘Consenso de Washington’, à ausência de um projeto nacional viável, se continuarmos na indefinição política quanto à forma e à eficiência do Estado. É para a reforma do Estado, tornando-o mais competente, com carreira e treinamento adequado dos funcionários, mais voltado para a inovação social e menos preso aos interesses corporativos das empresas estatais e dos segmentos ‘cutizados’ da burocracia, que se requer na nova fórmula política." (620) Contudo, Fernando Henrique se dá conta de que necessita justificar-se perante o comportamento possível de seus aliados, que mantém o estilo clientelístico-ideológico arcaico que ele renega e que poderiam imprimir uma feição corporativo-imobilista à tentativa de reforma do Estado. Quanto a isso afirma: "se as forças políticas conservadoras de qualquer dos partidos aliados – ou dos demais partidos – tentarem opor-se a esta reforma, encontrarão na sociedade e nos setores lúcidos do PSDB e de seus aliados uma barreira intransponível. Nisto reside nosso compromisso político com o eleitorado." (621)

Fernando Henrique, então, avança na consideração do caráter utópico de sua proposta, perguntando-se se suas propostas dariam certo. Mas como tudo na história, argumenta ele, também aqui não se sabe de antemão o resultado. Salienta, entretanto que o Brasil, sob a perspectiva econômica, "dispõe de condições favoráveis para, controlada a inflação, orientar-se por metas ambiciosas de crescimento, dando um salto qualitativo no seu padrão estrutural. Para isso terá de aumentar o ‘coeficiente de massa cinzenta’ em nosso modelo econômico: população mais educada, maiores investimentos em ciência e tecnologia, senso de prioridades. Enquanto isso se processa é necessário aproveitar nossas vantagens estratégicas: metas audaciosas na agricultura, programas intensivos de treinamento de mão-de-obra, expansão dos setores de serviços, especialmente no turismo etc. E muito investimento (privado, local e internacional, junto do que seja possível no setor público) em energia, portos e transportes. A grande questão a ser enfrentada pelo próximo governo, uma vez aceito este patamar de ação imediata, será política e social. Ao invés de caminhar na direção suposta por meus críticos ‘de esquerda’ (ou de imaginação curta?), a aliança capaz de viabilizar o salto necessário passará pelo apoio dos setores sensíveis à necessidade de reestruturação e de fortalecimento do Estado na direção apontada, tanto no meio empresarial como no meio sindical e profissional, e pelo realinhamento dos setores produtivos, nacionais e multinacionais, para, sob liderança política clara, enfrentar os novos tempos, implementando com urgência as reformas de estrutura capazes de dar à população mais empregos, melhor educação, saúde, habitação e alimentação." (622) As reformas propostas por Fernando Henrique possuiriam um caráter utópico de "combater na prática, e não só nas intenções, a pobreza e a miséria que tornam o Brasil um país deitado eternamente no atraso e no subdesenvolvimento." Este cenário estaria suportado, entretanto, pela própria realidade efetiva e sua realização seria uma exigência moral: " Hoje existem condições objetivas para reverter este quadro. Não fazê-lo, ou é incapacidade ou, o que é pior, imoralidade pela conivência com a exploração do povo e a injustiça social." (623)

Podemos, atualmente, tecer algumas considerações sobre aquele artigo do, então, candidato à presidência. Conforme ele, a grande questão a ser enfrentada por seu futuro governo era fazer funcionar a economia, manter a democracia, ampliar a igualdade, assegurar a justiça social, aumentar e distribuir a riqueza - uma vez que dívida social era uma herança do passado elitista e anti-democrático do país. Após três anos de seu governo, entretanto, estamos mais distantes da realização da justiça social ou da promoção da igualdade, nossa economia é refém do capital financeiro e nossa democracia está cada vez mais virtualizada. Fernando Henrique afirmou que desejava reconstruir o Estado para fazer uma guerra contra o apartheid social, contudo, a reforma do Estado - especialmente quanto à previdência, educação e seguridade social como um todo - prejudicou ainda mais os já excluídos e marginalizados. Embora tenha dito que era necessário fortalecer o Estado, o que se vê é o seu desmonte com as políticas privatistas. O mais curioso, entretanto, é que todos as características do "Consenso de Washington" resumidas pelo próprio Fernando Henrique em seu artigo, tornaram-se características marcantes de seu governo: a luta pelo ajuste fiscal para conseguir estabilizar a moeda nacional, as privatizações generalizadas, a abertura radical da economia ao movimento dos capitais internacionais, a busca por retomar o crescimento que seria alavancado por investimentos externos, etc. As reformas de estrutura visavam "dar à população mais empregos, melhor educação, saúde, habitação e alimentação". Contudo, o país bate recordes de desemprego, a inadimplência nos aluguéis fez aumentar o número de despejos e da população morando nas favelas e nas ruas, ao passo que, a educação e a saúde receberam menos verbas a cada ano e a campanha contra a fome continua apresentando índices trágicos. Seguindo o próprio argumento de Fernando Henrique, se havia condições objetivas para reverter o drama da população, e se ele não o fez, devemos concluir que ele ou revelou "incapacidade" para governar o país ou "imoralidade de pela conivência com a exploração do povo e com a injustiça social".

O argumento de Fernando Henrique, aplicado a si mesmo, entretanto, ao atribuir os resultados da política a qualidades do governante, equivoca a análise sociológica pois a questão transcende a capacidade ou moralidade do governante - trata-se da inconsistência da teoria argumentada por ele na qual supunha que o Estado nacional manteria uma capacidade organizadora do desenvolvimento, mesmo depois de abdicar dos instrumentos de disciplinamento do capital externo. A situação de dependência, aqui, significa que as decisões econômicas tomadas no país - o patamar da taxa de juros, por exemplo - depende menos de um projeto de desenvolvimento nacional para combater a pobreza e a miséria do que de reações a movimentos especulativos internacionais ou de tendências e oscilações nos mercados de ações. Eis porque seu governo não poderia ser social-democrata - porque no quadro dos conflitos, aliou-se internamente ao país com aqueles que historicamente foram os responsáveis por essa exclusão e, no quadro externo, passou a promover interesses do grande capital na expectativa de que ele aportasse recursos para o desenvolvimento do país, o que se revelou um equívoco. Nenhum governo tem governabilidade sobre os capitais que lhe são externos e a internacionalização dos capitais fragiliza todos os governos que não são capazes de gerar e manter uma significativa poupança nacional interna. A geração de poupança interna somente depende de desenvolvimento de atividade econômica estrategicamente planejada a partir dos recursos disponíveis (624). Esse diagnóstico falho sobre os mecanismos de geração de poupança interna, levou o governo ao equívoco de apostar que os capitais internacionais viriam em abundância na forma de investimentos produtivos ao país. De fato, contudo, estes capitais excedentes já não podem mais ser aplicados produtivamente nem nos centros hegemônicos nem nas economias periféricas, uma vez que a saturação dos mercados no mundo e a alta produtividade das unidades produtivas existentes pressionam a ampliação do disposable time por toda a parte, isto é, do tempo de trabalho disponível - mesmo no capitalismo periférico - que o capital não precisa mais incorporar para multiplicar-se quando a ciência se torna o principal fator produtivo. E é justamente porque esses capitais sobrantes não podem mais ser convertidos em produto final no processo produtivo, e em mercadoria no processo do comercio, que eles buscam outros modos de se valorizar seja na pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias - o que significa capital aplicado na produção de conhecimento - seja na ciranda financeira internacional. A revolução tecnológica em curso desenvolveu outras mediações para a produção de riqueza objetiva que depende cada vez menos da força de trabalho e que pode substituir certas matérias primas que se escasseiam. Assim sendo, por quais motivos os capitais internacionais viriam desenvolver atividades produtivas no Brasil que fossem capazes de promover um crescimento auto-sustentado de nossa economia após a estabilização monetária ? Teriam significativa economia de custos em produzir aqui ? Mais significativa que na Argentina, no México ou no Chile ? E quais vantagens comparativas teríamos para que os capitais viessem massivamente para cá ? Se fosse barateamento nos custos da produção, que economia seria essa: nas matérias primas, na força de trabalho, no consumo de energia ? O raciocínio aí subjacente opera com vetores da segunda revolução industrial e não da atual, que se desdobra com a Tecnologia da Informação. Se viessem para cá para explorar o mercado consumidor interno, a estratégia deveria ser ampliar o mercado consumidor interno e a poupança interna e não a estratégia de premiar o capital financeiro internacional permitindo a evasão da riqueza do país com déficites colossais.

Enzo Faletto, sociólogo chileno que juntamente com Fernando Henrique teve importante contribuição nas reflexões sobre a dependência nos anos 60 e 70, após analisar algumas reflexões de Fiori (625), entre os quais se inclui as que apresentamos anteriormente, elaborou, a pedido de um jornal, um artigo sobre as Razões da Crise do Estado. Retomando o tema "da capacidade de ação do Estado e as funções que lhe correspondem", Faletto destaca que os vários artigos de Fiori são significativos para os demais países latino-americanos e não apenas para o Brasil. No consenso assinalado por Fiori, parecia ter lugar algumas características dos atuais estados que foram destacadas por J. Wallenstein, como descreve Faletto: "sua participação em um sistema interestatal, que jogaria o papel de ‘superestrutura política da economia mundial capitalista’, de sorte que na medida em que os diferentes países participem desta economia mundial lhes é requerido adequar-se à esta ‘interestatalidade’." (626) Destaca, contudo, Faletto que a partir da reflexão sobre a dependência evidenciou-se que o modo de relacionamento externo dos Estados latino-americanos é um dos aspectos que caracterizam a sua conformação, bem como "os modos em que as relações sociais, econômicas e políticas internas se constituem e que dão lugar a peculiaridades que distinguem as experiências latino-americanas de outras." (627) Faletto destacará então o aspecto interno desta nova conformação, considerando elementos apresentados por Fiori e apresentando outros.

A análise de Fiori evidenciaria "o papel que o Estado tem tido na construção de um certo tipo de desenvolvimento econômico, além da conformação de modalidades de relação social e de constituição de cidadania política" (628) e a crise das alianças que o hegemonizaram. Para Faletto, contudo, além de se constatar a crise das formações anteriores, seria necessário detectar causas dos atuais impasses, entre eles o problema da "heterogeneidade das coalizões políticas, tanto de governo como de oposição, o que incide na dificuldade para sustentar políticas de médio e longo prazo e na necessidade de entregar-se a complexos e desgastantes jogos de ‘engenharia política’ para resolver conflitos de interesses que tendem a expressar-se de um modo estritamente particularista ou corporativo." (629) Destaca que a aliança que sustentava o modelo de desenvolvimento para dentro entrou em crise por uma série de conflitos: "por um lado agudização de tensões entre os componentes da aliança, acrescida da presença de novos setores - principalmente trabalhadores rurais e grupos populares urbanos, que pressionavam por novas demandas - e por outro, ineficácia do Estado para, em tal contexto, manter a estabilidade e atuar com eficiência." (630) Em resposta a essa crise do modelo que vigorava até então, "buscou-se um tipo de desenvolvimento que privilegia o funcionamento de uma ‘economia de mercado’, tanto no plano interno como no modo de relacionamento com o exterior." (631) Como resultado dessa mudança, ocorreu uma transformação dos mecanismos de integração social: "Se no modelo de ‘desenvolvimento para dentro’ o Estado - inclusive com suas ineficiências - tinha jogado um papel chave na promoção de políticas de integração, especialmente por meio das políticas sociais, como educação, saúde, habitação e ampliação da cidadania, o suposto agora era que tal papel ‘integrador’ devia ser cumprido pelo mercado. Em muitos dos países latino-americanos, a aplicação desta política manifestou-se em uma forte tendência a privatizar funções do Estado, como as mencionadas de educação, saúde, habitação e outras." (632) A aplicação desta política em muitos países da América Latina levou a uma "forte tendência a privatizar funções do Estado, como as mencionadas de educação, saúde, habitação e outras. O primeiro efeito imediato foi uma desestruturação dos graus de coesão social existentes, já que muitos grupos viram perder-se seus mecanismos tradicionais de inserção na sociedade." (633) Por outro lado, apesar de conter-se a tendência inflacionária, em vários países latino-americanos "agudizaram-se os processos de concentração da riqueza, sem que os setores desfavorecidos pudessem realmente ter acesso a mecanismos de compensação." (634)

Faletto considera que a luta entre os papéis do Estado e do mercado é um conflito entre dois modos de constituição da racionalidade: "alguns sustentam que esta deriva do funcionamento do mercado - e daqueles que nele detêm o poder, diria Fiori. Outros, ao contrário, postulam que a racionalidade deveria derivar de um projeto constituído pelos diferentes agentes da sociedade e que corresponde ao Estado plasmar numa racionalidade que lhe é própria." (635) Na experiência latino-americana o Estado tem tido papel decisivo nos projetos de desenvolvimento e a atual conjuntura de transformação tecnológica e produtiva lhe traz fortes desafios, pois a passagem para novas formas de produção e consumo exige a definição de um projeto de futuro, de longo prazo, a partir do qual se desdobrem ações concretas tendo em vista esse futuro almejado. Entretanto, esse projeto de longo prazo não pode descuidar da dramática situação de exclusão social. O desenho desse projeto de futuro, "não pode fazer esquecer que no plano social o problema mais grave dos países latino-americanos é a ausência de integração interna que se expressa em um alto grau de desigualdade social: esta não apenas se manifesta em termos de diferenças na distribuição da renda, mas também em profundas diferenças de modo de vida e ausência de valores compartilhados que constituem princípios de identidade nacional. O poder, a riqueza e a renda têm tendido a concentrar-se em grupos que se constituem como privilegiados, quando, em contrapartida, vastos setores ficam em situação de marginalidade e exclusão." (636)

Em face desse desafio de buscar uma economia dinâmica e de estabelecer processos que assegurem a equidade social, Faletto considera "decisiva uma participação do Estado, o qual não pode ser concebido como uma instituição à margem ou acima da sociedade que o conforma." (637) O problema a ser equacionado é "o da constituição plena da sociedade civil - sem marginalização nem exclusão - que se expressa em um Estado que constitui uma de suas formas principais de organização." (638) Para tanto não basta ao Estado somente expressar certos grupos organizados, mesmo que sejam consideráveis como os mais dinâmicos nela existentes. Destaca Faletto, que "as sociedades latino-americanas têm se diversificado e é necessário gerar condições para que os diversos grupos se organizem e expressem suas demandas. É necessário, por conseguinte, pensar em um tipo de Estado que, sem negar os conflitos, torne possível a interação de todos os grupos existentes e em que a racionalidade de um projeto surja da interação entre eles." (639)

Essa análise publicada em janeiro de 1996 parece descrever os impasses da realidade brasileira em 1998. Pode-se afirmar que os mecanismos de integração social existentes vem se esfacelando progressivamente e que o mercado não tem perspectivas de cumprir essa função integradora da parcela de excluídos que aumenta. A iniciativa privada dos agentes econômicos que atuam no mercado, sofrendo as pressões das políticas de ajuste, as pressões do câmbio e da taxas de juros, nada fez no sentido de promover a integração social dos marginalizados. Pelo contrário, o movimento de modernização das empresas e racionalização de custos e a competição com produtos importados contribuiu para a ampliação do desemprego agravando ainda mais essa desintegração; por outra parte, uma grande demanda social em serviços como saúde e educação que antes eram fortemente atendidos pelo estado, ficaram descobertos, e a iniciativa privada não tem interesse em atendê-las - por exemplo, na área de prevenção de doenças infecto-contagiosas, entre outras, que afetam em maior medida as populações de baixa renda.

Do mesmo modo, no Brasil dos anos 90 também se verificou a contenção da tendência inflacionária acompanhada do processo de concentração de riqueza. O Estado, contudo, é impermeável ao grande conjunto de demandas sociais diversificadas, atendendo parcialmente alguns setores e modelizando suas ações através das mídias, a fim de parecer atuar decididamente no enfrentamento da exclusão social dos amplos segmentos marginalizados. O que se percebe nos últimos anos é uma adequação das políticas econômicas nacionais ao movimento internacional dos capitais, redesenhando o cenário de dependência do país em face do grande capital internacional, adequação essa coordenada por um dos teóricos da dependência. Nisto não há entretanto nenhuma contradição.

De fato, conforme José de Souza Martins, membro do Instituto de Estudos Avançados da USP, a teoria da dependência não era uma perspectiva, necessariamente de esquerda. Com efeito, tratava-se de uma "tentativa de ajustar o desenvolvimento do país a possibilidades reguladas fora dele, no plano internacional, pelos grandes conglomerados econômicos, pelos governos estrangeiros dos países ricos" (640). Segundo Martins, nos anos 60, "a crítica à situação de dependência era uma crítica de esquerda, mas, ao mesmo tempo, era uma proposta de adesão estratégica", possibilitando então, a emergência de muitos mal-entendidos. A esquerda falava da dependência como se fosse do imperialismo, ao passo que, da fato, tratava-se do ajustamento da economia nacional à economia "globalizada". Destaca Martins que Fernando Henrique foi, posteriormente, um dos primeiros brasileiros a falar em "globalização". Não houve contudo uma "direitização" em seu pensamento quando passou da "teoria da dependência" à "teoria da globalização". Segundo o autor, "a lógica da globalização já estava lá naquelas preocupações de esquerda, claramente presentes nas idéias de Fernando Henrique". Paulo Nogueira Batista Jr, comentado esta análise de José de Souza Martins afirma que, "em suma, o posicionamento internacional do atual governo tem raízes mais fundas do que geralmente se imagina. Remonta às pesquisas e elocubrações de Fernando Henrique e de uma certa esquerda nos anos 60. Em outras palavras: não há por que esquecer o que ele escreveu. Depurado da terminologia marxista ou quase-marxista em voga naqueles tempos, os textos de então dão um certo embasamento às opções e omissões de hoje. (...) A literatura acadêmica sobre a chamada teoria da dependência é bastante ampla. Mas o que vale a pena frisar é que Fernando Henrique, já faz muito tempo, empenha-se com notável coerência em dar continuidade a uma tradição inexpugnável das elites brasileiras: o esforço para manter viva a chama do passado colonial, devidamente modificado, disfarçado e ‘modernizado’." (641)


27. A Ideologia Democrática nos discursos de Fernando Henrique

em uma passagem de seu livre A História Real, Gilberto Dimenstein e Josias de Souza afirmam que Fernando Henrique Cardoso "aprendeu na prática que o objetivo da política, ao contrário da vida intelectual, não é a verdade mas o poder" e que "a coerência pode ser o melhor caminho para a consciência, não para os votos." (642)

Do ponto de vista das ciências humanas, entretanto, não se pode fazer um recorte claro onde termina a teoria e começa a ideologia. Mas é possível perceber, contudo, quando o argumento busca elementos indiciais que o suportem e quando basicamente opera com modelizações simbólicas pretendendo representar seu objeto dinâmico de modo a agenciar interpretantes que não lhe seriam indicialmente atribuíveis.

Tendo presente este critério, abordaremos, nesta seção, um conjunto de discursos proferidos por Fernando Henrique sobre democracia, eleições e imprensa. O que se percebe, consideerando a análise indicial feita nas seções anteriores, é um distanciamento entre os discursos de FHC e sua teoria política, teoria esta perceptível nas práticas concretas de seu governo. É importante fazermos esse destaque, uma vez que a modelização das mídias sobredifica esses discursos que, quando tomados como expressão da realidade, engendram um fenomeo de virtualização da política, quando se toma - neste caso - o simulacro por real.

a) Estado, Emprego e Dívida Social

Durante a campanha eleitoral de 1994, no mês de agosto, Fernando Henrique concedeu uma entrevista à revista Veja em que apresentava várias teses como candidato à presidência. Ao ser questionado sobre como enfrentar a dívida social, defendeu o papel ativo do Estado, afirmando que o mercado não se interessa pelos pobres. "Se você deixar só para o mecanismo de mercado resolver essa questão, não vai dar. O mercado só resolve uma parte dos problemas, mas não a pobreza. Quando você consolida uma massa de pobreza, o mercado não resolve, deixa à margem. Você tem de ter Estado. Você tem de ter uma reforma efetiva do aparelho de Estado." (643) Contudo, com as políticas de abertura aos movimentos do capital internacional - como destacou Faletto analisando outros países - o que ocorreu no Brasil foi uma exclusão ainda maior desses segmentos, que não interessam aos agentes econômicos do mercado e que ficaram desassistidos pelo Estado.

Quanto à situação do emprego, Fernando Henrique foi questionado se em seu governo seriam criados pelo menos 6 milhões de empregos. Sua resposta foi clara. "Pelo menos. Isso é pouco. Agora, vai poder criar mais? Depende do crescimento. O crescimento do turismo, da agricultura, das pequenas, médias e microempresas, as áreas multiplicadoras de empregos. Obras públicas. Se você fizer um plano, por exemplo, uma coisa de hidrelétrica, de reativar com parceria do capital privado, essas 19 hidrelétricas, quantos empregos você cria ? Agora, não é o Estado que vai criar. Ele tem a condição de estimular. Se retomar a taxa histórica de crescimento. Não vamos botar 7% a 8%, mas 6% ao ano, aí você tem condições. Se você orientar para essas áreas." (644) Entretanto, não somente não foram criados 6 milhões de empregos, como também o crescimento foi ínfimo. Uma quantidade imensa de pequenas, médias e microempresas faliram e as obras públicas sofreram cortes em todo o país. A manutenção das taxas de juros elevadas, a sobrevalorização do câmbio e a facilidade às importações, acabaram sendo um estímulo à inibição da atividade produtiva no país, ampliando o desemprego que atingiu níveis históricos.

Em face da questão sobre o que fazer com os excluídos, Fernando Henrique disse não acreditar nas estatísticas sobre o quadro social no país e concluiu: "Não acho que existam os 32 milhões de miseráveis". Conforme sua radiografia, "a miséria do Brasil está em bolsões localizados: no interior do nordeste e na periferia das grandes cidades. Precisamos atualizar o mapeamento desses bolsões." Quanto à confiabilidade dos indicadores, afirmou: "Precisamos fazer com que o IBGE funcione. Sem dados confiáveis, o governo não pode trabalhar." (645) Ora, será que não há pobreza nas regiões norte e centro-oeste - não haverá pobreza em Rondônia, Acre, Mato Grosso, etc. ? Também não existe, nas pequenas cidades de todas as regiões, inclusive do sul e sudeste, em alguma medida, subhabitação, desnutrição ou indigência ?

Sobre a campanha contra a fome o candidato afirmou que ela foi importante porque "chamou a atenção para um problema real", cuja solução é complicada. "A campanha da fome acabou e agora se fala na criação de novos empregos. Não é assim." Mas, por que não? Porque "as pessoas que estão nos bolsões de miséria não disputam empregos. Elas precisam de assistência e solidariedade." E concluiu: "O Betinho me mostrou uns dados comprovando que a discussão na sociedade continua muito elevada em termos de solidariedade. É possível. Mas o Estado tem de agir de forma direta." (646) Partindo do pressuposto de que a pobreza está localizada em bolsões, Fernando Henrique, naquela entrevista, discorda que a geração de empregos resolva o problema dos que vivem na miséria, uma vez que estes não disputariam empregos. Para além de assistência e solidariedade, eles necessitam, conforme o candidato, de políticas públicas adequadas à sua promoção humana e social, o que implicaria na geração de atividades produtivas mediante as quais possam vir a satisfazer suas necessidades a partir de seu próprio trabalho. Ao que parece o Estado deveria agir de forma direta enfrentando a pobreza localizada nesses bolsões. Contudo, o programa Comunidade Solidária que tinha como principal objetivo atender os excluídos reduziu-se a uma grande peça semiótica com um resultado concreto pouco satisfatório, como já analisamos anteriormente.

b) Sobre a Liberdade, as Eleições e a Democracia - A Utopia do quase lá, mas não ainda...

No primeiro discurso que proferiu logo após sua vitória em 1994, Fernando Henrique discorreu sobre vários temas que retomaria, posteriormente, quando do recebimento de títulos honoris causa. Afirma ele que "nós hoje somos uma sociedade na qual a liberdade é um valor e o aperfeiçoamento das instituições democráticas, eu diria que é um destino, porque o povo assim deseja e porque aquele que governa o país, ainda que tivesse –não tem– a pretensão de remar contra a maré não conseguiria. Essas eleições foram prova disso." (647) Ora, o aperfeiçoamento das instituições democráticas aqui, significaria o quê ? Frente a todos os aspectos analisados anteriormente sobre a campanha eleitoral de 1994, podemos afirmar que as palavras aqui descolam-se de signos indiciais para servir de suporte ao agenciamento de adesões ao seu governo, legalmente estabelecido e formalmente democrático.

O virtual presidente, entretanto, vai mais longe, afirmando que "campanha não é feita para iludir o eleitor, campanha é feita para sinalizar os rumos. Eles estão sinalizados e os rumos serão detalhados nesses próximos meses, de tal forma que a ação administrativa que se seguirá possa ser consequente." (648) Os rumos assinalados eram o de cinco prioridades: emprego, educação, agricultura, saúde e segurança. Os indicadores apresentados sobre estes aspectos, entretanto, mostram que essa expressão, que se pretendia utópica revelou-se ideológica no sentido da sociologia do conhecimento, uma vez que não foi realizado o que fora proposto.

Mais à frente o caráter globalitário desta democracia fica patente. Afirma Fernando Henrique: "quem escolheu foi o eleitor, com muita liberdade. Foram frustradas, foram debalde as tentativas de imaginar que essa eleição pudesse ser conduzida. Um país como o nosso, de 94 milhões de eleitores, com mais de 150 milhões de habitantes, que soube resistir ao processo da autocracia para transformar-se numa democracia, que tem agüentado tanta injustiça social, que tem mantido a sua crença na democracia, não é manipulável. O eleitor sabe. Quem não percebeu isso se iludiu. Quem imaginou que fosse possível ... levar o eleitor por engano aqui ou ali, por manipulação, é falta de imaginação, de crença neste país. O eleitor escolheu e escolhe com muita liberdade e com muita firmeza os seus rumos." (649) O principal aspecto dos regimes globalitários é destacar a liberdade. Todos são livres, especialmente para eleger seus representantes; todos são livres para se informar da melhor maneira; todos são livres para decidir pelo melhor para si e para o país. Entretanto, a maior parte das entidades especializadas na divulgação da informação são empresas capitalistas que tem por objetivo último sobrevir na concorrência comercial. Ressalvada uma parcela dos veículos que se pautam por uma ética aplicada ao direito de informação da cidadania e que garantem autonomia a seus jornalistas, grande parte da mídia produz cenários favoráveis a orientações políticas adequadas à defesa dos interesses do capital em geral e de segmentos economicamente dominantes em particular. No caso dos pequenos veículos - como jornais e rádios nos pequenos municípios do interior, por exemplo - a pressão dos patrocinadores, dos que colocam seus anúncios nos jornais ou rádios, é tamanha que acaba sendo um filtro ideológico, determinando o que o veículo informa e como informa. A maioria desses veículos, entretanto, são propriedade de empresário vinculados a determinados grupos políticos ou fruto de concessões que beneficiam outros membros desses mesmos grupos. Em geral, as grandes mídias, especialmente agências de notícias, acabam influindo decisivamente nos objetos a serem abordados e na abordagem que será feita de terminados objetos nos referidos contextos. Assim, todos decidem com muita liberdade a partir de um conjunto de informações que são tomadas pela sociedade como se fossem a realidade, ao passo que são apenas signos que podem corresponder ou não parcialmente a algum objeto dinâmico. Faltando a habilidade de interpretar e articular as informações, recebendo informações qualitativamente precárias e quantitativamente insuficientes, os eleitores poderão votar no que lhes pareça melhor ao país, quando na verdade votam em uma simulação que agenciando seus desejos e utopias, movendo seus imaginários, leva-os ao exercício de escolher o simulacro como real. Os dados indiciais anteriormente destacados sustentam essa afirmação.

Voltando-se para o profissionais da informação, continua Fernando Henrique o seu discurso. "Mas eu também quero dizer uma palavra à imprensa –por imprensa eu designo os meios de comunicação em geral– não há democracia sem imprensa, sem imprensa livre, sem imprensa ativa. Muitas vezes incomoda. Quando incomodou, eu tentei passar despercebido o incômodo. Procurei manter minhas relações com a mídia da maneira mais cordial possível, estivesse eu à frente ou atrás das pesquisas, e não o fiz por gentileza pessoal só, fiz porque eu acho que uma democracia precisa informar. Às vezes o atropelo é grande, talvez não fosse necessário –no futuro conversaremos sobre isso–, mas a informação não pode ser negada e a crítica livre tem que ser mantida. A acidez de um ou outro comentário é altamente compensada pelo fato de saber-se que essa acidez deriva da liberdade e não da imposição. Eu agradeço o fato de que, nesses meses de campanha, com todo o séquito que me circundou e com toda a liberdade que foi usada, eu não tenho do que me queixar." (650) Teria sido a Free Press uma forma de imprensa livre e ativa, e sua forma de ação um procedimento adequado para bem informar a opinião pública ? Uma democracia precisa informar. Mas quem informa e o quê informa ? A informação que divulga, refere-se parcialmente e com que base indicial ao objeto dinâmico que diz representar ? O discurso feito pelo virtual presidente, contudo, caracteriza a imprensa brasileira como livre e ativa, inclusive, tendo-o incomodado com a acidez da crítica. Tal acidez, segundo seu argumento, deriva da liberdade e não da imposição. Assim, o comportamento do conjunto das mídias - mesmo com a acidez das exceções - comprovaria a legitimidade democrática das eleições formalmente e legalmente realizadas da qual ele sai eleito.

Neste quadro também a campanha eleitoral aparece como algo distinto do que foi. Em certa altura, afirma o futuro presidente: "mas, sobretudo, quero agradecer o comportamento do meu ad... mais próximo, eu ia dizer adversário, já não o é. Líder, o Lula, que manteve a campanha dentro dos limites do razoável. Essa campanha me parece que deixou uma marca para o Brasil de que é possível discutir, divergir, brigar, chegar ao limite, no plano político, daquilo que incomoda, mas deixou fluir idéias, deixou fluir programas, deixou fluir alternativas e o Brasil precisa disso. O Brasil precisa que haja uma competição nesse nível." (651) Ora, teria sido razoável a utilização da máquina pública em favor da eleição de Fernando Henrique ? Ou a divulgação pela Free Press da "entrevista" com Gustavo Franco sobre o "calote" na dívida interna? Teria sido razoável que Ricupero fizesse camapnha favorável ao candidato do governo valendo-se das mídias na condição de ministro da Fazenda? Afinal, a que "competição" democrática Fernando Henrique se refere? Nesta passagem, entretanto, ele reconhece que havia outros programas além do seu, outras propostas e que Lula manteve a campanha e os debates no limite do razoável, que a competição de alternativas para o Brasil é saudável. Prefere reconhecer Lula como líder e não como adversário, pois naquele momento era preciso considerar a parcela do eleitorado que votara na oposição. Poucos meses depois, contudo, taxaria as oposições como grupos "do contra" que não tinham propostas para o país valendo-se de adjetivos pejorativos os mais diversos para desqualificá-la.

Mais à frente, em seu discurso, destaca sua própria trajetória intelectual como um elemento valioso para o posto de mandatário da nação, que virá a ocupar: "...dada a minha formação teórica, intelectual, nunca deixei de ser intelectual nem deixarei. Acho que no mundo moderno não será capaz de dirigir um Estado grande e importante como é o Brasil quem não tiver capacidade de discernimento um pouco além do dia-a-dia." (652) Como veremos mais à frente, entretanto, ao tratarmos de suas análises sobre a sociedade, Fernando Henrique cumpre uma função intelectual importante como organizador da hegemonia das classes economicamente dominantes no país.

Mas como afirma, não caberia apenas ao presidente intelectual conduzir os destinos do país: "Nós temos a responsabilidade, nós, todos os brasileiros, de conduzir este país de maneira democrática e firme, com a maior igualdade, melhor crescimento econômico, melhor distribuído nos seus frutos e uma presença internacional mais ativa. Um país do qual nós possamos ter –como temos– orgulho sem arrogância. Um país que nós podemos dizer que queremos, gostamos dele." (653) Reafirma-se novamente a utopia: participação de todos, democracia, igualdade, crescimento econômico, distribuição de renda, presença internacional, orgulho nacional, amor pelo país. Contudo, a participação de todos soa como algo muito distante quando se analisa a atitude do governo que legisla abusivamente com medidas provisórias, independizando-se do Congresso ao mudar inúmeras leis do país; a democracia fica prejudicada quando sequer o orçamento da União é respeitado; a desigualdade social, por sua vez, acentuou-se; o crescimento econômico ficou aquém do necessário e, estrategicamente, operou-se de modo inadequado às necessidades do país - uma vez que não privilegiou segmentos geradores de emprego ou que promovessem maior distribuição de renda.

A utopia desenhada, entretanto, parece próxima ao toque da mão aberta e estendida. "Isso eu acho que nós estamos à beira de poder dizer –repito– sem arrogância a todo mundo. Nós superamos as nossas dificuldades, vamos superar. A maior delas –e a essa eu vou me dedicar...– é a desigualdade social. É diminuir as diferenças. A maior delas hoje é a injustiça. Eu disse uma frase que repito aqui, nós já somos um país desenvolvido. Somos a décima economia do mundo, com muita injustiça." (654) Contudo, passados três anos essas diferenças se acentuaram e as altas taxas de juros aumentaram ainda mais as injustiças, com despejos de inquilinos inadimplentes, famílias inteiras desempregadas sem ter onde morar, mais pessoas morando nas ruas e favelas. Os cortes dramáticos nas políticas sociais, foram índices contraditórios a esse cenário utópico.

A parte final de seu discurso é dedicada à convergência e o respeito à divergência: "E nessa busca de convergência eu não vou faltar nunca às minhas convicções, vou respeitar sempre as dos outros e continuarei a ser o professor que sempre fui e, portanto, homem de diálogo. Com firmeza. Não se governa o Brasil sem tomar decisões, ainda que no isolamento. Quem não assumir a responsabilidade de liderança em certos momentos não pode ser presidente da República. Mas quem não entender que a liderança não quer dizer imposição autocrática, senão quer dizer a condução num rumo que se percebe que é o rumo mais diretamente sentido por este país, também não pode ser." (655) O respeito ao diálogo supõe o respeito à diferença. Ao negar posteriormente a diferença das esquerdas, dizendo que elas não têm propostas, Fernando Henrique afirma que elas não possuem um logos ou uma racionalidade que possa ser referência concreta a uma ordenação da sociedade e da economia de modo alternativo ao seu projeto e melhor do que o mesmo. Não aceitando que exista outra racionalidade adequada à transformação do país além da sua, a sua ação discursiva estará centrada em um único (mono) logos, que resulta em um monólogo, mesmo que tal logos se manifeste em múltiplas vozes potencializadas pelas diversas mídias.

De fato, Fernando Henrique não continuou a ser "professor", pois seus discursos revelam-se distantes de apresentar as contradições e conflitos da realidade brasileira, tendo abandonado a elaboração conceitual sobre ela, preferindo organizar um conjunto de representações parciais que universaliza gerando contrafações indicialmente detectáveis. Destaque-se, ainda, que o episódio da aprovação da emenda da reeleição e da inviabilização de uma candidatura própria do PMDB são manifestações, não de uma "autocracia" à moda antiga, mas modelizada midiaticamente aqui como preservação da segurança do Plano Real e continuidade da estabilidade do país.

c) A Radicalização da Democracia

Nas palestras que fez nas cerimônias em que recebeu títulos de doutor por Honoris Causa, na França, na Itália e na Inglaterra, Fernando Henrique repetiu várias reflexões sobre a radicalização da democracia como resposta aos desafios colocados pelos tempos modernos.

Em seu discurso sobre "alguns aspectos da questão da democracia nos dias de hoje" (656), ele teceu críticas ao "atraso" dos partidos políticos, dizendo que novos atores estão se incorporando à cena política, mas que aqueles não os compreedem sob um novo conceito de cidadania, uma vez que têm dificuldades em acompanhar "as demandas de representação geradas no contexto de fragmentação temática que caracteriza a vida política contemporânea" (657). Segundo Fernando Henrique, "é preciso reconhecer que a dicotomia clássica entre Estado e sociedade civil, bem como sua simplificação na oposição Estado e mercado, são insuficientes para definir o ‘locus’ da política e a arquitetura das instituições políticas contemporâneas" (658). Para ele, "defender que o simplismo das dicotomias tradicionais entre esquerda e direita, operários e capitalistas, deve ser substituído pelo reconhecimento da complexidade de nossas sociedades não significa ser conservador." (659) Pois "novos atores" vem se incorporando à pratica política democrática, entre os quais estão as Organizações Não-Governamentais - ONGs, e o que se denominou por "Terceiro Setor" - entidades privadas que, de alguma forma, prestam serviços sociais (660). Fernando Henrique acrescentou, ainda, os meios de comunicação à sua lista, uma vez que eles "criam uma agenda pública, inescapável para o homem de Estado", salientando não conhecer nenhuma autoridade pública que "não comece o dia pela leitura de jornais" (661). Para Fernando Henrique, os partidos políticos são vítimas do que ele denominou como "atraso em compreender" este novo conceito de cidadania.

Assim, a noção de cidadania fica bastante ampliada contemplando as exigências desses novos atores sociais: "O conceito de cidadania não é mais exclusivamente o simples exercício do voto, mas também a luta por um meio ambiente saudável, pela garantia do emprego, por segurança, por direitos de minorias, por educação e saúde de qualidade, por remuneração adequada de aposentados, por lazer, por um ambiente sadio eticamente" (662). Um conceito de cidadania, similar a este - com exceção do que se refere ao Terceiro Setor - foi construído coletivamente no início dos anos 90 no Brasil nos encontros e congressos de movimentos sociais-populares realizados pela Central de Movimentos Populares, quando se definiu a luta pela cidadania como um dos eixos articuladores dos movimentos populares e unificador de suas lutas. Contudo, as mesmas reivindicações e propostas de políticas públicas apresentadas ao presidente pela CMP, em caravanas desses mesmos movimentos populares que se reuniram em Brasília, propostas essas que visavam ampliar a realização da cidadania no país, foram desconsideradas pelo governo. A isto o discurso do presidente responderia destacando que as dificuldades orçamentárias dos Estados acabam criando "novos limites para o esforço de inclusão social, para a construção daquela soma inteligente de democracia formal e democracia substantiva que já foi o programa da social-democracia européia" (663). Além disso, "vários dos temas que afetam o dia-a-dia das populações envolvem fatores transnacionais" (664), sendo preciso compreender adequadamente essas mediações.

Por outro lado, afirmou Fernando Henrique que o exercício desta democracia exige apreço aos seus próprios procedimentos. Conforme o presidente é perceptível em alguns uma "certa nostalgia do autoritarismo, que, ainda que não se pregue a sua volta, tende a manifestar impaciência com o processo de diálogo e negociação próprio da democracia" (665). Argumentando com sua experiência prática no poder, afirmou em seu pronunciamento na Itália que, certa vez lhe pediram "não para ser autoritário, mas para ser mais rápido e direto na solução dos problemas" (666). Comentando o fato, disse o presidente: "Como se fosse possível um regime democrático não levar em conta os diferentes interesses da sociedade" (667). Para Fernando Henrique, face aos desafios atuais, "a resposta não está em menos, mas em mais democracia." Para ele, "radicalizar a democracia significa dar condições efetivas de liberdade para que todos, mesmo os que não estão organizados, falem." Assim, somente essa "democracia radicalmente pluralista, cada vez mais democrática, vai resolver o problema da exclusão, inclusive porque não há outro caminho" (668). Do ponto de vista internacional, ele afirmou que é necessário repensar o papel de instituições internacionais como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial e inclusive repensar "a composição e as formas de atuação do Conselho [de Segurança da ONU], de modo a assegurar que ele tenha a legitimidade indispensável" (669).

Em seu discurso o presidente afirma, ainda, que esse novo quadro obriga "o homem político, o líder, a criar formas não-tradicionais de interlocução e interpelação". Contudo, agrega: isso é uma "tarefa imensa que a poucos é dado cumprir com consciência e grandeza". Ao final do pronunciamento, todavia, com uma humildade que não lhe é comum desde que assumiu a Presidência, concluiu acerca desse papel: "Não aspiro ser capaz de tanto. Que pelo menos a lucidez da Academia ajude-me a formular, senão a exercer, os papéis que a democracia contemporânea exige dos presidentes e dos demais dirigentes políticos." Todavia, ao cruzar em Londres com uma manifestação promovida por uma ONG, Survival International, em que se empunhavam cartazes cobrando do presidente "direitos indígenas, já" e nos quais se defendia a luta dos sem-terras brasileiros, o presidente perguntou aos jornalistas: "Será que esse pessoal não aprende que é importante discutir, conversar, que não adianta nada gritar?" E continuou: "Na nova democracia, é preciso que todos os lados aprendam, o governo, os partidos e também os grupos que estão querendo se mobilizar pela sociedade, porque, se não, não tem resultado prático e a democracia fica abalada com isso." (670)

É desnecessário dizer que esse discurso não expressa a teoria que conduz o presidente, uma vez que sua prática o contradiz. Embora não tivemos acesso ao discurso todo, mas ao que foi divulgado nas publicações que consultamos da imprensa no país, a grande lacuna neste discurso sobre a democracia - para alguém que colaborou na reflexão sobre a dependência - foi justamente a relação hegemônica internacional a partir do movimento dos grandes capitais, embora tenha se aproximado do tema quando referiu-se à influência das transnacionais em problemas do dia-a-dia das populações. Destacar os movimentos sociais internos é um aspecto a ser considerado em suas mediações com os movimentos globais que os afetam. O hiato do discurso é, assim, um elemento para a sua própria inteligibilidade. O grande ator da cena política dos países periféricos que se submeteram a ajustes econômicos sob o receituário do Consenso de Washington, passou a ser o grande capital financeiro especulativo, cujas pressões e movimentos obrigam os governos ao pagamento de taxas de juros elevadas e a dramáticos cortes nas políticas sociais e ajustes que penalizam expressivos segmentos da população. Esse ator, que hegemoniza o cenário político, contribui para que as demandas cidadãs não sejam atendidas (671). É preciso salientar também, sobre a afirmação de que "os meios de comunicação criam uma agenda pública inescapável para o homem de Estado", que Fernando Henrique não desdobra a análise de que as grandes mídias são grupos capitalistas privados e que portanto são grupos com interesses econômicos definidos que criam uma "agenda pública". Esta agenda, portanto, ou é pública, isto é, criada pelo povo e veiculada pelas mídias, ou é criada pelos meios de comunicação sendo assumida pela povo. O sociólogo Herbert de Souza já havia apontado que quando a mídia destaca algo como problema social, as pesquisas de opinião pública captam algumas semanas depois aquele problema como sendo grave devendo ser elencado entre as prioridades governamentais. De fato, os meios de comunicação criam uma agenda, mas a grande agenda pública, isto é, a agenda que norteia as políticas de um governo não pode ser a agenda das mídias, embora o governo deva posicionar-se frente a ela.

d) A sociedade aprendendo a nova democracia para vir a ser o que ela ainda não é.

A noção de sociedade varia bastante nos usos e empregos de Fernando Henrique. Em certos momentos pode ser associada ao que em geral se denomina "povo", outras vezes está mais próximo de "nação". Seja como for, os seus significados vão se alterando conforme a necessidade semiótica presente na retórica do governo (672).

Ao estilo do populismo clássico, em certa oportunidade, ele afirmou: "Nós, de certa forma, quase simbolizamos o que a sociedade deseja. (673)" Se assim é, quem lhe faz oposição faz oposição à sociedade mesma. No discurso populista clássico o líder é aquele que capaz de sentir e expressar o sentimento do povo, sendo capaz de conduzi-lo ao atingimento de seus objetivos.

Em outro sentido, a sociedade, que não é sábia em si mesma, pode adquirir a sabedoria e amadurecer a partir da ação de seus líderes que a conduzem: "Estamos chegando numa situação de preços justos, sem congelamentos. Isso mostra que a sociedade brasileira amadureceu." (674) Esta maturidade social não havia, portanto, no momento dos congelamentos e foi agora alcançada graças à política econômica adotada. Contudo, a "sociedade" decidiu tão pouco sobre os planos econômicos anteriores quanto sobre este. O fato de um governo adotar o congelamento de preços ou outras medidas econômicas, nada deixa concluir a respeito da maturidade de uma sociedade. Trata-se da transposição lingüística ilegítima de etapas na trajetória dos indivíduos em particular - seu amadurecimento comportamental - para a entidade "sociedade". O que significa maturidade neste contexto sociológico ? Ao que parece o fato dos agentes econômicos estabilizarem os preços em um patamar que o governo considera justo. Mas a estabilização dos preços depende menos da maturidade da sociedade do que das políticas econômicas adotadas pelo governo, como abertura das importações, elevação das taxas de juros, arrocho salarial, etc. Se considerarmos o volume da inadimplência crescente no país, não pareceria correto afirmar que a sociedade amadureceu.

A sociedade também aparece, em certas oportunidades, como não tendo percepção da realidade em mudança - como no caso do PROER - ou como um sujeito desmobilizado que abre brechas para que as camadas mais poderosas intefiram no resultado das ações: "É preciso também que a sociedade, em seu conjunto, perceba que as coisas já mudaram." (675) "Se a sociedade não estiver alerta e atenta, o que vai acontecer? As camadas mais poderosas farão pressão, e farão pressão sobre o Legislativo, sobre o Executivo e, depois, sobre o Judiciário." (676) A sociedade agora já não aparece como madura e também não pode ser associada ao conceito de nação - uma vez que as camadas mais poderosas, que estão alertas, parecem não se confundir com a sociedade.

É interessante destacar também que quando a sociedade apoia o governo é ela reconhecida como madura; mas quando o critica, o faz porque não o entendeu. Se não está alerta, acaba sendo prejudicada, mas quando se mobiliza pode receber a qualificação de mal-educada: "A sociedade tem que aprender também a dialogar com o Estado de uma maneira que seja adequada aos objetivos da população." (677) É intressante notar ainda que, neste caso, se distinguem a sociedade e a população, dando a entender que a sociedade dialoga com o Estado sem considerar adequadamente os objetivos da população que, portanto, o governo conhece melhor que a própria sociedade. Destaque-se também que ela, tendo já amadurecido por chegar aos preços justos - que suporiam um certo diálogo implítico entre consumidores e vendedores - ainda não aprendeu a dialogar com o governo, não amadureceu o bastante. Em outra passagem, referindo-se aqui à população, o presidente diz: "A população está mais madura do que as pessoas pensam. Eles vão reivindicar. Se for uma coisa razoável, eu sou favorável." (678) Assim, embora a sociedade e a população estejam mais maduras, a sua reivindicação pode não ser razoável para realizar os interesses maiores da própria sociedade ou população, interesses maiores esses que o presidente sabe distinguir. Trata-se agora de perguntar a partir de quais critérios essa razoabilidade se estabelece democraticamente, uma vez que a sociedade e a população apontam para interesses contraditórios aos que resultam de tal razoabilidade.

Em outras oportunidades, entretanto, o governo atribui à sociedade a responsabilidade ou a culpa pelo insucesso das políticas governamentais - escondendo assim os seus equívocos - ou pelas mazelas sociais. Considerando a sociedade em sua dinâmica mais geral afirma: "A sociedade, largada a ela mesma, marginaliza (os miseráveis) com muita velocidade." (679) Isto parece contraditório com a afirmação anterior de que a sociedade amadureceu. Em outro momento, referindo-se ao trabalho escravo, afirmou: "Assim como seria hipocrisia o presidente negar que existem essas realidades, é também uma hipocrisia dizer que o que falta é vontade política. Não falta vontade de ‘A’, ‘B’ ou ‘C’. Falta é muito mais do que isso, é uma compreensão da sociedade e um policiamento contínuo dos atos que são contrários aos direitos humanos." (680) Assim, a ausência de "compreensão da sociedade" e de um "policiamento contínuo" são os elementos que inviabilizariam a extinção da escravidão por dívida no Brasil - mais de 8 mil casos segundo a Organização Internacional do Trabalho. A ausência de um "policiamento contínuo" não poderia ser atribuído à falta de vontade política do governo em enfrentar a situação, mas talvez à falta de recursos. De qualquer modo, ao que parece, esse policiamento contínuo deve ser um ato de vigilância da própria sociedade sobre ela mesma.

Perante a marcha dos sem-terra, o presidente, associando e identificando sociedade e governo, afirmou: "Se a sociedade quer um Estado capaz de produzir o bem-estar social, tem que pagar mais impostos. A sociedade quer? Eu quero. (...) O governo tem consciência das dificuldades. Tem absoluta consciência de que ele precisa fazer mais. Mas ele também tem um sentimento, muito genuíno, de que esse ‘ele’ não é ele. É a sociedade toda." (681) Do ponto de vista da lógica formal, ou simplesmente da gramática, ao substituir o "ele" por "sociedade" o governo pareceria lavar suas mãos da responsabilidade e a frase ficaria assim: "O governo tem consciência das dificuldades. Tem absoluta consciência de que a sociedade precisa fazer mais." Contudo, conforme o mesmo raciocínio, se o governo faz parte da sociedade como um todo, ele também é responsável por não se produzir um Estado de Bem-Esstar Social no país não podendo furtar-se a tal responsabilidade.

Aproveitando semioticamente das imagens geradas na desocupação do conjunto Habitacional Juta II e das modelizações feitas pela mídia sobre o pronunciamento de João Pedro Stedile, Fernando Henrique fez o discurso contundente que já analisamos. Ali, ele afirma "A sociedade brasileira exige um basta a este clima de baderna. A sociedade não quer desordem." Como já destacamos anteriormente a demanda social por moradia é a principal responsável pelas ocupações de vazios urbanos, do mesmo modo que a demanda por trabalho digno no campo é a principal responsável pelas ocupações rurais. Ao falar da "sociedade brasileira" aqui, Fernando Henrique dela exclui milhões de famílias rurais e urbanas que, não tendo mais esperança alguma de que as políticas governamentais venham atender suas necessidades de terra para morar ou plantar, encontram na ocupação de vazios urbanos e latifúndios rurais a alternativa que lhes resta para viver com um pouco mais de dignidade. Desordem e baderna não são adjetivos aplicáveis nesta semiose à sociedade; portanto todos aqueles que são identificados com esse adjetivo não fariam parte da sociedade. O signo sociedade, neste e em outros exemplos, não opera conceitualmente, mas ideologicamente, tomando uma parte da sociedade brasileira como se esta fosse o todo.

Nestes rápidos exemplos, vale salientar que as análises de Fernando Henrique em relação à sociedade se movem ao sabor das conveniências, conforme a oportunidade. Mais interessante que isso, é destacar que essas análises camuflam conflitos. Como lembrou Hélio Gaspari, "Não é a falta de compreensão da sociedade que gera o trabalho escravo. Quem gera essa modalidade de exploração são os fazendeiros que dela se valem e os burocratas que a toleram." (682) Por outro lado, essa manipulação da linguagem praticada pelo sociólogo falando da sociedade, embora com ar professoral, acoberta um embuste. A sociedade, transforma-se em uma pasta modelável de acordo com as circunstâncias, sendo responsabilizada pelo que não lhe convém. Assim, se a sociedade é responsabilizada pelas suas próprias mazelas, não se pode imputá-las ao Estado ou ao governo. O governo, portanto, não aparece como responsável pelas conseqüências ruins das políticas que adota e nem mesmo pela ausência de adoção de políticas em muitos outros casos.

Esse modo metafísico de imputar responsabilidades à sociedade, tem se disseminado nos últimos anos entre governantes e dirigentes dos aparelhos do estado, que vêm aprendendo esta arte da "reflexão sociológica" em causa própria, espelhando-se na prática do atual presidente. O secretário de segurança pública de São Paulo, por exemplo, afirmou sobre o comportamento policial: "A sociedade é responsável também. (...) Se a própria sociedade não é a melhor possível, você não pode querer que um segmento dela seja o melhor possível." (683) Por sua vez, um comandante da polícia militar de São Paulo afirmou: "A discriminação social não é da polícia, mas da própria sociedade. Uma sociedade autoritária gera uma polícia autoritária." Já, o secretário de segurança pública do Rio de Janeiro afirmou: "A polícia reflete a sociedade e só vai mudar quando a sociedade mudar." (684) Esse tipo de raciocínio exime as autoridades por ações que deveriam realizar e não realizam, bem como pelo que fazem seus subordinados, mas que não deveriam fazer.

Em suas "análises sociológicas" o presidente normalmente articula o conceito de democracia com o conceito de ordem e considera o conjunto de manifestações de protesto ao seu governo, em geral, como desordem e portanto como uma afronta à democracia. Assim, quando foi alvo de manifestações em sua visita à cidade de Corumbá, MS, em 25 julho de 1997 - ocorrendo naquele dia passeatas e concentrações em 20 estados do Brasil -, o presidente condenou os atos de "desordem" no país, isto é, as manifestações de protesto contra seu governo, afirmando naquela oportunidade que: "A população brasileira não gosta de desordem" (685) E esclareceu: "Manifestação com tranquilidade é uma coisa. (...) Mas tem que se manifestar com algum objetivo. Quando o objetivo é o de fazer desordem, isso atrapalha. Atrapalha a democracia e não é bom para os objetivos políticos."

É interessante destacar que ao afirmar que "a população não gosta de desordem" e que as variadas manifestações no país foram "atos de desordem", o presidente exclui analiticamente da população do país todos os que protestam contra seu governo. É o clássico recurso do discurso ideológico - considerar a parte como sendo o todo.

Por outro lado, ele afirma que os manifestantes não têm proposta, o que não é verdade. De fato, Fernando Henrique desconsidera as propostas alternativas que lhe são apresentadas, como as que a Central de Movimentos Populares lhe entregou para geração de emprego e renda, para o atendimento de demandas de moradia, saúde, bem como, para a adoção de políticas especiais voltadas a crianças de rua, portadores de deficiência, mulheres e negros e outros segmentos discriminados, defesa dos direitos humanos e pelo desenvolvimento ecologicamente sustentável - propostas essas que foram resultado de centenas de seminários realizados pelos diversos movimentos populares nos diversos estados do país. Mas quando foi isso ? No primeiro ano de seu governo, no dia 22 de março de 1995. Conforme noticiou-se nos jornais:

" Os manifestantes saíram em passeata pela Esplanada dos Ministérios, reunindo de 8 mil a 10 mil pessoas, segundo a Polícia Militar, e 20 mil, segundo os organizadores. (...) Ao final, um grupo de representantes da Central de Movimentos Populares entregou a FHC, em audiência no Planalto, um documento com propostas ... recolhidas em seminários por todo o país. No documento, o movimento pede ainda mais programas de habitação popular, mais verbas para saúde, educação e saneamento, geração de empregos e medidas concretas de combate à violência e à corrupção. Estiveram com FHC os presidentes do Movimento Nacional de Direitos Humanos, do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, do Movimento Popular da Saúde, do Movimento Nacional de Luta pela Moradia, do Movimento de Portadores de Deficiências, da União dos Movimentos da Moradia e da Central de Movimentos Populares do DF." (686)

Observe-se ainda, uma vez mais, a técnica semiótica adotada por Fernando Henrique. Ele afirma que o objetivo da manifestação é "fazer desordem". Assim, ele cria uma representação do oponente, uma imagem que, indicialmente, não lhe corresponde - dado o conjunto de reivindicações e proposições que publicamente esses movimentos manifestam. Em seguida ele ataca a própria representação que criou, afirmando que manifestações que tem por objetivo a desordem atrapalham a democracia. Os interpretantes gerados com esse ataque à representação por ela criada e que corresponde falsamente ao objeto dinâmico real - os manifestantes - são a eles aplicados.

Quanto à ausência de propostas, não se pode esquecer, por exemplo, que foi por obra do grupo de poder representado por Fernando Henrique que o projeto de LDB, democraticamente construído em anos de debates com expressiva participação popular propositiva, foi substituído por outro que, embora tenha recebido o nome de Darcy Ribeiro, expressava uma concepção de educação defendida pelo Banco Mundial consonante às teses do Consenso de Washington - pois do contrário o governo não receberia financiamentos para educação. Ora, porque o governo não assume o programa de renda mínima, de tributação progressiva, de segurança alimentar e tantos outros apresentados pela oposição em Brasília para minorar o drama da pobreza e iniciar a promoção da distribuição de renda em nosso país ?

De fato as propostas foram e são apresentadas. No caso das propostas dos movimentos sociais, o presidente nunca se preocupou em solicitar um detalhamento técnico junto às ONGs para viabilizar, ainda que parcialmente, a sua implementação. No caso das propostas apresentadas pela oposição no Congresso - como por exemplo, o programa de renda mínima, tecnicamente detalhado e plenamente viável para o país -, a maioria parlamentar do governo se incumbe de rejeitá-las. Por fim, a mídia, em geral, faz eco ao discurso governamental que os manifestantes nas ruas não apresentam propostas alternativas.

Contrariamente, pois, ao que afirma Fernando Henrique, o objetivo último dos manifestantes não é a desordem. Não atrapalha a democracia o fato de milhares de pessoas se reunirem pelo país para elaborar propostas de políticas públicas; promoverem várias atividades para viabilizar que representantes de inúmeros municípios de todas as regiões do país pudessem se manifestar em Brasília; não atrapalha a democracia que representantes legítimos de movimentos sociais, com organização nacional, entregassem ao presidente em audiência, no Palácio do Planalto, propostas aprovadas democraticamente em assembléias por todo o país; não atrapalha a democracia que setores populares organizados da sociedade civil cobrem do presidente essas propostas em manifestações, quando das sua viagens. Pelo contrário, o que atrapalha a democracia é o discurso de que as oposições são "burras" e "sem propostas", gente "do contra" e corporativista. De fato, rompendo o corporativismo, o conjunto dos movimentos sociais no Brasil vem articulando suas propostas em grandes eixos propositivos, que na prática os vem articulando - como a reforma agrária, a reforma urbana, a redução da jornada de trabalho sem redução do salário, a realização da cidadania de maneira cada vez mais substantiva, a democratização dos meios de comunicação, entre outros. Assim, a afirmação de que a manifestação desses atores "atrapalha a democracia e não é bom para os objetivos políticos" visa agenciar através das mídias uma reprovação dos segmentos desinformados e desorganizados da população às atividades de protesto contra as políticas adotadas pelo governo.

Outra variante deste tipo de ação anti-democrática, de falsear os signos indiciais, não é atribuir um interpretante inadequado ao objeto - como afirmar que a manifestação tem por objeto a "desordem" -, mas afirmar que o objeto nem sequer exista - como se uma manifestação que existiu não tivesse existido. Assim, por exemplo, o presidente afirmou não ter percebido manifestações da CUT e do MST quando passou por Corumbá: "Manifestação? Aqui não houve. Eu não vi nenhuma". Contudo, a própria Polícia Militar afirmou que havia aproximadamente mil manifestantes no trajeto que faria o presidente. Em razão desses protestos, como divulgou-se nos jornais, " FHC alterou seu roteiro na cidade. (...) Para evitar encontros com os manifestantes, sua comitiva saiu por um portão lateral do aeroporto. Mais tarde, fez novo desvio ao visitar o Clube Corumbaense, centro da cidade." (687) Ao desviar-se dos manifestantes, Fernando Henrique evitava a geração de signos inoportunos para os "objetivos políticos" que lhe são convenientes. E pode mesmo insinuar que nem manifestação houve; estava tudo tranqüilo.

Já de volta ao aeroporto, o presidente esclareceu quais seriam os parâmetros da manifestação ordeira: "Acho que temos que fazer um apelo para a ordem... Isso não quer dizer a inexistência de manifestações... Tem que se manifestar. Mas em favor do quê? Só contra? Por que só contra? Assim não dá." (688) Com essa semiose, ele gera interpretantes de que está aberto às manifestações, que sejam favoráveis a alguma tese em particular e não apenas manifestações contrárias ao seu governo. Reforça-se pois a falsa tese de que não são apresentadas propostas alternativas. Em seguida irá destacar as suas propostas ou ações: "Nós estamos fazendo tanta coisa boa no Brasil. O país está crescendo. Tem uma vitalidade imensa. Cresce por todos os lados" (689)- pretendendo fazer crer que qualquer tipo de crescimento econômico e a qualquer taxa signifique melhoria das condições de vida do conjunto da população. Embora queira contrapor as realizações de seu governo à falta de propostas dos manifestantes, suas afirmações não correspondem aos índices de realidade. O país não está crescendo a taxas suficientes sequer para sair do nível de pobreza já existente, pois para enfrentá-lo, como diz o Banco Mundial - sob a mesma concepção de economia que segue a equipe do governo -, seria necessário um nível de crescimento mínimo de 7% do PIB ao ano. Também não cresce "por todos os lados". As regiões mais industrializadas do país vem enfrentando índices recordes de desemprego, que também tem crescido no setor de serviços.

Tentando descaracterizar o aspecto social das manifestações, Fernando Henrique culpou a "oposição" - que no contexto significa oposição política - pelos protestos que ocorriam no país naquela conjuntura, salientando os elementos subjetivos da conduta dos manifestantes: "Esse pessoal que é teimoso, que é do contra, deveria guardar sua bílis e sua raiva dentro de casa." Assim, com seus vários pronunciamentos em que buscou esclarecer como se devem realizar as manifestações ordeiras "que não atrapalhem a democracia e os objetivos políticos", o presidente concluiu afirmando que os manifestantes vistos nas ruas, em sua maioria, não têm propostas, são desordeiros, teimosos e do contra; trazem ainda para as manifestações uma raiva, uma "bílis" que deveriam deixar em casa, ao espaço da vida privada e não manifestá-la no espaço público.

Naquela oportunidade, ao referir-se ao Projeto Pantanal, que teria cerca de R$ 400 milhões em investimentos, Fernando Henrique contrapôs à essa figura colérica semioticamente formulada como "oposição" a figura do jacaré, e afirmou: "Perdoem a expressão, mas jacaré é quase humano. É até melhor que os humanos, pois é mais dócil". Sendo assim, os manifestantes, modelizados sob o signo "oposição" associados a "raiva" e "bílis" são agora contrapostos aos jacarés, que são melhores do que seres humanos porque são mais dóceis. Esse discurso metafórico, mesmo não tendo nenhum suporte indicial legitimador, simbolicamente opera de modo favorável à geração de signos desejáveis ao governo. Sob o regime globalitário, é isso o que importa para a manutenção das hegemonias políticas.

 

28 A Omissão no Social e o Mito do Crescimento do Crescimento Econômico

Embora a publicidade afirme que o governo desenvolve programas sociais que enfrentam o problema das crianças trabalhadoras, das populações desassistidas, etc, os dados desmentem a publicidade.

Somente para cobrir o rombo do Banco Nacional, o governo gastou o equivalente a 1/3 de toda a verba social em 95 (690). Naquele ano, um estudo feito pelo Banco Mundial publicado sob o título Brazil, a Poverty Assessment, informava que os gastos sociais no país favorecem mais os ricos: "Enquanto os 20% mais pobres ficam com 15% dos gastos sociais, os 20% mais ricos levam 21%. O resto é distribuído de forma uniforme nas camadas intermediárias." (691)

Vários intelectuais, com distintas posições políticas, condenaram a omissão do governo na área social após o primeiro ano do seu mandato. Como analisa o jornal que promoveu a pesquisa o governo é criticado não apenas por intelectuais identificados com posições de esquerda, mas inclusive por simpatizantes do presidente (692).

Conforme o historiador Boris Fausto, da Universidade de São Paulo, "faltou um planejamento ou criatividade maior no problema da melhora da distribuição de renda e da diminuição das desigualdades sociais". Segundo o cientista político Bolívar Lamounier, "o governo ou não fez o suficiente ou não comunicou bem suas ações nessa área". Por sua vez, o editor Pedro Paulo de Sena Madureira afirmou que "é preciso dar uma adequação maior do discurso à ação nesse campo". Já o professor da Faculdade de Direto da USP, Fábio Konder Comparato, foi mais incisivo ao afirmar que "o governo associou-se ao poder oligárquico, ligando-se eleitoral e parlamentarmente às forças conservadoras do país; em consequência, nada fez de relevante para frear o agravamento da desigualdade social". Para o sociólogo Emir Sader, que leciona também na USP, o país regrediu no que se refere às políticas sociais. Comentou também que o Programa Comunidade Solidária possui "uma concepção assistencialista e localizada". Por sua vez, o poeta e professor da USP, José Paulo Paes, ponderou: "Vamos esperar que se dê algum passo para o cumprimento da vaguíssima promessa de se voltar as preocupações ao social, para que os tucanos façam jus ao nome social que trazem na sigla". Alguns consideraram que o combate à inflação foi um dos pontos positivos do governo, como Leôncio Martins Rodrigues. Por sua vez, entretanto, o sociólogo Francisco de Oliveira, professor da USP e um dos fundadores do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), afirmou que o Plano Real significou "a abdicação da soberania nacional e a açodada e interessada rendição aos cânones da nova ordem neoliberal globalizada". Para o historiador Paulo Sérgio Pinheiro, da USP, é positivo o engajamento do presidente na área dos direitos humanos. Segundo ele, o fato de o governo reconhecer que os "desaparecidos" no período da ditadura militar foram mortos pelo Estado, que, por sua vez, passou a indenizar as famílias, é tomado como um aspecto positivo no primeiro ano de governo de Fernando Henrique. Por outro lado, sobre o mesmo assunto, afirmou Fábio Konder Comparato que a indenização de familiares de desaparecidos "surgiu no pecado original, que foi o de impedir que fizéssemos um acerto com a verdade", isto é, a apuração da mortes e dos culpados. Já o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, o biólogo Sérgio Henrique Ferreira, considerou que, embora o presidente tenha combatido a inflação, ele não concretizou, contudo, o projeto de investimentos constantes em pesquisas nos campos da ciência e tecnologia.

De sua parte, John Kenneth Galbraith, em uma entrevista especial a um jornal brasileiro, comentou que "há no Brasil uma resistência para se tributar os ricos, para se cuidar da distribuição de renda". E ao ser perguntado pela repórter qual seria o seu "conselho para Fernando Henrique Cardoso", respondeu: "Se tivesse que dar um conselho, diria: olhe mais para os pobres. Do contrário esse será um grande problema, em breve, para o Brasil." (693)

De fato, muitos cortes nos gastos governamentais foram feitos sob o álibi de que o governo deveria atuar, fundamentalmente, na defesa do estado de direito e na promoção de políticas de saúde, educação e outras políticas sociais. As privatizações foram implementadas com a finalidade de abater a dívida governamental e programas de austeridade se fizeram para equilibrar as contas do governo. Neste processo todo, porém, suprimiram-se direitos direitos históricos das classes trabalhadoras em nome da estabilidade e crescimento econômico do país, que trariam melhores condições de vida para todos. Não obstante o conjunto dessas medidas, a dívida do setor público no Brasil cresceu muito, atingindo em 1997 o nível de R$ 306,494 bilhões. Esse montante é superior a um terço do PIB do país. A dívida interna líquida alcançou, naquele ano, R$ 267,914 bilhões (30% do PIB) e a dívida externa líquida atingiu R$ 38,580 bilhões (4,3% do PIB). Por sua vez, o déficit público nominal do governo - que inclui tanto o pagamento do principal da dívida, como também de juros e correção monetária - foi 5,89% do PIB em 1997, número um pouco superior ao do ano anterior. O governo esperava um superávit de 1,5% do PIB no resultado primário, isto é, na relação entre receita e despesa do governo, mas acabou com um déficit de 0,67% do PIB.

Por fim, outro aspecto a se considerado é a afirmação de que, com a retomada do crescimento econômico possibilitada pela estabilidade da moeda, haverá maior produção de riqueza e, consequentemente, redução da pobreza no país. Na prática, contudo, o mundo contemporâneo assiste a novidade de que é possível haver crescimento econômico associado à exclusão social e concentração de renda. O crescimento do PIB não traz necessariamente melhorias para o conjunto da sociedade. Conforme os analistas do Banco Mundial, o crescimento do PIB brasileiro em 3% ao ano manteria "inalterado o grau de pobreza", ao passo que um crescimento mínimo anual de 7% do PIB reduziria "o número absoluto de pobres". Infelizmente, contudo, com as novas tecnologias é possível aumentar a produção de riqueza sem incorporar um número maior de trabalhadores ao processo produtivo formal e portanto sem distribuir socialmente recursos na forma de salário. Isto significa que dependendo do padrão de desenvolvimento adotado no país, é possível ter-se desenvolvimento e crescimento do PIB, até mesmoa taxas superiores a 3%, sem necessariamente ter-se uma redução significativa da pobreza.

 

29. A Posição de Classe de Fernando Henrique e a Aliança Política Neoliberal

A aliança do PSDB com o PFL em 1994, não foi uma surpresa para as pessoas melhor informadas. Antes mesmo da aliança ambos os partidos já tinham um desempenho semelhante no congresso, havendo um certo encontro ideológico entre eles. Como destacou Janio de Freitas, "mesmo durante o impeachment houve uma grande parte do PSDB que escondeu o rosto. Até o começo de maio - e a CPI do impeachment foi decidida no dia 29 de maio -, o Fernando Henrique Cardoso e o Tasso Jereissati propunham a entrada do PSDB no Governo Collor. Isto só não aconteceu porque Mário Covas fincou o pé, rebelou-se em numa reunião e... não aceitava, e como havia algumas outras pessoas que corroboravam essa posição do Mário Covas foi necessário que os outros cedessem." (694)

O governo Fernando Henrique tem uma clara posição de classe que inviabiliza quaisquer políticas que tenham por finalidade promover uma real distribuição de renda no país ou que visem atender aos interesses da maioria da população marginalizada, o que penalizaria a pequena minoria detentora da maior parte da riqueza no país - e que enriqueceu ainda mais nos últimos anos, em grande parte, aproveitando-se das facilidades de acúmulo de capital que a atual política de juros altos mantém. Neste contexto, Herbert de Souza, quando era conselheiro do Comunidade Solidária, afirmou que a aliança feita por Fernando Henrique, não apenas o levou ao poder, mas também o impediu de lançar um plano contra a miséria. (695)

Na Carta de Brasília, que mencionamos anteriormente, as entidades reunidas na Conferência Nacional em Defesa da Terra, do Trabalho e da Cidadania, destacaram este posicionamento claro do governo em favor de uma determinada classe: "A prioridade deste governo é voltada apenas aos banqueiros, latifundiários, grandes empresários e investidores internacionais. O Proer, que já gastou mais de R$ 20 bilhões em socorro do sistema financeiro, o não pagamento da dívida dos grandes latifundiários e usineiros junto ao Banco do Brasil e a abertura indiscriminada do mercado brasileiro às empresas transnacionais são exemplos dos interesses defendidos pelas políticas de Governo." (696)

Se analisarmos as atitudes do Governo Federal veremos que essa análise é consistente. O mérito da estabilização econômica foi transformado em justificativa para o desmonte de políticas sociais nas diversas áreas e avalizou, por outro lado, a concessão de benefícios a certos grupos inadimplentes e fraudadores. O caso do PROER é significativo. O Banco Nacional possuía balanços que demonstravam lucro. Mas de repente o banco quebrou e descobriu-se inúmeros indícios de fraudes em seus balanços. Mesmo assim, o fundo do PROER, constituído com recursos dos próprios bancos, foi acionado para sanear o Nacional. Mas quem está pagando os juros subsidiados da utilização deste fundo somos todos os brasileiros, uma vez que o dinheiro dos impostos pagos pela população, ao invés de ser aplicado para resguardar interesses públicos, é utilizado neste tipo de operação. Quando do saneamento dos bancos que quebraram, para sua posterior incorporação por outros bancos, foi o governo que ficou com a parte podre isto é, com dívidas a receber, mas que ninguém sabe ao certo quando receberá. O governo poderia proteger os correntistas - evitando conseqüências indesejáveis - sem ter de assumir a parte podre dos bancos que saneou.

Embora esteja aliado com as forças que apoiaram a ditadura militar e que agora apoiam o seu governo, no qual transparece algumas características de ditadura civil com perfil globalitário, Fernando Henrique sabe que jamais conseguirá convencer aqueles que tenham alguma memória política da história do Brasil que seus aliados pefelistas e petebistas venham apoiar alguma tese de esquerda, embora o presidente sempre busque manter uma imagem de homem de esquerda. Ao afirmar, entretanto, que a "esquerda é burra" e que seu governo é "inteligente", Fernando Henrique distinguiu-se da esquerda e justifica a sua adesão aos que não se confundem com ela. Mais recentemente, tendo em vista a disputa pela reeleição, Fernando Henrique aproximou-se de Paulo Maluf, que foi o último candidato indicado pelos militares à eleição presidencial indireta, sendo derrotado por uma chapa que compunha Tancredo Neves e José Sarney, sendo o primeiro da ala mais conservadora do PMDB e o segundo, até bem pouco tempo antes, o presidente do PDS - principal partido de sustentação da ditadura militar após a reforma partidária que extinguiu o bipartidarismo. Uma declaração de Fernando Henrique Cardoso escandalizou alguns que ainda o consideravam de centro-esquerda: "Quero fazer aliança com ACM, Íris Rezende, Maluf, Amazonino, Ronivon, até o infinito, se possível e necessário" (697). Para os que acompanham sua trajetória nos anos 90, entretanto, isso não é surpresa.

Como analisou Emir Sader, "o estilo do governo [de FHC] é populista e autoritário. Tenta falar com a população por cima de toda expressão organizada da cidadania, sistematicamente desqualificada - assim como o debate político, que FHC procura evitar mediante fórmulas fáceis de marketing. É autoritário pela forma de desmoralização dos partidos... e do Congresso, negociando mediante troca de favores, enquanto governa por medidas provisórias. Desmoraliza a própria institucionalidade ao jogar-se a fundo, com métodos comprovadamente de corrupção, para mudar as regras do jogo eleitorais." (698)

Sobre a natureza política de seu governo, poderíamos usar o mesmo expediente de Fernando Henrique em 1994 e perguntar a quem estariam conferindo o seu apoio os ideólogos da direita, como Roberto Campos ou, mesmo, o último dos candidatos da ditadura militar, Paulo Maluf. Ambos apoiam atualmente o próprio Fernando Henrique. Pelo critério por ele mesmo adotado naquela época, poderíamos qualificá-lo, atualmente, como sendo a expressão política maior do bloco de forças da direita, viabilizando a unidade entre o "grande capital financeiro e grandes latifundiários, monopólios industriais e meios de comunicação em torno do governo... Trata-se da ‘nova direita’, ou da ‘direita up to date’, conforme a linguagem de FHC." (699)

Em várias oportunidades, especialmente quando dos escândalos que ocorreram durante os três primeiros anos de seu governo, Fernando Henrique sempre saiu em defesa dos parceiros de sua aliança. A modelização de seus pronunciamentos, a saturação de informação das mídias e a morosidade do judiciário, acabaram fazendo com que crimes e falcatruas caíssem no esquecimento. A cada episódio desses a aliança saía mais fortalecida em razão das solidariedades recíprocas.

Entre os muitos escândalos que envolveram Fernando Henrique e seus aliados, elencam-se o vazamento de informações privilegiadas do Banco Central, o caso Dallari - quando o secretário de Acompanhamento Econômico, José Milton Dallari, foi acusado de fornecer informações do governo a alguns clientes de sua consultoria -, o escândalo do Sivam - resultante do "grampo" realizado no telefone de Júlio César Gomes dos Santos, chefe do Cerimonial do Planalto, cujas gravações revelavam tráfico de influência para a escolha da empresa que viria a ser fornecedora dos equipamentos do Sistema de Vigilância da Amazônia -, o escândalo do Banco Econômico envolvendo informações da pasta rosa - encontrada quando da intervenção federal no Banco Econômico (o sétimo maior do país, mas que tinha um rombo de R$ 3 bilhões) e que continha indícios graves de repasses de verbas para campanhas políticas de parlamentares da situação que relutavam na intervenção federal sobre o banco -, entre muitos outros. A cada episódio desses a solidariedade entre todos fortalecia a aliança, selando um destino comum a todos os seus membros: proteger-se mutuamente de semioses agenciadoras de interpretantes negativos às suas imagens políticas, causadas por esses acontecimentos.

O caso da pasta-cor-de-rosa, por exemplo, veio a tona quando o Banco Econômico foi posto sob intervenção federal. Nas investigações surgiu um conjunto de 249 documentos arquivados em uma pasta dessa cor que apontavam indícios de que o Banco Econômico havia montado um esquema em 1990 para a lavagem de dinheiro que era gasto ilegalmente no financiamento de campanhas eleitorais. Na pasta haviam cheques, notas fiscais e faturas de despesas de campanha. Na época, a Procuradoria da República suspeitava que o banco teria lançado gastos eleitorais como se fossem suas despesas, o que configurava um delito fiscal. Com efeito algumas dessas notas, que referiam-se a serviços que teriam sido prestados ao banco, estavam anexadas a fichas de políticos. Como noticiou um jornal na época era "o caso de três faturas da TV Bahia, do senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), referentes a supostos serviços de publicidade, entre agosto e novembro de 90. Uma delas registra o valor CR$ 250 mil. (...) De acordo com a documentação, ACM foi o político mais beneficiado pelo banco. Atualizando-se tudo o que teria recebido, chega-se a US$ 1,155 milhão." (700) Conforme o jornal, ACM foi o maior crítico da proposta de intervenção no Econômico pelo Banco Central. Ainda conforme a matéria, ACM negou que tivesse recebido dinheiro do banco e sustentou que a verba advinda do Econômico teve por finalidade financiar o patrocínio daquela instituição a programas da TV Bahia. Afirmou também possuir documentos que comprovavam essa transação. (701) A oposição desejava instalar uma CPI dos Bancos, a fim de investigar não apenas o caso do Econômico mas também de outros bancos que estavam sendo socorridos pelo PROER. A atuação da aliança governista, contudo, foi decisiva para inviabilizar a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito que pudesse investigar o assunto dando centralidade ao caso do Econômico em razão das informações contidas na pasta-rosa.

Por outro lado, denúncias sobre liberação das verbas do orçamento federal, favorecendo componentes das alianças que governam o país, são anteriores ao Governo Fernando Henrique e vêm se tornando tradição no Brasil. Nos anos de 93 e 94 instalou-se uma CPI do orçamento em Brasília, que atingiu o Congressso levou ao conhecimento da sociedade as falcatruas dos "anões do orçamento". Em julho de 1996, as denúncias se voltavam contra o Executivo que, para favorecer prefeitos e candidatos dos partidos governistas, teria politicamente manipulado a distribuição de verbas do orçamento. Em janeiro de 1998, novamente ressurgem as denúncias acompanhadas de gravações de conversas telefônicas que comprovariam a discriminação política na liberação de verbas orçamentárias. O caso envolveu os ministros Carlos Albuquerque (Saúde) e Luiz Carlos Santos (Assuntos Políticos), como já vimos.

Alguns analistas chegaram a comentar que a revelação desses escândalos é uma tática utilizada pelos próprios grupos que apoiam o governo, mas que disputam privilégios entre si. Adotando este expediente eles pressionam o governo e grupos rivais que também o apoiam, a fim de obterem determinadas vantagens. O caso da pasta rosa, que ganhou manchetes em todos os jornais, atraindo atenções em um clima de mistério, teria sido - segundo José Sarney - uma "manobra primária" de setores do governo que haviam resolvido divulgar o caso "para desviar a atenção do Sivam." (702) Tratava-se neste caso de provocar um novo escândalo para desviar a atenção de outro que seria mais grave.

 

30. O Sistema de Vigilância da Amazônia e os Manuais para o Uso de seus Softwares

O caso Sivam foi realmente grave e complexo. A gravação de um conjunto de conversas telefônicas entre o embaixador Júlio César Gomes dos Santos, representante no Brasil da empresa norte-americana Raytheon, detonou um escândalo de proporções que transcendiam o governo brasileiro, destacando a atuação efetiva do governo dos Estados Unidos na tentativa de garantir que aquela empresa assumisse a realização deste projeto de grande interesse estratégico.

Com efeito, a empresa norte-americana Raytheon estava encarregada do Sipam - Sistema para Proteção da Amazônia. Como parte do Sipam, foi gestado o Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia), a fim de controlar o tráfego e a defesa aérea na região. Em abril de 1992 agentes da referida empresa vieram ao Brasil com a finalidade de obter do governo detalhes sobre a implantação do projeto Sivam. O vice-presidente da empresa (703), James W. Carter, confirmou a ocorrência deste encontro de agentes da empresa com membros do governo: "Ouvimos falar pela primeira vez dele [do Sivam] no início de 1992. Alguns de nossos funcionários vieram em abril daquele ano para conseguir informações acerca do programa e para se encontrar como pessoal do governo que estava montando o Sivam." E afirmou: "Respondemos ao pedido do governo para a apresentação de uma proposta e a submetemos de acordo com os requisitos solicitados por ele, em fevereiro de 1994." (704)

Contudo, o aspecto mais grave desse episódio foi o envolvimento do governo dos Estados Unidos a fim de favorecer a empresa norte-americana. De fato, dois meses antes do anúncio oficial do Sivam, a Raytheon fora convidada pelo governo daquele país a receber a visita de deputados brasileiros (705). Naquela oportunidade nove deputados federais, "foram aos EUA a convite do governo local" (706), visitar a empresa Raytheon em 17 de junho de 1993, e discutiram "tipos de radares de vigilância, sensores atmosféricos e ambientais, comunicações e centros de coordenação, apoio e administração" que ficariam articulados sob o projeto Sivam. Esta visita, contudo, foi realizada antes mesmo de o presidente Itamar Franco ter assinado o decreto nº 892 que dispensou a licitação para o projeto (12-08-93), antes ainda da publicação do comunicado para o credenciamento das empresas brasileiras que estivessem interessadas no projeto (6 a 9-09-93) e, ainda, mesmo antes de ter sido encaminhado o material de orientação para as embaixadas de 18 países, o que ocorreu no dia 17 de setembro de 1993. Conforme Itamar, a licitação do projeto havia sido dispensada porque a divulgação dos equipamentos e serviços técnicos, a serem utilizados no sistema, comprometeria a própria eficácia do Sivam.

Após todo esse processo, a Raytheon ficou encarregada do Sivam. Quanto aos recursos, até aquela oportunidade ainda não haviam sido definidos os bancos privados que financiariam parcialmente o projeto, mas sabia-se que uma parcela estaria avalizada pelo Exibank, que é um banco do governo dos Estados Unidos. Por sua vez, o acordo comercial a ser celebrado entre o governo do Brasil e a Raytheon, afirmava que esta controlaria a verba do projeto, tendo como única obrigação utilizar, pelo menos, metade do dinheiro no Brasil. Conforme o projeto de execução, o governo devia entregar à Raytheon toda a verba do Sivam que se destinava ao fornecimento de equipamentos e prestação de serviços - mesmo aqueles que eram considerados de segurança nacional, o que contrariava a decisão do Senado brasileiro. Pelo contrato, o governo iria pagar à Raytheon uma importância de US$ 170 milhões a mais do que o valor de US$ 1,115 bilhão que estava previsto. Essa verba extra, conforme o Senado, deveria ser paga a uma empresa brasileira que realizaria serviços considerados de segurança nacional, como por exemplo, desenvolver o software de gerenciamento do sistema de vigilância. O governo contudo, desistiu de contratar a empresa Esca, que originalmente deveria fazer esse serviço, em razão de denúncias de uma fraude que ela teria praticado contra a Previdência Social - a empresa não teria recolhido R$ 7,8 milhões ao INSS (707), apresentando uma Certidão Negativa de Débito falsificada (708). A partir daí, embora oficialmente o Ministério da Aeronáutica passasse a assumir a tarefa de gerenciar o projeto, desenvolver o software e controlar as informações confidenciais, os US$ 170 milhões ainda ficariam sob o controle da Raytheon. Conforme denúncias veiculadas por um jornal que teve acesso ao documento assinado no dia 27 de maio pelo ministro da Aeronáutica, Mauro Gandra, e pelo vice-presidente da Raytheon, James Carter, "o contrato, ao contrário do que dizia o governo, prevê que a Raytheon participará de tarefas consideradas de segurança nacional, como desenvolvimento de software." (709) Destaca o jornal que apesar de o documento afirmar "que o ‘software estratégico’ será feito pela empresa integradora [função assumida pelo ministério da aeronáutica], o contrato prevê que a Raytheon fornecerá e desenvolverá ‘conjunto completo de programas de computador’. Para poder operar os programas desenvolvidos nos EUA, a Raytheon enviará material didático para realização de cursos no Brasil." (710) Ora, os termos desse contrato parecem uma piada absurda. Uma empresa americana desenvolverá softwares que gerenciam informações estratégicas para o país e depois produzirá materiais didáticos para, em cursinhos, ensinar os operadores brasileiros a utilizá-los. Teria passado pela imaginação de Fernando Henrique que se a empresa vai explicar como o software funciona é porque os técnicos brasileiros não conheceriam as linhas de código dos programas ? E se as linhas de código são desconhecidas, quem poderia assegurar que não existiria uma subrotina qualquer a ser acionada quando o software identificasse alguma informação que a empresa fabricante não quisesse fornecer ao usuário ? Passou pela imaginação de alguém quanto valeria no mercado paralelo as cópias desses softwares e dos respectivos manuais que estariam sendo desenvolvidos por especialistas no exterior ? Passou pela imaginação de alguém que se os sinais dos satélites podem ser interceptados por outros equipamentos que não estejam baseados no Brasil, qualquer grupo - tendo a posse desses softwares - teria extrema facilidade em decodificar os sinais ?

Conforme o físico Rogério Cézar de Cerqueira Leite, que é professor da Unicamp, a decisão do governo brasileiro de implantar o Sivam com tecnologia estrangeira é um erro gravíssimo. Segundo ele, o Brasil não dominará a tecnologia usada para monitorar a Amazônia se ela não for desenvolvida no país: "Não sou contra buscar tecnologia fora - afirma o professor. Mas quando a gente compra um pacote desse, a gente não tem acesso à tecnologia e sim aos equipamentos". Qualquer empresa estrangeira que venha a instalar o Sivam - como qualquer grupo interessado que se instrumente para a captação dos sinais - terá acesso às informações que são registradas pelos radares. Ora, "se a empresa montou os equipamentos, ela sabe decodificar as informações", concluiu Cerqueira Leite (711).

Quando o caso veio a tona, levantando-se suspeitas de favorecimento da empresa norte-americana e de outros interesses estratégicos do governo dos Estados Unidos na implantação do projeto, o embaixador norte-americano em Brasília concedeu uma entrevista sobre o Sivam ao Jornal do Brasil. Na entrevista ele afirmou que haveria um impacto nas relações bilaterais entre Brasil e Estados Unidos se o projeto Sivam fosse cancelado e esclareceu: "o projeto é brasileiro, e não americano", acrescentando ainda que, "no futuro, Brasil e EUA sairão lucrando com o Sivam, sobretudo na proteção ao meio ambiente e no combate ao narcotráfico." (712)

De fato os interesses norte-americanos na manutenção desse projeto não são apenas comerciais, mas especialmente estratégicos, ficando disfarçados sob o álibi do combate ao narcotráfico - como quando da invasão do Panamá, oportunidade em que este argumento foi utilizado como uma das variantes justificadoras da intervenção. Sobre o viés estratégico do caso, que não mereceu a devida atenção no debate realizado sobre o tema, o brigadeiro da reserva, Ivan Frota, escreveu uma carta ao presidente Fernando Henrique em 14 de abril de 1995. Frota, no início dos anos 90, foi o coordenador dos primeiros estudos voltados à implantação de um sistema de controle do espaço aéreo da Amazônia, batizado então de Vigilam. Transcrevemos a seguir alguns trechos dessa carta, que se tornaram públicos, destacando a gravidade do problema:

"Se esse contrato [com a Raytheon] for assinado, estaremos oferecendo a um determinado país (Estados Unidos), não só gratuitamente, mas, o que é pior e profundamente irônico, pagando uma astronômica quantia (financiada em condições atrativas pelo país interessado), superior a US$ 1,3 bilhão (excluídos os juros futuros), um instrumento de valor estratégico incomensurável.

"Tal fato dará a esse país acesso global a toda a região amazônica sul-americana para acompanhamento eletrônico permanente de elementos informativos vitais para seu controle, tais como: circulação aérea formal e clandestina; movimentos terrestres significativos (mormente na área fronteiriça); monitoração das reservas indígenas e florestais, com o controle das atividades nômades e das queimadas, respectivamente; pesquisa privilegiada do maior acervo de biodiversidade do planeta; e, o que é profundamente mais sensível e ambicionado pelos países ricos, a identificação e exata localização do infinito potencial de minerais nobres e preciosos de seu subsolo, através de técnicas de sensoriamento remoto, somente possíveis por sobrevôos a médias e a baixas altitudes.

"Quem lhe escreve, senhor presidente, é um cidadão que conhece o assunto razoavelmente bem e que, na realidade, deu os primeiros passos para a concepção de tal sistema, o qual, inicialmente, recebeu o nome de Vigilam. Tal sistema tinha a estrita visão de viabilizar um crescimento acelerado e, ao mesmo tempo, uma adequada proteção da região contra sua penetração clandestina e exploração predatória por interesses escusos nacionais e, principalmente, internacionais. A concepção original previa, ainda, uma filosofia de implantação gradativa, com aproveitamento exaustivo das possibilidades nacionais... (...) Tal concepção não incluía, ainda, a atividade de sensoriamento remoto para a pesquisa mineral (que hoje é o atrativo principal para os interesses internacionais).

"Acredito na pertinência da concepção básica do Sivam (...). Discordo, porém, da forma como está sendo encaminhada sua implementação, que, a ser continuada, significará uma perigosa vulnerabilidade para a soberania e a integridade territorial de nosso país.

"(...) O problema do contrato Sivam não se resume em saber se a Raytheon ou a Esca são idôneas e capazes ou se houve suborno de autoridades para obter-se a preferência de empresas que foram escolhidas sem licitação regulamentar ou, ainda, se foram dadas propinas para parlamentar facilitar a aprovação do contrato no Senado (...). Ou, finalmente, se houve pressão irresistível de ‘lobby’ aplicado por presidente de país interessado.

"O grande problema, repito, é a imensa vulnerabilidade estratégica de que nosso país será passível, se tal empreendimento for contratado à empresa estrangeira, de forma global e integrada, como está sendo, atualmente, pretendido.

"Senhor presidente - se sua caneta chancelar tal documento, estará, certamente, registrando para a história a autoria do maior desastre político e estratégico da vida da sofrida e amada nação Brasileira." (713)

Conforme o brigadeiro, a idéia original do projeto era bem mais modesta, prevendo uma implantação progressiva do sistema, aproveitando as possibilidades nacionais - mesmo não sendo as mais sofisticadas tecnologicamente. Seriam gastos, em sua primeira fase, cerca de US$ 500 milhões a US$ 600 milhões, em um prazo de aproximadamente dez anos. Por sua vez, os que defendiam a manutenção do contrato com a Raytheon salientavam as condições financeiras oferecidas pelo Eximbank. Sobre isso, criticando esta posição, Paulo Nogueira Batista Jr citou, George Washington que certa vez escreveu: "é loucura uma nação esperar favores desinteressados de outra; tudo quanto uma nação recebe a esse título terá de pagar com uma parte da sua independência. Não pode haver maior erro do que esperar favores reais de uma nação a outra". Conforme o economista brasileiro, é "esse o tipo de conselho americano que o Brasil deveria seguir." (714)

Contudo a atitude de Fernando Henrique foi a de evitar a instalação de uma CPI que averiguasse em detalhes todas essas passagens. Antes de qualquer investigação mais a fundo, o presidente demitiu o embaixador Júlio César Gomes dos Santos, cujo telefone havia sido grampeado, demitiu Francisco Graziano, presidente do Incra, que teria sido o responsável pela colocação da escuta telefônica; por sua vez, o ministro da Aeronáutica, Mauro Gandra pediu demissão. Gandra fora citado nas conversas telefônicas gravadas entre o embaixador Júlio César e José Afonso Assumpção, representante da Raytheon no Brasil. Por fim, as fitas gravadas que estavam sendo analisadas pela polícia federal tiveram um fim incerto. Conforme o depoimento do ministro da Justiça Nelson Jobim a uma comissão da câmara "as fitas originais foram desmagnetizadas", apagadas, esclarecendo o motivo pelo qual dos 21 dias de gravações só havia registro de 13 conversas (715). Segundo o ministro, teria havido uma edição dos diálogos, ficando de fora conversas "corriqueiras". Esclareceu ainda que essas informações sobre a "desmagnetização" eram da polícia federal e que não havia como exigir-se provas a respeito. Jobim também repetiu a versão da polícia de que não se fizera gravações de conversas do presidente ou "grampeamento" de telefones do Palácio do Planalto. Um agente da Polícia Federal, contudo, segundo os jornais, disse que "as fitas originais das gravações de escuta telefônica não são desmagnetizadas. Ficam no próprio CDO, que possuiria aparelhos mais sofisticados de escuta do que o gravador com um fio de extensão apresentados pelo delegado na Câmara." (716)

Em face da desinformação, o ombudsman da Folha de São Paulo afirmou, em dezembro de 1995, que "a cobertura do [próprio] jornal - de todos os jornais - para o caso Sivam continua deixando a desejar. (...) A imprensa não foi ainda capaz de responder a perguntas cruciais: de quem partiu a ordem de investigação e o que essa pessoa sabia que seria ouvido. Há mais. Ninguém consegue entender por que sobrevivem no cargo o diretor da Polícia Federal e o ministro da Justiça, depois de trapalhadas como enganar um juiz, investigar um íntimo do presidente sem seu conhecimento e apagar as fitas. Se é que foram apagadas." (717)

Frente a esses escândalos que foram se avolumando, especialmente quando repercutiram os casos do Sivam e do Banco Econômico, mesmo com o governo conseguindo evitar a instalação de CPIs para averiguar os casos, membros do Ministério Público atuaram tentando apurar os fatos. Graças à atuação de alguns de seus procuradores, isto é, advogados que buscam defender a sociedade frente a atos ilícitos dos governantes, o Ministério Público teve papel, inicialmente, importante nos casos Sivam e Econômico. Ambos os casos são emblemáticos para analisar como opera a democracia formal sob os regimes globalitários. Um jornalista na época assim relatou esse episódio: "O procurador-geral da República é primo do vice-presidente Marco Maciel, e foi nomeado por FHC ignorando os votos dos procuradores. Ele havia negado a abertura de inquérito sobre o Sivam. Oito procuradores se rebelaram, há duas semanas, e tomaram a iniciativa. Assim, a ‘operação abafa’ [capitaneada pelo governo] falhou" (718). Fernando Henrique, contudo, conseguiu evitar a CPI e manter o projeto. Conforme o senador Roberto Requião, "parece que ele (FHC) tem medo do Bill Clinton (presidente dos EUA), que pediu para manter o projeto" (719). No episódio do Econômico uma subprocuradora da República revelou que ela e um procurador haviam solicitado ao Banco Central a documentação referente ao caso, tendo em vista apurar privilégios que teriam sido concedidos pelo BC ao Econômico, sonegação de impostos, remessas de dólares ao exterior, etc. Toda a documentação, incluindo a pasta-rosa foi encaminhada, então, pelo BC ao procurador-geral da República. Contudo, dois meses depois, ele ainda não a tinha repassado aos procuradores. Conforme o jornalista, "o procurador-geral (nomeado por FHC) somente solicitou a abertura de inquéritos no caso econômico após advertido de que os procuradores tomariam providências contra sua omissão." (720)

Mas como terminaram as investigações ? A justiça e a imprensa não dão uma satisfação cabal à cidadania. Ora, para que os regimes globalitários se mantenham é necessário que se mantenha pelo menos a democracia formal, esvaziada de seu conteúdo substancial. Nesses casos, contudo, nem mesmo o conjunto dos elementos que caracterizariam a democracia formal se mantém. Destaca-se muito o seu aspecto eleitoral, mas os possíveis crimes de lesa-pátria se avolumam sem as investigações devidas e as possíveis punições cabíveis. Uma democracia substancial, por sua vez, não pode prescindir dos mecanismos formais do regime democrático, mas deve aprimorá-los para garantir a soberania popular e evitar que a impunidade se aloje no conjunto dos poderes constituídos do Estado.


31. Fernando Henrique Cardoso, o Realismo Globalitário e a crise das Utopias de Esquerda

Nos anos 60 e 70 Fernando Henrique ficou conhecido por sua contribuição ao desenvolvimento da Teoria da Dependência, sobre a qual também trabalharam Enzo Falleto, André Gunder Frank, Theotonio dos Santos e vários outros. A posição de Fernando Henrique, em particular, possuía uma peculiaridade frente àquelas que afirmavam ser o desenvolvimento autônomo dos países dependentes somente possível com a ruptura da situação de dependência. Estas vertentes apontavam, em alguns casos, para ações de revolução política.

Fernando Henrique, pelo contrário, advogava que mesmo sob uma situação de dependência de centros hegemônicos era possível promover um desenvolvimento da periferia, desde que o Estado mantivesse a capacidade de coordenar políticas estratégicas de desenvolvimento, promovendo um certo equilíbrio na presença do capital estrangeiro em diversos setores econômicos nacionais, presença que alavancaria o crescimento econômico nacional, embora continuasse a ser vigente o quadro de dependência, uma vez que o capital nacional seria incapaz de promover, autonomamente, um processo de desenvolvimento econômico sustentável na extensão necessária ao crescimento do país.

No fundamental, a posição de Fernando Henrique, como vimos, sofreu alguns ajustes mas preserva a crença de que seja possível desenvolver a economia nacional mantendo-se a dependência do grande capital internacional. A recente crise asiática, entretanto, sepultou de vez a idéia de que as economias nacionais fortemente internacionalizadas possam manter alguma margem de autonomia quando dependem acentuadamente de capitais externos.

Nas políticas atuais do governo federal encontramos vários elementos que configuram um caráter globalitário ao exercício do poder, isto é, de um autoritarismo que coloca o país na condição de subserviência a interesses extranacionais, acentuando ainda mais a situação de dependência externa. Na implementação desse regime, o presidente além de legislar com medidas provisórias, também tem a maioria congressual sob seu controle; os canais de mídia televisiva, que hegemonizam a opinião pública através dos programas de maior audiência, em geral o apoiam, até mesmo distorcendo fatos para salvar o projeto hegemônico que ele representa. O judiciário, por sua vez, ao ser brando frente aos crimes eleitorais, à compra de votos, à propaganda enganosa com recursos públicos, perpretados por essa aliança globalitária opera como instrumento desse regime. Valendo-se da mídia o presidente produz subjetividades favoráveis a seu governo com propagandas enganosas, com expedientes semióticos de transfiguração de cenários, de produção de imaginários sobre seus adversários, entre outros que já analisamos. Gera signos (como o Fundo Social de Emergência e vários outros) que agenciam interpretantes favoráveis ao seu governo, embora esses signos simbolizem ações e programas que realizam objetivos dissonantes aos interpretantes que agenciam. Ele modelizou as utopias pessoais com o Plano Real - está na tua mão, na minha mão, na mão da gente, fazer desse Brasil um país diferente (721) - que, de fato, vem entregando parcelas do patrimônio público aos grandes especuladores do sistema financeiro, com o pagamento de juros altíssimos que sustentam a estabilidade artificial da moeda nacional. Em meio a esses procedimentos, as instituições democráticas são mantidas, em muitos casos, apenas formalmente, como no episódio da emenda da reeleição. Fernando Henrique, portanto, avançou na hegemonia de um projeto político neoliberal, convencendo a maioria da sociedade brasileira que tal projeto atende aos interesses da nação, quando de fato satisfaz, em maior medida, aos grandes capitais internacionais e às elites economicamente dominantes no país.

Como vimos, as condições para a emergência do regime globalitário no Brasil surgiram a partir do final dos anos 80, quando a) a mídia televisiva penetrava em todos os recantos do país, com forte hegemonia de um único grupo, b) quando a democracia liberal já havia triunfado sobre a ditadura militar e c) quando o fenômeno da globalização econômica neoliberal passou a ter maior efetividade na definição de políticas nacionais através do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. A eleição de Collor foi a primeira eleição direta para presidente no país, após a ditadura militar. Collor, contudo, somente pode ser conduzido, em 1989, ao poder graças aos mecanismos midiáticos de produção de subjetividade. Seu programa de reformas neoliberais para o país era o terceiro vetor que, conjuntamente aos outros dois, introduzia definitivamente o Brasil na ordem globalitária. A eleição de Fernando Henrique Cardoso significou a continuidade deste movimento, com as mesmas características. Frente às criticas que se faziam em 1994 sobre a condução de sua campanha, ele afirmou: "estão querendo fazer uma farsa... não estamos em 1989" (722). Fernando Henrique reconhecia assim que em 1989 foram adotados expedientes ilegítimos, do ponto de vista da democracia substancial, para eleger Fernando Collor de Mello, contudo inocentava sua campanha de valer-se dos mesmos mecanismos.

Analisando esta frase do candidato, Marilena Chaui, professora de filosofia da USP, escreveu um artigo intitulado "Na segunda vez como farsa", destacando que os atores do grande capital contavam agora "com uma das mais belas cabeças da intelectualidade para fazer o serviço" e não precisavam apostar em um "aventureiro amalucado", como ocorrera em 1989. Ela salientava (mostrando a repetição dos mesmos expedientes) sete semelhanças entre as eleições de 1994 e 1989, para além do fato de ambas as candidaturas serem expressão "da velha aliança que domina econômica e politicamente o país"; semelhanças essas tomadas como indicadores em que a autora se apoia chegando àquela conclusão. Enunciemos os aspectos em que apoia a conclusão dessa recorrência:

"1) partindo-se das afirmações de Rubens Ricupero, no uso de uma rede nacional de televisão, que opera por concessão do poder público (portanto da sociedade brasileira), para propaganda indireta do candidato do governo, ferindo não só a lei eleitoral, mas também a lei de telecomunicações vigente no país;

2) partindo-se das afirmações de Ricupero, na manipulação das informações econômicas, escondendo-se dados cujo conhecimento são um direito constitucional dos cidadãos, violando-se, portanto, a legalidade e a cidadania democráticas;

3) partindo-se do noticiário dos jornais acerca das pesquisas de intenção de voto, no uso deliberado, por pesquisadores contratados pela campanha do candidato do governo, de afirmações que induzam o eleitor a uma opinião negativa sobre Lula (escolaridade, moradia, calote na dívida interna etc.), de mesmo teor das que foram usadas por Collor em 1989 (‘o PT vai pôr os favelados no quarto de hóspedes de sua mãe’, ‘o PT vai dividir seus eletrodomésticos e carros com os favelados e invasores de terra’, ‘Lula vai confiscar a poupança’ etc.);

4) partindo-se do que dizem articulistas, radialistas e jornalistas de televisão, na mesma manipulação ideológica de 1989, quando se dizia, como se diz hoje, que o PT está ‘infiltrado’ em todo o aparelho de Estado (e até na Rede Globo), conspirando para a implantação do totalitarismo no Brasil;

5) partindo-se do horário político, na repetição, pelo candidato do governo, dos ‘slogans colloridos’ sobre Lula; em 1989, ‘Lula vai tingir a bandeira nacional de vermelho’; em 1994: ‘Lula é a favor da inflação’;

6) partindo-se dos noticiários, na contratação, proibida pela lei eleitoral, de uma assessoria norte-americana para orientar e conduzir a campanha do candidato do governo, à maneira do que fizera Collor em 1989;

7) partindo-se das alianças com empreiteiras, bancos, PFL, PTB e os demais ‘bandidos’ para a montagem de um governo que, exatamente, impediu Fernando Collor de governar (ou Fernando Henrique acha que, tendo sido generosamente financiado por essa gente, iria governar sem eles ou contra eles?)." (723)

O regime globalitário, pois, em seu conteúdo e em seu método, não se implanta no Brasil com Fernando Henrique Cardoso. Tal implantação tem o seu início com Fernando Collor de Mello. Fernando Henrique, por sua vez, o implementa, isto é, dá-lhe a efetividade que Collor não conseguiu em razão de seu afastamento do poder com o impeachment. Em ambos os casos, os grupos hegemônicos são praticamente os mesmos com algumas variantes. No essencial as reformas de Collor e de Fernando Henrique são as mesmas, ressalvando-se que algumas proposições de Collor, em seu Projeto de Reconstrução Nacional, eram socialmente relevantes, como as políticas ligadas ao meio ambiente, à habitação (que previam um imposto predial e territorial urbano progressivo e a edificação compulsória, forçando o aumento da oferta de imóveis e a redução do preço das terras urbanas), políticas que se referiam às creches e pré-escolas (com o atendimento integral de crianças de 0 a 6 anos, de baixa renda), a Revisão do Imposto Territorial Rural, que depois foi implementada por Fernando Henrique. Evidentemente, nem sempre o que os governos apresentam para a opinião pública em seus projetos são objetivos reais a serem efetivados. E com poucas ações, em certas áreas, é possível gerar muitos signos que agenciam interpretantes de que muito se fez. Fato é que esses aspectos mencionados e outros não passavam de compensações com as quais Collor acenava para a sociedade em contrapartida às reformas que pretendia fazer. Tais compensações, todavia, desapareceram no quadro das reformas de Fernando Henrique que penalizam a maioria da sociedade e não lhe apresentam nenhuma compensação real por suas perdas. O discurso coercitivo opera sempre acenando com o retorno da inflação, caso a sociedade não se submeta fielmente às reformas estabelecidas pelo mandatário maior, que não é o presidente, mas o capital internacional na figura de seus investidores, empresários, bancos e fundos. Sem as reformas, eles não atuarão como se espera, haverá crise, uma tragédia social e o retorno da inflação.

É preciso pois, conforme esse discurso, ser realista. Tal realismo é, de fato, aderir ao modelo globalitário de política, economia e exclusão social como uma inevitabilidade resultante da presente fase de transição capitalista provocada pela atual onda tecnológica - a da Tecnologia da Informação. Enquanto o novo padrão produtivo não estiver plenamente implantado, haverá uma geração massiva de desemprego, uma vez que inúmeras funções de trabalho próprias ao antigo sistema estão desaparecendo e os trabalhadores ainda não têm a qualificação necessária para operar com as novas tecnologias. As agruras desta fase de transição, contudo, seriam compensadas pelo novo ciclo virtuoso que a disseminação dessa tecnologia traria para todos os povos e com a capacitação do conjunto dos trabalhadores para a realização de funções mais complexas. A abertura ao capital internacional aceleraria rapidamente esse processo e as nações que completarem mais rapidamente essa transição sairão da crise como as mais fortalecidas na economia internacional.

O projeto de Fernando Henrique, embora não esteja sequer estrategicamente voltado a realizar essa transição, passou a advogar as teses "realistas" que dizem respeito à inevitabilidade da exclusão no período de reformas, ajustes e transição. Ele mesmo afirmou que "provavelmente na dinâmica atual não há força para incorporar todo o mundo" (724) na sociedade formal, isto é, não é possível incorporar o conjunto da população ao âmbito dos direitos, do consumo, da educação e das liberdades reais. Como destacou Tarso Genro, neste caso, "a honestidade intelectual do presidente obriga-lhe a ‘abrir’ as conseqüências do programa que ele, hoje, representa como governante e que sustenta ser o único possível: um programa que tem a exclusão como necessidade invencível" (725) - ainda que transitória, segundo seu argumento.

Fernando Henrique, de certo modo, é expressão de uma passagem de certa parte da esquerda a posições "realistas". Avalia Tarso Genro que o presidente se preocupa em legitimar suas posições atuais, apoiando-as em quatro argumentos: "a) a esquerda é herdeira do corporativismo, e o corporativismo é conservador; b) a globalização determina um certo tipo de inserção internacional, que não deixa margem a escolhas; c) a esquerda não tem propostas, só críticas; d) o Estado atual deve ser reformado e enxugado." (726) Salienta Genro que tanto é possível arrolar-se dados empíricos que comprovem as teses de Fernando Henrique, como também é possível apresentar dados capazes de apoiar racionalmente o contrário: "que a direita e as classes privilegiadas no Brasil - que sustentam seu governo - são mais corporativas; que a globalização arma vários blocos de poder internacional, cujos interesses contraditórios permitem várias alternativas; que a direita não tem nenhuma proposta consistente, pois a situação social piora a cada dia no mundo; e que o Estado atual deve ser reformado, mas para ampliar o seu caráter público." (727)

Cabe, entretanto, considerar os elementos que provocaram a crise do pensamento utópico das esquerdas e que fizeram muitos de seus teóricos migrarem para as posições do "realismo político" neoliberal e outros para a defesa do socialismo democrático. A base histórico-concreta da unidade mínima da esquerda se diluiu rapidamente na virada dos anos 90. A concepção histórica das esquerdas, até então, permitia considerar a revolução como uma espécie de "apressamento" do processo histórico que possuía um fim previsível e tinha no proletariado o sujeito construtor da nova ordem. Como destaca Genro, "a esquerda não necessitou jamais fundamentar normativamente a igualdade para sustentá-la, pois o destino do socialismo estava inscrito, ou pelo menos fortemente insinuado, pelo próprio desdobramento da sociedade capitalista" (728), acreditando que a igualdade econômica fosse tanto historicamente inevitável como também moralmente correta. Contudo, a crise, na virada dos anos 90, colocava a esquerda na situação de que não havia mais nenhum "privilégio" histórico já estabelecido, como se supunha, imaginando-se que a crise da sociedade capitalista seria uma espécie de "motor" que levaria ao socialismo. Hoje, de fato, as transformações e o progresso do capital avançam na exclusão social e na afirmação da barbárie. Salienta Genro que

"a diluição da cultura política da esquerda e, de outra parte, a afirmação dos valores democráticos tradicionais (assegurados pelos países capitalistas avançados) terminaram com a credibilidade da pseudo-ética que nos atribuía [que atribuía à esquerda] exclusividade para defender a democracia real (afirmadora da igualdade), sem a necessidade de explicitar princípios normativos dotados de flagrante superioridade moral. Assim, hoje, é necessário buscar não só um acordo sobre os fundamentos morais da igualdade, capazes de se tornarem universais - a menos que nos apeguemos somente à religião, ou à equidade tomista -, mas também precisamos fundamentar (a partir de valores claramente explicitados) que o socialismo ‘representa tanto uma extensão da democracia capitalista, como a sua transcendência’. Isso significa admitir que a igualdade só pode ser consequência de uma decisão emancipatória do sujeito e que, para se afirmar como valor, ela - a igualdade - só pode legitimar-se pela democracia, que exige cena pública e liberdade (as quais são incompatíveis com qualquer regime de força, como nas antigas ‘democracias populares’)." (729)

Interessantemente considera Tarso Genro que, a assunção de Fernando Henrique à presidência, graças à sua aliança com o que existe de mais arcaico e fisiológico na sociedade brasileira, "não pode ser mensurado com as categorias de uma velha ética, em cujo centro estava o adjetivo ‘traidor’ para qualificar os ‘desvios’." (730) Com efeito, "a normatividade moral, oriunda desta ética, fundava-se na constatação de que havia um mundo novo em gestação e que a renúncia (de um sujeito individual) aos seus valores era um obstáculo à emergência da única sociedade capaz de redimir o gênero humano". A história recente, contudo, "provou nada estar assegurado no futuro, a não ser aquilo que os próprio homens farão dele". Trata-se, segundo Genro, de "constituir valores universais capazes de afirmar um novo projeto, antes, presumidamente, engendrado pela fatalidade do desenvolvimento capitalista combinado com o messianismo do sujeito proletário". Desse modo torna-se possível recriar a cultura política do socialismo e ampliar a audiência da esquerda na sociedade, "combatendo o aparente conforto da cultura da desigualdade e a aceitação objetivista da ‘naturalização’ das relações sociais, que só poderão levar a humanidade à pobreza, à barbárie e à guerra." (731)

Consideramos desnecessário resenhar, aqui, tudo o que apresentamos para comprovar a tese de que o governo de Fernando Henrique expressa, em grau elevado, um conjunto de características peculiares ao regime globalitário. A democracia liberal formalmente funciona - embora que com alguns crimes políticos impunes -, o neoliberalismo econômico vai sendo totalmente implementado no país e a hegemonia política é assegurada através das mídias de grande impacto, especialmente a TV. O processo hegemônico de produção de subjetividades afeta não somente o conjunto da população despolitizada, como também um setor politizado da esquerda que migrou para posições consideradas de "realismo político" e suas adesões ao projeto hegemônico são modelizadas permitindo significar que este projeto transcende as antigas oposições de esquerda e direita, que seriam representações arcaicas de uma era historicamente ultrapassada.

Frente a este realismo globalitário, entretanto, a esquerda democrático-socialista cumpre um papel histórico de grande importância ao reafirmar, a partir de uma nova base filosófica, a legitimidade do projeto político que visa universalizar as condições materiais, políticas, informativas e éticas ao exercício das liberdades públicas e privadas. Esta legitimação, construída sob uma racionalidade comunicativa, considera como momento fundante da ética o desejo de que o outro possa realizar plenamente a sua liberdade também eticamente exercida, construindo-se relações sociais em que a ampliação da liberdade de cada um deve ser equalizada com a ampliação da liberdade de todos, a fim de que a liberdade privada promova a liberdade pública e que esta promova a realização da liberdade privada de cada pessoa, criando-se mecanismos para garantir as mediações materiais, políticas, informativas e formativas para tal exercício.

Desse modo, a crítica à democracia formal instrumentalizada sob os regimes globalitários, avança para a afirmação de uma democracia substancial que se opõe aos modelos globalitários, promovendo novas mediações para a emancipação dos cidadãos.

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NOTAS:

491. "Governo fixa cronograma para influenciar o resultado da eleição". Folha de São Paulo, 16-08-94, Especial, p.1

492. "Máquina Trabalhando". IstoÉ, 31-08-94, p. 22

493. "O trator de Itamar Franco - Ministros são acusados de usar a máquina." Revista Veja, 31-08-94, p.35 e "Bilhete de Ministro associa obra a FHC - Tucano prometeu obra, decreto de Itamar libera verbas para realizá-la e bilhete de Stepanenko cobra empenho". Folha de São Paulo, 23-08-94, Especial, p3

494. Luciano SUASSUNA. "A ajuda que atrapalha - Justiça Eleitoral notifica tucano pelo uso da máquina". IstoÉ, 31-08-94, p. 21-23

495. "O efeito-máquina". Revista Veja, 14-09-94, p.39

496. SUASSUNA. "A ajuda que atrapalha..."

497. Lucio VAZ. "Governo do DF prepara comício de FHC - Máquinas de empresa pública preparam terreno de evento; ofício demonstra uso eleitoral da administração". Folha de São Paulo, 25-08-94, Especial, p-3

498. "O trator de Itamar Franco - Ministros são acusados de usar a máquina." Revista Veja, 31-08-94, p.35

499. Cynara MENEZES. "Presidente dá ‘mau exemplo’, diz corregedor". Folha de São Paulo, 24-08-94, Especial, p.1

500. Ibidem

501. "TSE investiga apoio da máquina a FHC" Folha de São Paulo, 31-08-94, Especial, p. 4

502. "Candidato tenta adiar depoimento no TSE". Folha de São Paulo, 19-09-94, Especial, p.1

503. "Órgão da CNBB fez acusação ‘falsa’, diz Planalto". Folha de São Paulo, 15-04-97, p. 1-12

504. Ibidem

505. "Fernando RODRIGUES. "Sérgio Motta intermediou compra de voto pró-reeleição, diz deputado". Folha de São Paulo, 14-05-97, p.1-6

506. "Nova fita liga Sérgio Motta a compra de voto para reeleição". Folha de São Paulo, 14-05-97, p.1-1

507. "Trechos da gravação envolvem o governo na compra de deputados". Folha de São Paulo, 14-05-97, p.1-7

508. RODRIGUES. "Sérgio Motta intermediou compra de voto..."

509. Como escreveu Aloysio Biondi, em um artigo intitulado "A especulação bilionária e nós", "Um pequeno banco, desses fundados por ex-economistas que participaram de governos, lucrou 125%, sobre o capital, no primeiro semestre do ano. Para um capital de R$ 50 milhões, um ganho de R$ 75 milhões, dos quais R$ 25 milhões dentro do país e R$ 50 milhões em operações lá fora, basicamente com títulos da dívida externa brasileira. / Não é um caso isolado. O mercado financeiro brasileiro tem sido palco de uma imensa farra bilionária para algumas instituições e grandes ‘investidores’ nos últimos meses.". Folha de São Paulo, 20-11-97, p. 2-2

510. Folha de São Paulo, 29-06-97, 1-18

511. "FHC atrela obras ao calendário eleitoral". Folha de São Paulo, 29-06-97, p.1-1

512. Marta SALOMON. "Brasil em Ação é novo palanque de FHC". Folha de São Paulo, 29-06-97, p.1-17

513. Nelson de SÁ. "FHC em ação". Folha de São Paulo, 13-02-97

514. Cf. http://www.brasil.emb.nw.dc.us/spar02br.htm

515. Janes ROCHA. "Região ganha projeto". Jornal do Brasil, 06-02-98. http://www.jb.com.br/09970550.html

516. Oswaldo BUARIN Jr. "TCU vê ‘indício de irregularidade’ em obras do ‘Brasil em Ação’ - Programa lista prioridades do governo FHC para 97/98" Folha de São Paulo, 19-09-97, p.1-10

517. Ibidem

518. Oswaldo BUARIN Jr. "Obras são aceleradas para FHC inaugurar - Governo deve ter 23 projetos do ‘Brasil em Ação’ para presidente entregar enquanto lei permitir". Folha de São Paulo, 9-01-98, p. 1-8

519. Oswaldo BUARIM JR."FHC faz maratona de inaugurações". Folha de São Paulo, 06-02-98, p.1-7

520. Eliane CANTANHÊDE. "Plano de obras não é eleitoreiro, decreta FHC". Folha de São Paulo, 09-01-98, p. 1-1

521. Igor GIELOW. "Kandir inviabiliza marketing". Folha de São Paulo, 7-10-98, p.

522. Ibidem

523. Lucio VAZ. "Requião denuncia uso político de verba". Folha de São Paulo, 09-01-98, p.1-9

524. Ibidem

525. Lucio VAZ e Luiza DAMÉ. "Apoio de PMDB-SC a FHC custa R$ 150 milhões - Cálculo reúne pedidos do governador Paulo Afonso Vieira, que diz ter 28 votos na convenção", Folha de São Paulo, 04-03-98 p.1-7

526. "FHC ganha batalha; PMDB não terá candidato em 98 - Governistas trocaram verbas por votos até o final da votação". Folha de São Paulo, 9-03-98, p.1-4

527. Cynara MENEZES. "Governistas pagam apoio". Folha de São Paulo, 09-03-98, p.1-8

528. Cynara MENEZES. " ’Ai, não me faça mentir’ ". Folha de São Paulo, 09-03-98, p.1-8

529. MENEZES. "Governistas pagam apoio"

530. Ibidem

531. William FRANÇA. "Para Itamar, PMDB deve deixar "periferia'". Folha de São Paulo, 09-03-98, p.1-7

532. MENEZES. "Governistas pagam apoio".

533. Lucas FIGUEIREDO e Abnor GONDIM. "PSDB e PFL buscam doações de R$ 1,1 mi - Dinheiro está sendo pedido a empresas, entidades sindicais e pessoas físicas para bancar campanha pró-reeleição" Folha de São Paulo, 24-01-97, p.1-8

534. Ibidem

535. "TSE proíbe propaganda da reeleição" Agência Folha/AJB 23-01-97, 23hs00min

536. Aloizio Mercadante. "Falsificando a história contemporânea". Folha de São Paulo, 21-09-97, p. 2-4

537. "Governo usa hoje R$ 1,5 bi da Vale para abater dívida". Folha de São Paulo, 14-05-97, p.1-4

538. Miro TEIXEIRA. "Ações judiciais tentarão impedir a entrega do patrimônio nacional - Companhia Vale do Rio Doce: vende-se um pedaço do Brasil". Revista Cadernos do Terceiro Mundo n° 197, Abril - Maio, 1996. http://www.etm.com.br/vale199.htm

539. Ibidem

540. Ibidem

541. Luís Costa PINTO. "Privatização rende R$ 37,6 bilhões em 6 anos". Folha de São Paulo, 26-12-97, p.1-5

542. Gustavo PATÚ. "Banco consome 52,3% da dívida do Real - em dois anos , o débito interno do caixa do governo passou de R$ 61,765 bilhões para R$ 154,287 bilhões". Folha de São Paulo, 25-08-96, p. 1-15

543. "Dívida Pública dobra no período FHC - Descontrole de gastos, alta dos juros e socorro da União a Estados e bancos elevam débito de R$ 153 bi para R$ 306 bi em 3 anos." Folha de São Paulo, 27-02-98, p. 1-1

544. Rodney VERGILI e Oscar PILAGALLO. "Despenca prazo de rolagem da dívida". Folha de São Paulo, 03-02-96, p. 2-5

545. BAVA. "Agentes da mudança no país".

546. Fabio ZANINI. "Ato contra privatização deixa 5 feridos". Folha de São Paulo, 19-12-97, p.1-13

547. VÁRIOS. "Em Defesa da Terra, do Trabalho e da Cidadania". http://www.webcit.com.br/~sintpq/cidada/carta_br.htm

548. Ibidem

549. Roberto ROMANO. " ’Denuncismo’ ou defesa dos cidadãos?". Folha de São Paulo, 20-06-96, p. 1-3

550. Ibidem

551. Ibidem

552. TEMER. "Dois Pesos e Duas Medidas" http://www.pt-rj.org.br/temer/arquivo/edit070497.html

553. Estratagema N.38: "Quando se percebe que o adversário é superior e que acabará não nos dando a razão, se adotará um tom ofensivo, insultante e áspero. O assunto se personaliza, pois do objeto do debate (dado que a disputa está perdida) se passa ao debatedor e se ataca, de uma ou outra maneira, a pessoa... Deixa-se o objeto completamente de lado e se concentra o ataque contra a pessoa do adversário e assim se converte em insolente, pérfido, ultrajante, áspero." Arthur SCHOPENHAUER. El arte de tener razón. Madri, Biblioteca Edaf, p.65. A tradução brasileira foi publicada pela TopBooks, em 1997, sob o título Como vencer um debate sem ter razão.

554. "Esqueçam quem eu fui" Folha de São Paulo, 28-03-95, p. 1-2

555. IstoÉ, 28-09-94, segunda capa.

556. Folha de São Paulo, 31-12-95, p. 1-22;

557. Eliane CANTANHÊDE "Conversa de tico-tico". Folha de São Paulo, 09-01-98, p. 1-2

558. Aloysio BIONDI. "Muito obrigado doutor Gustavo Franco". Folha de São Paulo, 12-12-96, p.2-2

559. VÁRIOS. "Em Defesa da Terra, do Trabalho e da Cidadania". http://www.webcit.com.br/~sintpq/cidada/carta_br.htm

560. Clóvis ROSSI. "O PT e o preconceito". Folha de São Paulo, 17-08-94, p. 1-2

561. Fernando RODRIGUES. "Ficha anti-Lula diverte empresários - Panfleto apócrifo simula filiação ao PT; militantes são descritos como traficantes, cachaceiros e prostitutas". Folha de São Paulo, 16-08-98, Especial, p.3

562. Ibidem

563. Ibidem

564. Jânio de FREITAS. "Delinquência eleitoral". Folha de São Paulo, 21-08-94, p.1-5

565. "O efeito-máquina". Revista Veja, 14-09-94, p. 35

566. "O efeito-máquina". Revista Veja, 14-09-94, p. 35

567. "FHC diz que movimento sem-terra perdeu conteúdo social". Brasil On Line, Agência Folha, 3-3-1998, 19hs44min

568. Olímpio Cruz Neto. "FHC troca afagos com ministros do TCU". Folha de São Paulo, 18-01-96, p. 1-5

569. Milton TEMER. "Dois Pesos e Duas Medidas" http://www.pt-rj.org.br/temer/arquivo/edit070497.html

570. Osiris LOPES FILHO. "Todo Poderoso". Folha de São Paulo, 14-12-97, p.2-2

571. Ibidem

572. Ibidem

573. Antônio de Pádua RIBEIRO. "Salvem o judiciário". Folha de São Paulo, 05-10-97, p.1-3

574. Ibidem

575. Ibidem

576. Ibidem

577. Ibidem

578. Ibidem

579. Ibidem

580. Ibidem

581. Ibidem

582. Ibidem

583. As principais propostas do documento e os pronunciamentos do ex-presidente em sua apresentação podem ser lidos no jornal Folha de São Paulo, 15-03-91, p.1-8

584. "Leia o discurso do presidente Collor". Folha de São Paulo, 15-03-91, p.1-9

585. José Luis Fiori, Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 03/7/94

586. Maria da Conceição TAVARES. "Globalitarismo e neobobismo". Folha de São Paulo, 30-03-97, p. 2-5

587. Globalização, Neoliberalismo e Precarização das Relações de Trabalho - Teses Aprovadas no III Congresso Internacional de Direito Alternativo do Trabalho. http://www.portoweb.com.br/amatra/tesema.htm

588. Fábio FERNANDES. "O príncipe está nu - Sociólogo denuncia em livro a postura ambígua de FHC". Tribuna da Imprensa, 19-06-97

589. Sérgio Penna KEHL. "O neo-autoritarismo" Folha de São Paulo, 11-11-97, p. 2-2

590. Ibidem

591. Veja-se: Paul RICOEUR. Ideologia e Utopia. Lisboa, Edições 70, 1991

592. José Luis FIORI. "Os moedeiros falsos". Folha de São Paulo, 03-07-94, Caderno Mais!, p. 6-6

593. Ibidem

594. Ibidem

Ibidem

595. Ibidem

596. Ibidem

597. Ibidem

598. Ibidem Veja-se também: Fernando de BARROS E SILVA. "O profeta de si mesmo". Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 13-10-96, p. 5-8

599. FIORI. "Os moedeiros falsos", p. 6-6

600. Ibidem

601. Ibidem

602. Ibidem, p. 6-7

603. Ibidem

604. Ibidem

605. Ibidem. Conforme Lourdes Sola, no artigo "O Dragão enfrenta o Santo", em que faz críticas ao artigo de Fiori que estamos resumindo, estas características apontadas por Nelson e Hagaard configuram o chamado "paradoxo neoliberal". Como afirma a autora, "Tais condições estão longe de projetar um perfil democrático dos governos –e do Estado– que inicia as reformas relevantes. Trata-se, portanto, de um diagnóstico extremamente crítico do paradoxo neoliberal, que Fiori transmuta em receituário. O mesmo ocorre com a forma pela qual entende a formação de coalizões governativas..." Assim, Fiori transformaria um diagnóstico crítico em receituário e o mesmo ocorreria quando analisa a composição de alianças para constituir a maioria que implementará o programa. "O Dragão enfrenta o Santo". Folha de São Paulo, 24-07-94, p.6-3

606. FIORI. "Os moedeiros falsos", p. 6-7

607. Ibidem

608. Fernando de BARROS E SILVA. "Os Dois Lados da Moeda - O real divide a sucessão e traz à tona o debate sobre a adesão do país ao Consenso de Washington". Folha de São Paulo, 03-07-94, Caderno Mais!, p.6-4

609. Ibidem

610. É interessante destacar que aproximadamente um ano depois FHC afirmaria que as oposições não têm propostas alternativas ao seu governo.

611. Fernando Henrique CARDOSO. "Reforma e Imaginação". Folha de São Paulo, 03-07-94, Caderno Mais!, p. 6-3

612. Ibidem

613. Ibidem

614. Ibidem

615. Ibidem

616. Ibidem

617. Ibidem

618. Ibidem

619. Ibidem. A expressão "ação da estatal" soa estranho e talvez fosse "ação estatal", podendo ter ocorrido algum deslize na redação ou impressão.

620. Ibidem

621. Ibidem

622. Ibidem

623. Ibidem

624. Assim, se o país tivesse gasto um terço do que gastou pagando juros da dívida interna, por exemplo, com o desenvolvimento de biotecnologia, explorando nossa biodiversidade e formalizando cientificamente o conhecimento disponível nas coletividades que conhecem milenarmente propriedades dessa biodiversidade, estaríamos atuando hoje na vanguarda da tecnologia de ponta, ao invés de assistir a pilhagem desses conhecimentos por laboratórios multinacionais que fazem bioprospecção de nossa fauna e nossa flora e patenteiam no exterior fórmulas de substâncias terapêuticas que já eram utilizadas secularmente no Brasil por várias comunidades.

625. Trata-se de comentários a dois livros de ensaios do autor.

626. Enzo FALETTO. "Razões da Crise do Estado". Folha de São Paulo, 14-01-96, p. 5-11

627. Ibidem

628. Ibidem

629. Ibidem

630. Ibidem

631. Ibidem

632. Ibidem

633. Ibidem

634. Ibidem No texto lê-se "setores favorecidos" - seguramente um erro de impressão.

635. Ibidem

636. Ibidem

637. Ibidem

638. Ibidem

639. Ibidem

640. Paulo Nogueira BATISTA JR. "Dependência: da teoria à prática". Folha de São Paulo, 18-12-97, p.2-2

641. Ibidem

642. Gilberto DIMENSTEIN e Josias de SOUZA. A história real - Trama de uma sucessão. Editora Ática, 1994, p.240

643. "Viagem às idéias do líder nas pesquisas" Revista Veja, 24-08-94, p.24

644. Ibidem

645. Ibidem

646. Ibidem

647. Fernando Henrique CARDOSO. "Certamente ganhei no 1o. turno por larga margem de votos" Folha de São Paulo, 7-10-94, Caderno Especial, p. 1

648. Ibidem

649. Ibidem

650. Ibidem

651. Ibidem

652. Ibidem

653. Ibidem

654. Ibidem

655. Ibidem

656. Clóvis ROSSI. "Na Itália, FHC faz críticas ao ‘atraso’ dos partidos". Folha de São Paulo, 14-02-97, p.1-9

657. Clóvis ROSSI. "FHC passa mal ao defender nova democracia radical". Folha de São Paulo, 04-12-97, p.1-4

658. ROSSI. "Na Itália, FHC faz críticas ao ‘atraso’ dos partidos".

659. ROSSI. "FHC passa mal ao defender nova democracia..."

660. Sob esse conceito, no caso brasileiro, se incluiria, por exemplo, da Fundação Abrinq, que colabora na defesa dos direitos das crianças.

661. ROSSI. "Na Itália, FHC faz críticas ao ‘atraso’ dos partidos".

662. Ibidem

663. ROSSI. "FHC passa mal ao defender nova democracia..."

664. Ibidem

665. Ibidem

666. Ibidem

667. Ibidem

668. Ibidem

669. Ibidem

670. "Presidente critica protesto de ONG - FHC afirma que ‘não adianta gritar’". Folha de São Paulo, 04-12-97, p. 1-5

671. Mesmo no discurso que proferiu no México em 1996 quando analisou as conseqüências da globalização para os países em desenvolvimento, mesmo ali esta problemática não foi abordada, limitando-se a afirmar que "Outro elemento crucial é a crescente mobilidade dos fluxos financeiros internacionais e de seu impacto para as políticas monetária e cambial das economias nacionais. Fica cada vez mais difícil identificar a procedência dos capitais e, sobretudo, as intenções dos gerentes que os manipulam. A análise do destino dos lucros e de seus beneficiários se torna também uma questão complexa. Isso não significa que fiquemos desarmados diante da volatilidade dos capitais. A constatação dessa tendência não pode levar à passividade. A internacionalização dos fluxos deve corresponder a novos arranjos internacionais para discipliná-los. E há espaço para tanto." "FHC analisa consequências da globalização" Folha de São Paulo, 21-02-96, p.1-6

672. Uma parte das afirmações de Fernando Henrique que analisaremos neste item foram extraídas de: Elio GASPARI. "FFHH é ótimo. A sociedade brasileira é que não presta." Folha de São Paulo, 27-04-97, p. 1-14

673. Julho de 1996

674. Janeiro de 1996

675. Agosto de 1995

676. Maio de 1996

677. Maio de 1996

678. "Ricupero nada entende de política, diz FHC". Folha de São Paulo, 23-08-94, Especial, p.3

679. Outubro de 1996

680. Outubro de 1996

681. Outubro de 1996

682. Elio GASPARI. "FFHH é ótimo. A sociedade brasileira é que não presta." Folha de São Paulo, 27-04-97, p. 1-14

683. Ibidem

684. Ibidem

685. Emanuel NERI. " ‘Esse pessoal teimoso, do contra, deveria guardar sua bílis’, diz FHC". Folha de São Paulo, 26-07-97, 1-5

686. "Manifestantes tomam Brasília e vão a FHC". Folha de São Paulo, 23-03-95, p.1-8

687. NERI. " ‘Esse pessoal teimoso, do contra..."

688. Ibidem

689. Ibidem

690. Elza Pires de CAMPOS. "Rombo do Nacional é 1/3 de verba social". Folha de São Paulo, 3-03-96, p.1-18

691. Celso PINTO. "Gastos Sociais favorecem mais os ricos". Folha de São Paulo, 03-03-96, p.1-22

692. João Batista NATALI. "Intelectuais condenam omissão na área social". Folha de São Paulo, 01-01-96, p. 1-6 Este texto está, aqui, parafraseado.

693. Ediana BALLERONI. "A ‘cirurgia’ de J.K. Galbraith - O economista acha que em certas ocasiões’ é melhor não pagar o FMI" - Entrevista. Folha de São Paulo, 9-10-94, Mais!, p.6-4

694. "A diferença entre 89 e 94 é a participação do governo". Revista Democracia, n. 105, ago-set 94; in Quinzena n.194, 15/10/94, p.24, Centro de Pastoral Vergueiro.

695. Wilson TOSTA. "Betinho culpa ‘conservadores’ do governo". Folha de São Paulo, 04-05-96, p. 1-4

696. VÁRIOS. "Em Defesa da Terra, do Trabalho e da Cidadania". http://www.webcit.com.br/~sintpq/cidada/carta_br.htm

697. José Luís FIORI. "In Memoriam". Folha de São Paulo, 13-07-97, p. 5-10

698. Emir SADER. "O populismo autoritário de FHC". Folha de São Paulo, 18-02-98, p. 1-3

699. Ibidem

700. Abnor GONDIM. "Procuradoria vê lavagem de dinheiro - Notas fiscais e faturas mostram que Econômico pode ter lançado doações a políticos em 90 nas despesas do banco". Folha de São Paulo, 16-12-95, p. 1-6

701. Ibidem

702. Folha de São Paulo, 08-12-95, p.1-4

703. Depoimento realizado à Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias em abril de 95 no Congresso Nacional.

704. Denise MADUEÑO. "Empresa tinha dados prévios, diz petista." Folha de São Paulo, 24-11-95, p. 1-6. Trata-se de uma passagem do relatório da comissão parlamentar que colheu o seu depoimento.

705. "Sivam: vazamento de informações beneficiou Raytheon" Informes, n. 1025, 24-11-95, p.1

706. MADUEÑO. "Empresa tinha dados prévios..."

707. "Esca deve R$ 7,8 mi ao INSS, diz Chinaglia" Folha de São Paulo, 20-04-95, p. 1-10

708. "Principais Momentos". Folha de São Paulo, 31-12-95, p.1-22

709. Lucas FIGUEIREDO. "Raytheon terá acesso a informações sigilosas - Governo vai repassar toda a verba do projeto à empresa norte-americana, que controlará o sistema de vigilância". Folha de São Paulo, 10-07-95, P.1-7

710. Ibidem

711. "Físico crítica uso de tecnologia estrangeira" Folha de São Paulo, 7-12-95, p.1-5

712. Paulo Nogueira BATISTA Jr. "Candidato a vice-rei do Brasil?" Folha de São Paulo, 28-12-95, p. 2-2

713. "Conheça a carta de Frota" Folha de São Paulo, 5-12-95, p.1-5

714. BATISTA Jr. "Candidato a vice-rei do Brasil?"

715. "Fitas foram desgravadas, afirma Jobim". Folha de São Paulo, 29-11-96, p.1-6

716. Abnor GONDIM. "Rotina da PF contradiz depoimento de Chelotti - Agente afirma que Polícia Federal não desgrava fitas". Folha de São Paulo, 02-12-95, p. 1-7

717. Marcelo LEITE. "Mais cor, mais agilidade, mais informação" Folha de São Paulo, 3-12-95, p. 1-6

718. Aloysio Biondi. "O presente que o Brasil ganhou". Folha de São Paulo, 24-12-95, p.2-5

719. "Falta firmeza a FHC, diz Requião". Folha de São Paulo, 19-12-95, 1-9

720. BIONDI "O presente que o Brasil ganhou"

721. Vale destacar um dos jogos semióticos desenvolvidos ainda sob o governo Itamar, durante a Copa do Mundo de Futebol, agenciando a fé no provir utópico. Entremeando a locução dos jogos do Brasil na Rede Globo, após várias finalizações do ataque brasileiro, ouvia-se o locutor dizer frases do tipo "Tenha fé no Real...", "Acredite, é Real..."

722. CHAUI, Marilena. "Na segunda vez, como farsa". Folha de São Paulo, 11-09-94, p. 1-3

723. Ibidem

724. "O regime não é dos excluídos - Sistema incorpora massas ao consumo, mas não pode agregar todos, segundo FHC". Folha de São Paulo, 13-10-96, p.5-6 Entrevista com Fernando Henrique. Caderno Mais!

725. Tarso GENRO. "A síndrome FHC da intelectualidade". Folha de São Paulo, 20-10-96, p.5-3

726. Ibidem

727. Ibidem

728. Ibidem

729. Ibidem

730. Ibidem

731. Ibidem