Euclides André Mance
Globalização, Subjetividade e Totalitarismo
- Elementos para um estudo de caso: O Governo Fernando Henrique Cardoso
Copyright do Autor © 1998



Capítulo III
(Seções 14 a 19)

 

14. Algumas características e técnicas no uso das mídias para produção de subjetividades e alteração de cenários políticos.

Destacaremos a seguir algumas características e técnicas semióticas utilizadas para saturar interpretantes, produzir subjetividades e agenciar comportamentos políticos. Destacaremos, basicamente, cinco delas: a difusão abundante de informações com precária qualidade para uma compreensão crítica do objeto dinâmico que os gera, a transfiguração de cenários gerando interpretantes que não correspondem ao objeto dinâmico representado, a mudança de cenário agenciando interpretantes favoráveis ou possibilitando que a personagem se desvencilhe dos signos indesejados, a técnica da invisibilidade da personagem mesmo permanecendo no cenário e, por fim, a técnica de alterar o foco da semiose e produzir uma confusão de interpretantes.

a) A Informação Abundante e de Qualidade Precária

A técnica básica das semioses globalitárias consiste na difusão maciça de informações em quantidade abundante, mas em qualidade precária, o que dificulta a capacidade de articulação dos dados, articulação essa que possibilitaria a compreensão crítica do evento que - como objeto dinâmico - os gera. Nesta difusão maciça e precária faz-se "uma mistura de sub-literatura de novela com jornalismo", como analisa Marilene Felinto (365). Trata-se da saturação da informação, ao mesmo tempo em que se acobertam algumas mediações importantes e se sugerem outras mediações como hipóteses articuladoras que, por sua vez, acabam operando na interpretação da informação.

Comparando o Jornal Nacional da TV Globo com a Blockbuster, em razão da quantidade de elementos que disponibilizam a partir de um determinado filtro, Felinto analisa que "a Blockbuster e o novo ‘JN’ são os frutos materiais da ‘modernização’ brasileira. Operam na linha da falsa democratização da abundância e da informação. Participam da cruzada montada pelos liberais da classe média alta para sanear a sociedade - já que não lhes interessa alterar a ordem econômica das coisas - censurando tudo, do vício do fumo a pornografia e ‘discurso hostil’, como disse o sociólogo americano Christopher Lasch." (366) A semiose pasteurizada do Jornal Nacional seqüenciava informações a partir de certa iconicidade das imagens. Como o olhar intui mais rapidamente a informação do que os ouvidos interpretam a locução que se lhe sobrepõe, uma série de imagens vão sendo seqüenciadas e agenciando interpretantes peculiares a cada cena, mas que - conforme a seqüência - acabam sendo transpostos para a cena seguinte. Assim, por exemplo, das imagens de um conflito entre policiais e presidiários rebelados em uma casa de detenção, passa-se às imagens da repressão policial de uma manifestação de camelôs e na seqüência à uma manifestação de sem-terras sob a chuva; mostra-se, então, o transbordamento de rios em algumas cidades e por fim chega-se à previsão do tempo, No caso do pacote de imagens compradas das agências internacionais, o texto sobreposto, muitas vezes, ressalta aspectos das imagens fornecendo interpretantes que as tornam ainda mais fragmentadas. Uma parte dessas informações, inclusive, são irrelevantes para subsidiarem decisões importantes dos receptores ou ampliarem seu universo de compreensão das temáticas a que se vinculam, ou permitirem um posicionamento pessoal mais esclarecido sobre os problemas em questão.

A reformulação do Jornal Nacional tirou-lhe o ar asséptico, reduziu um pouco a velocidade da locução e introduziu "comentários críticos" - como os de Arnaldo Jabor. Contudo, o seu jornalismo mantém as mesmas características novelísticas: no campo político, por exemplo, há os heróis e os vilões do país; os primeiros são modernos e arrojados, lutam pelo fim da inflação, são esclarecidos, competentes e instruídos, capazes de alianças abertas e generosas pelo país, mas há também os que são atrasados e arcaicos, medrosos e jurássicos, sectários, incompetentes, radicais e estreitos que dificultam o combate à inflação, a realização das reformas e o sucesso do país, fazendo oposição ao governo e ao Plano Real. Em uma sucessão de oposições binárias as imagens podem ser rearticuladas e os "comentários críticos", em geral, realimentam esta binariedade. A cada dia ter-se-á um novo capítulo da mesma novela das reformas que o governo quer fazer e da oposição que o atrapalha. O jornal, entretanto, não mostra que o governo tem a maioria absoluta para aprovar o que quiser, mas que grande parte de sua base de sustentação sempre quer algo em troca para apoiar as medidas e que essas negociações não são fáceis, emperrando, muitas vezes, a ação do próprio governo. Recentemente o Jornal Nacional passou por nova reformulação, buscando retornar a uma configuração mais asséptica.

A saturação da informação abundante e a reafirmação das binariedades, são a base de uma tecitura semiótica em que diversos cenários são construídos, remodelados e revisitados. Dentro deles os personagens se movem a partir de um script que orienta a produção das imagens sobre os fatos selecionados, visando agenciar os interpretantes que se deseja. Assim, conforme a pauta do jornal, as liquidações, por exemplo, convertem-se em símbolos de um amadurecimento dos consumidores. A pauta não mostra, entretanto, que uma parcela das liquidações são fruto do desespero de lojistas que ficaram inadimplentes, por terem recebido cheques sem fundo, e que precisam fazer caixa para não falir.

b) Transfigurar o Cenário

Sob esta técnica, setores da imprensa - fazendo eco a uma tática do governo - exageraram nas tintas ao afirmar que a manifestação dos movimentos sociais no primeiro semestre de 1995 colocava em perigo a ordem constitucional do país. Isto conferiu um aval ao modo autoritário como o governo tratou posteriormente a greve dos petroleiros - quando aproximadamente 300 mil servidores federais paralisaram as atividades garantindo, contudo, a manutenção de procedimentos que resguardavam a preservação e a segurança de refinarias e demais elementos do sistema, bem como a manutenção mínima dos serviços exigidos por lei nos casos de greves em setores essenciais. Além do reajuste mensal dos salários, os grevistas se manifestaram contra a privatização dos correios, do setor elétrico e defendiam o monopólio estatal nos setores petrolífero e de telecomunicações. Esta greve recebeu um tratamento exemplar pela maior parte dos veículos da grande imprensa que, transfigurando o cenário, levou a população a comprar botijões de gás em quantidade maior que a habitual sem que tivesse necessidade ou manter sempre cheios os tanques dos veículos e até mesmo fazer reservas de combustível. Exibindo filas que se formaram para comprar gás em alguns postos de venda ou postos de gasolina que ficaram desabastecidos em razão da elevação da procura, as imagens não apenas pressionavam a opinião pública contra a greve, como também promoviam uma pressão sobre reservas de combustível que garantiriam as necessidades do país durante o período das negociações. Vale destacar, por exemplo, que não faltou gás de cozinha no país, embora os noticiários exibissem algumas filas imensas de pessoas esperando sua vez para comprar um botijão de gás em certas cidades, mas não destacava que também havia outros depósitos que poderiam suprir aquela demanda.

Com o suporte semiológico gerando interpretantes favoráveis a uma atitude de radicalização do governo, Fernando Henrique Cardoso ordenou que o exército ocupasse quatro refinarias da Petrobrás, visando retomar a produção de combustíveis interrompida há 20 dias. No mesmo dia em que os tanques ocupavam as refinarias, contudo, a Câmara Federal aprovava, em primeiro turno, a emenda constitucional quebrando o monopólio estatal na área de telecomunicações. Vale destacar que a greve já durava vinte dias, mas que foi justamente no dia em que esta emenda constitucional seria votada que o governo ordenou a ocupação. Os tanques em quatro refinarias enfrentando uma greve em um monopólio estatal que poderia provocar uma tragédia no país - conforme o cenário transfigurado pelas mídias - era um signo agenciador de interpretantes favoráveis à quebra dos monopólios estatais. Por fim, no dia 2 de junho, encerra-se a paralisação dos petroleiros, que havia sido considerada abusiva pelo TST, não sendo atendidas as reivindicações dos sindicalistas. Dezoito dias depois, a emenda que quebrava o monopólio da Petrobrás, foi aprovada pela Câmara em 2º turno, com 360 votos a favor e 129 contrários.

c) Mudar de Cenário

Por outro lado, Fernando Henrique valeu-se muitas vezes, também, da técnica de mudança de cenário, realizando viagens internacionais a fim de gerar outros signos que mostrassem respeito e admiração à sua figura como intelectual. Assim, no mesmo dia em que circulava informações do TCU sobre a queda de gastos do governo na ordem de 83% na assistência às crianças e outros cortes dramáticos nas áreas sociais, os telejornais exibiam o sociólogo recebendo o título de doutor "honoris causa" em uma universidade na França (367). Essas imagens tiveram maior destaque nas TVs do que as graves declarações do TCU sobre o orçamento do governo.

As coberturas jornalísticas do presidente recebendo títulos no exterior foram muitas e algumas muito exageradas. Alguns órgãos de comunicação enfatizaram, por exemplo, o pronunciamento do orador oficial da universidade de Cambridge, Anthony Bowen que, na cerimônia em que se conferiu a Fernando Henrique o título de doutor honoris causa em direito, comparou-o ao imperador romano Júlio César e ao "governante ideal" proposto por Platão, filósofo que viveu na Grécia Antiga. (368) FHC, por sua vez, aproveitou a oportunidade para produzir signos que agenciassem interpretantes valiosos à sua hegemonia política quando veiculados no Brasil. Assim, ao dizer em seu discurso que "esta cerimônia é um sinal de respeito para com o meu país." e ao reforçar esta tese posteriormente dizendo aos jornalistas que "Há um significado sentimental e também importante de reconhecimento para o Brasil. O príncipe Philip veio pessoalmente conferir o grau de doutor..." (369), tem-se que, sob a semiose de seu discurso, o reconhecimento do sociólogo Fernando Henrique Cardoso é, portanto, o reconhecimento do Brasil, confundindo-se desta forma a sua pessoa com a figura jurídica do governante e ambas com a própria nação. Muitos brasileiros se encheram de orgulho ao ver pela mídia o coro de meninos da King's College, que anualmente apresenta um recital de Natal à rainha, cantar o Hino Nacional brasileiro. O cenário é propício a essa confusão simbólica. Ao mistificar assim o recebimento deste título Fernando Henrique pôde dizer, ao ser agraciado pelas mãos do príncipe Philip, que é o Brasil quem está sendo reconhecido. Desloca-se, portanto, as atenções dos angustiantes indicadores sociais do país, para o cenário do reconhecimento da nação no primeiro mundo pela mediação dos dotes teóricos que seu mandatário desenvolveu no passado. Confunde-se a trajetória de uma vida privada com uma função pública e ambas com a nação.

Em outra oportunidade, recebendo o título de doutor honoris causa na London School of Economics, outras afirmações também alimentaram a mídia, como as de Anthony Giddens, recordando uma conversa que tivera, há algum tempo, com FHC: "Eu dizia que não era possível ser um acadêmico famoso e também um líder político relevante. Estava enganado". Giddens não poupou elogios a Fernando Henrique que era seu amigo, chegando a descrevê-lo como: "talvez o mais altamente eficaz líder político democrático que o Brasil já teve". (370) Entre outros, FHC recebeu títulos do mesmo tipo em universidades da Venezuela, Coimbra, Porto, Berlim, Lion, Japão, Bologna, etc. (371) Entretanto nem sempre esta estratégia de recuperar semioticamente a mudança de cenário funcionou sem inconvenientes. Quando recebeu o título na Universidade de Bologna, por exemplo, um grupo de intelectuais elaborou um manifesto cobrando providências concretas para a realização da Reforma Agrária no Brasil. O documento lembrava os massacres de sem-terras ocorridos em Eldorado de Carajás e Corumbiara, citava os 47 mortos em conflitos no campo em 1996 e lamentava que "menos de 20 dos responsáveis por estes crimes foram processados e condenados". (372) Contudo, este "pequeno incidente" não apagaria o brilho da festa.

Muitas semioses importantes ao presidente são geradas nesses contextos. Na Universidade de Bologna, por exemplo, Fernando Henrique Cardoso, vestindo uma toga com bordados roxos, recebeu primeiramente um anel - que simbolizaria a aliança entre os novos doutores e a ciência - e em seguida o livro A República, do filósofo Platão. Inicialmente o livro lhe foi entregue fechado, significando, nas palavras do locutor, que "o professor Fernando Henrique Cardoso possui a ciência da política de Estado". Na seqüência o livro foi aberto; o gesto - continua o locutor - "significa que ele [FHC] pode levar à sociedade aquela ciência, com a palavra e com a ação." (373)

Nestas oportunidades, quando está em meio a um cenário internacional, Fernando Henrique sempre defende a "radicalização da democracia" - como quando recebeu o título de doutor honoris causa na área de ciências econômicas na London School of Economics. Ali afirmou que a resposta aos desafios colocados pelos tempos modernos é "radicalizar a democracia" (374).

Esta mesma técnica de mudar o cenário, evitando a geração de signos que capturassem a sua imagem com interpretantes ruins, foi adotada por Paulo Maluf quando estourou o escândalo dos precatórios que o envolvia, juntamente com o seu ex-secretário de finanças Celso Pitta, que se tornara sucessor do ex-prefeito no governo da cidade de São Paulo (375). Naquela oportunidade Maluf, que estava pela Europa desde 5 de março, iniciou uma visita - que não estava programada - pelo Oriente Médio, voltando somente depois que o caso já não era mais tão impactante no conjunto das mídias em razão do fenômeno da saturação. Como Maluf não estava disponível para as imagens televisivas, Pitta acabou sendo muito mais alvejado: "a avaliação do círculo de políticos mais próximo de Maluf é que a ausência permitiu... que ele ficasse apenas como personagem coadjuvante do caso, o que poderia não ocorrer caso estivesse no país." (376) Contudo, desde Paris Maluf realizou várias articulações políticas para que a maioria governista, na Câmara Municipal de São Paulo, inviabilizasse a abertura de uma CPI que investigasse a emissão de títulos da prefeitura com a finalidade de pagar precatórios. Conforme o jornalista Carlos Eduardo Alves, "Maluf avaliou que a derrota da proposta de criação da CPI ajudaria a diminuir o impacto negativo causado pela revelação que o Banco Vetor pagara uma locação de carro para Nicéa Pitta, mulher do atual prefeito paulistano [Celso Pitta]." (377). Vê-se, portanto, que mesmo fisicamente longe do cenário político - inviabilizando que as mídias registrassem novas imagens suas, que seriam interpretadas a partir do escândalo - Maluf interferia diretamente nos acontecimentos políticos que estavam transcorrendo.

Por sua vez, quando estourou o escândalo dos bilhetes do ministro Stepanenko, confirmando que a máquina estatal estava a serviço da campanha pela eleição de Fernando Henrique, a mesma estratégia foi adotada. O ministro viajou para a China, onde chegou no dia 1o de Setembro, ficando por lá cerca de duas semanas. (378) No caso de Sérgio Motta, quando a mídia divulgou gravações sobre a compra de votos - para apoiar a emenda da reeleição - nas quais aparecia o nome do ministro como participante das transações, a estratégia também foi a mesma. Conforme a Revista IstoÉ, o ministro foi para a Europa no dia 22 de Maio, ficando até o dia 28 do mês em Portugal, onde cumpriria compromissos oficiais. Depois disso, seguiria em férias para a França, por onde ficaria até o caso esfriar (379).

d) Tornar-se Invisível no Cenário

A técnica de tornar-se invisível no cenário, de todas, é a mais interessante, tendo sido aprimorada por Clinton e sendo também usada por Fernando Henrique. O princípio básico é o de que existe uma forte saturação de informações e que a opinião não analisa detalhadamente os signos que a afetam não estabelecendo vinculações orgânicas entre os dados que recebe. Seus interpretantes, desse modo, podem variar conforme as circunstâncias, tendo os últimos signos mais capacidades de agenciar condutas quando ativam interpretantes energéticos mais intensos e menos saturados que os anteriores. Assim, quando o governo é profundamente criticado ele não deve aparecer em sua defesa o tempo todo, pois a saturação de seu apelo ou de sua defesa torna seu próprio apelo ou sua própria defesa cada vez mais frágil. Pelo contrário, deixa que outros, tomando sua defesa, apareçam no cenário e, pela mediação da própria defesa, vinculem-se ao prestígio do presidente; ao mesmo tempo, contudo, pelo rebatimento dos ataques ao presidente, os seus defensores acabam se vinculando à crítica que lhe era feita. Esse expediente faz com que o presidente se torne invisível no quadro das semioses e, quando a população estiver saturada tanto dos que o criticam quanto dos que o defendem - uma vez que a polêmica é equacionada pelo governo para não chegar em lugar algum -, o presidente então ressurge com belas propostas que indiretamente respondem às críticas que lhe eram feitas. Sua imagem, assim, fica preservada do desgaste do debate, seu apelo ainda mantém a capacidade de agenciar interpretantes energéticos fortes, e os signos da proposta que apresenta preservam ou recuperam sua popularidade. Como destaca José Luis Fiori, no Brasil "o governo é... cada vez mais impopular, mas o presidente não." (380) Trata-se de um governo que, "afora suas autoridades econômicas, passa despercebido da população, mesmo a mais esclarecida, que não é capaz de lembrar o nome dos seus ministros... Mas exatamente aí começa a nossa originalidade, pois o presidente não só não muda os ministros mais impopulares ou ineficientes, como tampouco toma qualquer outra decisão. Frente à impopularidade do seu governo, ele responde distanciando-se." (381) Frente alguns episódios que geravam interpretantes ruins para sua imagem nos casos do Banco Econômico, do Sivam e na Reforma da Previdência, Fernando Henrique adotou esta postura: "afastou-se cada vez mais do seu partido, da sua coalizão, do governo, do país... Como resultado, a sua popularidade sobe, enquanto a do seu governo desce. Como se explica o sucesso desta mágica? Não é fácil de responder, mas desde então seus adversários transformaram-se em abstrações: a burrice da esquerda, o corporativismo dos funcionários públicos, a caipirice dos brasileiros, o provincianismo das oligarquias, a falta de sinceridade dos políticos etc." (382)

Todavia, este comportamento do presidente brasileiro, como vimos, não é original no quadro político contemporâneo. Conforme Fiori, Fernando Henrique apenas segue uma "onda mais geral", que se inspira no sucesso da reeleição de Clinton, após um período longo de impopularidade. Clinton vencera a primeira eleição com um discurso voltado à proteção das minorias e à universalização do sistema de saúde pública nos Estados Unidos. Perdendo a maioria no congresso nas eleições de 1995, se ausentou durante grande parte daquele ano, apostando no desgaste político das críticas e dos adversários. Após algum tempo, então, retornou à cena defendendo teses muito semelhantes às dos republicanos que lhe faziam oposição. Como resultado, "o seu prestígio pessoal foi ficando cada vez maior do que o do seu partido." (383) Argumentando em seguida que o estado intervencionista havia se encerrado, acabou sendo ovacionado pelos republicanos e assinou vários decretos que sepultavam o ideário democrata, tornando-se porta-voz das teses de seus anteriores adversários, mantendo, contudo, uma imagem de maior equilíbrio e racionalidade que os republicanos. Em 1996, Clinton se reelegeu, forçando a ala esquerda do partido a apoiá-lo como forma de derrotar um candidato acentuadamente de direita lançado pelo Partido Republicano. Mais interessante, entretanto, é a interpretação de sua imagem pela população que o elegeu: "metade de seus eleitores pensam que ele fará o que a outra metade pensa que ele não fará. Isto é, Clinton conseguiu a proeza de ganhar uma eleição presidencial nos Estados Unidos sem que ninguém saiba ao certo qual seja a sua identidade política e mesmo pessoal." (384) A revista Newsweek, perplexa, destacava que 54% dos norte-americanos consideravam Bill Clinton desonesto mas, não obstante isso, ele foi eleito para o posto maior do país, em uma eleição que registrou a mais alta abstenção na história norte-americana. Na condição de presidente reeleito, Clinton escolheu, como seus auxiliares, pessoas ligadas às "altas finanças" de Nova York e ao próprio Partido Republicano, dispensando membros da velha equipe que eram mais situados à esquerda política nos Estados Unidos. William Kristol, um analista conservador norte-americano, afirmou que a estratégia de Clinton poderia ter desdobramentos preocupantes na política do país: "Se é verdade que o presidente acabou assumindo as teses republicanas..., na maioria das questões relevantes, o clintonismo, sua informalidade manipuladora, sua insinceridade sem escrúpulo, acabarão infectando (...), muito provavelmente, a totalidade do corpo político do país". (385)

e) Alterar o Foco da Semiose e Produzir uma Confusão de Interpretantes.

Outro expediente de mídia valioso ao governo, para enfrentar as críticas que sofre, é desqualificar os opositores, apresentar signos contraditórios e promover dissonâncias, ao ponto de saturar as críticas, pois quando a opinião, cansada de ouvir, considerar que o opositor - que apresentara as primeiras informações críticas - é desqualificado, não mais dará credito às suas informações. Em seguida centra-se a semiose em outros signos mais favoráveis ao governo gerando-se uma confusão de interpretantes dissonantes aos interpretantes da crítica. Essa técnica pode resultar em hegemonia passiva sobre o receptor: mesmo que não saia convencido pelo novo argumento, pelo menos não lhe fará oposição.

Quando o IBRADES, um órgão ligado à CNBB, publicou um documento com inúmeras críticas ao governo afirmando, inclusive, que havia um esquema de compra de votos para a reeleição, o Planalto publicou uma nota veemente desmentindo as acusações, ponto a ponto, afirmando: "o governo está convencido de que a má-fé ou a desinformação de seus autores não comoverá a opinião pública e muito menos os eminentes prelados que compõem a CNBB" (386). A tática adotada é interessante porque ao invés de colocar em xeque a credibilidade da CNBB, prefere imputar a má-fé ou desinformação ao autores de um documento que fazem parte de um órgão ligado à entidade. Melhor do que isto, ao afirmar que os "eminentes prelados" que compõem a CNBB não se comoverão pelo documento feito pelos desqualificados assessores que escrevem por "ma-fé ou desinformados" arma-se a situação de que se nem os bispos acreditariam em seus assessores, quanto menos deverá acreditar a opinião pública. O passo seguinte é divulgar informações conflitantes que gerem dissonâncias cognitivas, mas que mantenham uma coerência lógica em seu conjunto, em cuja defesa seja possível buscar alguns signos indiciais.

Assim, implementando a estratégia, o documento informa que: a mortalidade infantil havia caído mais de 28% desde julho de 1994, com implantação do Real; 12,9 milhões de pessoas teriam saído da linha de pobreza entre 1993 e 1995; o salário mínimo, que valia US$ 64 em 1994, já estava valendo US$ 112, aumentando portanto 90% após o Plano Real, contra apenas 37% de aumento da inflação; o desemprego, estaria se mantendo em torno de 5%, o que seria um patamar baixo, considerando-se os níveis internacionais, havendo problemas localizados que estariam sendo combatidos com programas oficiais; sobre a acusação de que os grandes ruralistas estariam sendo privilegiados em detrimento dos pequenos, afirmou-se que houvera renegociação das dívidas e que a safra de 1997 seria a segunda maior da história do país, havendo também um programa destinado à pequena produção familiar, tendo ainda o governo aprovado um novo imposto que onerava "pesadamente" os latifundiários; quanto aos riscos para a democracia perceptíveis em sua gestão, a nota do governo é enérgica, afirmando ser "inaceitável a forma pela qual o governo é tratado no documento", uma vez que teria editado somente 83 medidas provisórias, não a quantidade de 1.202 afirmada pelos assessores da CNBB; por fim, sobre a falta de ética no trato dos interesses públicos - particularmente no caso do Sivam, destaca que aquele projeto não apenas foi aprovado pelo Senado quanto pelo TCU e que o mesmo não havia sido proposto por seu governo; destacou ainda que o programa de socorro aos bancos era transparente e que, graças a ele, foram salvos os recursos dos depositantes e não os dos banqueiros (387). Consideremos, agora, a consistência indicial dessa semiose simbólica.

a) mortalidade infantil

Ora, se não havia sido feita uma pesquisa nacional em julho de 1994 e outra em Abril de 1997 sobre a mortalidade infantil em todo o país, como o governo poderia apresentar o número preciso de sua redução em 28% ? Mas supondo que - aceitando alguma projeção estatística - consideremos que a mortalidade infantil tenha-se reduzido nessa proporção, nesse mesmo período, isso provaria que o governo investiu mais ou melhor em saúde, saneamento e atendimento a populações carentes ou de risco ? Se assim for, o fato de a criminalidade ter aumentado no Brasil após o Real também deve ser assumido pelo presidente como conseqüência de seu plano de estabilização da moeda. De fato os gastos do governo em saúde foram reduzidos, como ficou provado pela assessoria da Comissão do Orçamento do Congresso.

b) redução da pobreza

Quanto aos 12,9 milhões de pessoas que teriam saído da linha de pobreza entre 1993 e 1995, há que se perguntar quem são e como ascenderam socialmente. Se alterarmos os critérios de levantamento entre uma pesquisa e outra, das 32 milhões de pessoas consideradas abaixo da linha de pobreza absoluta, 12,9 milhões poderão ser enquadradas em outra faixa embora permaneçam na mesma situação precária de vida. Se assim for, não foram elas que saíram da pobreza, mas o signo de pobreza é que foi alterado.

c) Os Ganhos do Salário Mínimo

O jogo de dados com o salário mínimo foi sutil, mas perverso. Neste caso é preciso distinguir a variação nominal da variação real, isto é, o aumento do número em si frente ao seu poder compra em face da inflação do período. Mais do que isso, será necessário considerar ambos os valores - nominal e real - também para o dólar, uma vez que, em seu discurso, o presidente quantifica o valor do salário mínimo em dólares. Ora, em 1o de março de 1994, o salário mínimo valia 64,79 URV ou CR$ 41.951,52, ao passo que em março de 1997 ele valia R$112,00. A diferença nominal em reais foi de 72%. Essa variação de 72% é apenas nominal, pois aqui não se descontou a inflação do período. Este dado sobre a variação nominal, portanto, não permite saber se esses R$ 112,00 valem em Abril de 1997 o mesmo, menos ou mais do que as 64,79 URVs de março de 1994, que em julho se converteram em R$ 64,79. Ora, para operarmos com os signos utilizados pelo presidente, é preciso ainda converter o salário mínimo em dólares. Para convertermos a moeda, consideremos que o trabalhador tendo recebido seu salário o troque em uma casa de câmbio pela cotação praticada no mercado naquele dia. Assim, o salário mínimo convertido em dólares valia US$ 65,80 em 1o de março de 1994, e U$ 102,28 em março de 1997. Neste caso o aumento já cairia para 55,44%. Trata-se, ainda, contudo, de um aumento nominal e não real; isto é, em razão do forte vínculo mantido entre o real e dólar pela política cambial do governo - que já se iniciou em um patamar sobrevalorizado da moeda brasileira frente a moeda norte-americana -, a inflação ocorrida em real puxa consigo também a valorização do dólar no país, uma vez que o governo não desvaloriza o real frente ao dólar na mesma proporção que a inflação tem desvalorizado o real. Este fenômeno, aliado a alguns outros fatores, acaba por engendrar a curiosa situação de que viajar ao exterior e comprar em Miami ou em vários outros países que desvalorizaram, periodicamente, suas moedas frente ao dólar, esteja proporcionalmente mais barato do que viajar pelo Brasil e comprar os mesmos produtos fabricados aqui pelas mesmas empresas que os fabricam lá fora. Para ter-se uma idéia do que essa sobrevalorização cambial significa, um estudo comparativo, considerando vários indexadores no país, destacou que embora o dólar comercial estivesse cotado - em 14 de novembro de 1997 - a R$ 1,1080 para a venda, ele deveria ser reajustado entre R$ 1,24 e R$ 1,66 (388).

Conforme dados da fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior - FUNCEX, considerando a taxa de câmbio do real frente ao dólar, iene, moedas européias e latino-americanas, em setembro de 1997 o real estaria defasado 17,1% em relação do dólar, considerando-se a defasagem ocorrida desde o início do Plano Real. Contudo, considerando-se os patamares prévios de 1991/92, a defasagem alcançava 22,7%, uma vez que na véspera do real já havia uma defasagem do câmbio (389) - o que possibilitou o jogo de marketing político eleitoral que já analisamos.

Assim, tomando por referência, entre os vários indicadores utilizados no estudo comparativo citado, o que é mais adequado para aferir a variação de preços ao consumidor, tomaremos aqui o IPC da Fipe, segundo o qual, o dólar comercial estaria valendo R$ 1,66 para a venda no dia 14 de novembro de 1997. Se corrigirmos os cálculos para chegarmos ao seu valor em março de 1997, teríamos que um dólar estaria cotado no câmbio comercial para a venda em, aproximadamente, R$ 1,64. Assim, o salário mínimo - descontando-se a inflação nominal em dólar no mercado brasileiro desde o início do Plano Real - estaria valendo U$ 68,29 (ver tabela 9). Comparando-se este valor com o salário em março de 1994, ele teve uma elevação de 5,36% e não de 90% como afirmou o presidente. Contudo, se o compararmos com o valor do salário mínimo em março de 1993, ele teve uma expressiva queda de 19,85%.

Tabela 9 - Valor nominal do salário mínimo em moeda corrente, variação do dólar e valores do salário mínimo convertidos em dólar para os anos de 93 a 97

Fonte: Elaboração própria sobre dados recolhidos do INSS e de O Estado de São Paulo

 

Restará ainda o argumento, em defesa do presidente, que as pessoas que recebiam salário mínimo foram beneficiadas com o fim do "imposto inflacionário" - isto é, com o fim da inflação - que teria corroído, também no mês de março de 1993, este aparente ganho superior, uma vez que a inflação fora de 27,58%. Desmontemos, então, este último argumento, sempre retomado, que se refere ao "imposto inflacionário".

De fato, em março de 1993 a inflação mensal atingiu 27,58% conforme o INPC. Arredondemos para 30% e o número de dias do mês para 30. Consideremos que no dia 1o daquele mês um trabalhador tenha recebido o seu salário mínimo, que valia Cr$ 1.709.400,00. Naquela noite, foi ao supermercado e fez a compra do mês, gastando Cr$ 770.000,00; no dia seguinte pagou Cr$ 240.000,00 referente ao aluguel da residência em que morava e comprou vales-transporte, pelos quais pagou Cr$ 110.000,00 (391) O restante do dinheiro (Cr$ 589.400,00) ele foi gastando com suas necessidades diárias e pagando outras contas no dia do vencimento, até encerrar o mês. Para fazermos um cálculo preciso sobre quanto o "imposto inflacionário" corroeu de seu salário, deveríamos considerar seus gastos dia-a-dia e - no caso de uma inflação de 30% ao mês para um mês de 30 dias - ir desvalorizando 1% ao dia os recursos que ainda não havia gasto, até encerrarmos o mês. Mas simplifiquemos as contas, para que o leitor não se canse, e dividamos os 28 dias que ainda restam pelas quatro semanas do mês, imaginado que este trabalhador gaste 25% do que lhe restou, isto é, Cr$ 147.350,00, por semana. Tomemos como base para cálculo o maior valor da semana, que resultará em um "imposto inflacionário" maior do que seria de fato - pois o correto seria calcular pela média. Mas facilitemos os cálculos. O 1% de inflação sobre o que restou após as compras (Cr$939.400,00) no 1o dia perfaz Cr$ 9.394,00. O 1% sobre o que restou após pagar o aluguel e comprar vale-transporte (Cr$ 589.400,00), referente à inflação do 2o dia perfaz Cr$ 5.929,91. Durante a primeira semana, o trabalhador teria Cr$ 589.400,00. Sobre este dinheiro perdera 7% durante a semana, em razão da inflação, o que perfaz Cr$ 41.258,00. Na segunda semana ele possuía Cr$ 442.050,00. Sobre esta valor, o "imposto inflacionário" de 7% resultaria em Cr$ 30.943,50. Na penúltima semana ele teria ainda consigo Cr$ 294.700,00, sobre os quais o "imposto inflacionário" consumiu Cr$ 20.629,00. Por fim, na última semana, o trabalhador gastou seus últimos Cr$ 147.350,00, tendo o "imposto inflacionário" significado Cr$ 10.314,50. Assim, o conjunto da desvalorização de seus recursos, em razão da inflação, foi Cr$ 118.468,91. Ora, considerando que o salário recebido foi de Cr$ 1.709.400,00, o "imposto inflacionário" total, neste cálculo didático, foi de 6,9%. Contudo se fizermos a desvalorização dia-a-dia, como seria o cálculo correto - como mostra a tabela 10 -, a desvalorização ficaria em CR$ 79.569,00 o que significa um imposto inflacionário de 5,55%.

Tabela 10 - Imposto Inflacionário sobre o Salário Mínimo

Considerando-se: * Rendimento Mensal: 1 salário mínimo (Cr$ 1.709.400,00) recebido no 1o dia do mês.

* Gastos Básicos, dias em que foram efetuados e valores: "compra do mês" (1o dia): Cr$ 770.000,00; "aluguel" (2o dia): Cr$ 240.000,00; "vale-transporte" (2o dia): Cr$ 110.000,00 - Dimensionados conforme POF/IBGE, 1987

* Outros gastos: efetuados proporcionalmente nos demais 28 dias do mês

* Inflação do mês: 30%

Resulta em:

* Desvalorização total dos recursos no mês: Cr$ 94.892,91

* Perda real sobre rendimento recebido: 5,55%

Fonte: Elaboração própria a partir de dados da POF/IBGE - 1987 e IPC-Fipe

Portanto, mesmo descontando-se o imposto inflacionário sobre o salário de março de 1993, arredondando a inflação para cima, ainda assim, o poder real de compra daquele salário - no caso deste trabalhador - era 14,3% superior aos R$ 112,00 de março de 1997. De fato, com uma inflação mensal de 30% ao mês, o trabalhador somente perderia 30% do poder de compra dos recursos que recebeu no dia 1o se não gastasse sequer um centavo até o último dia do mês. Por outro lado, hipoteticamente, se ele gastasse todo o seu dinheiro no mesmo dia em que o recebeu, seus recursos não sofreriam praticamente nenhuma desvalorização. Justamente por isso, a população desenvolveu o sábio hábito - quando se vive sob uma economia com preços sob inflação - de fazer suas compras e gastos maiores logo depois de receber o pagamento, independentemente de ser no dia 1o, dia 10, dia 25 ou qualquer dia. Não se pode, pois, avaliar o que significa o "imposto inflacionário" na desvalorização dos recursos das famílias que não dispunham de nenhuma caderneta de poupança para se proteger, sem avaliar o modo como elas gastavam os próprios recursos. Entretanto, quando as mídias falam em "imposto inflacionário", a maioria o interpreta imaginando que se a inflação mensal de preços foi 30%, todos os que não protegeram seus rendimentos em alguma aplicação financeira teriam perdido 30% do valor dos recursos recebidos naquele mês, o que não corresponde à realidade. Quanto às políticas de reajuste salarial para o mês seguinte, isso dependia das diversas legislações e acordos, uma vez que se fosse recebido o mesmo valor nominal ele teria perdido realmente o seu valor na exata medida da inflação verificada desde o último recebimento - no caso seria 30%.

Outro detalhe importante para considerar adequadamente o argumento de Fernando Henrique seria verificar o perfil e o volume da população que recebia salário mínimo em 1994 e 1997. Assim, haveria que se considerar o número de pessoas que eram remuneradas em 1994 por esse salário e que foram posteriormente demitidas, passando a viver na economia informal (392), bem como, quantas eram as pessoas que em 1994 recebiam um salário maior e aceitaram posteriormente reduzir os seus proventos, passando a receber apenas um salário mínimo após terem sido demitidas e readmitidas em alguma outra empresa. No caso dessa população desempregada ou readmitida nessas condições, embora tenha ocorrido esse pequeno aumento de 5,36% do salário mínimo no período em questão, o poder aquisitivo delas, como tal, teria caído considerando-se a situação de remuneração em 1994. Assim, afirmar que o salário mínimo aumentou entre os anos de 94 e 97 não significa dizer que a situação do conjunto da população que o recebe em 1997 tenha melhorado na mesma proporção frente aos proventos que recebia em 1994. Isso vale somente para o segmento que recebia um salário mínimo em 94 e que continuava recebendo um salário mínimo em 1997, uma vez que o aumento do salário mínimo não é vinculante do aumento dos demais salários.

Destaque-se ainda que em 1996 os salários de muitas categorias deixaram até mesmo de conseguir repor perdas inflacionárias. Como afirmou, na época, Antônio Prado, técnico do DIEESE: "A lei salarial permite reajustes bem abaixo da inflação e o desemprego crescente intimida os trabalhadores. Os empresários se aproveitam disso e endurecem nas negociações" (393). No ano de 1997 as empresas estavam inclusive negociando redução de salários com os trabalhadores, afirmando que se tal redução não ocorresse, haveria um número ainda maior de demissões.

 

d) Sobre as 83 medidas provisórias

Quanto ao governo ter editado apenas 83 medidas provisórias e não 1.202 - a questão não é meramente semântica. Conforme o artigo 84 da Constituição, o presidente pode "editar medidas provisórias com força de lei, nos termos do artigo 62", que reza o seguinte: "Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional, que, estando em recesso, será convocado extraordinariamente para se reunir no prazo de cinco dias. Parágrafo Único. As medidas provisórias perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes" (394). Assim, toda medida provisória perde eficácia após 30 dias não havendo possibilidade legal de fazer uma mesma medida provisória vigir por mais tempo que isso. Outro aspecto a destacar é que ela perde a eficácia "desde a edição", significando que todos os atos praticados, tomando-a como suporte legal no período, quedam também inválidos. Deste modo, uma medida provisória baixada no dia 1° de junho, por exemplo, expira às 24 horas do dia 30 do mesmo mês. O presidente, contudo, pretendendo manter vigente o mesmo dispositivo legal edita outra no dia 1° de julho com o mesmo teor. Acontece, entretanto, que a medida provisória do dia 1° de junho, perdeu a eficácia desde a sua edição. Isto significa que todos os contratos por ela regulados no período de junho perderam a sua validade. Os contratos celebrados a partir de 1° julho valerão enquanto perdurar esta nova medida provisória por trinta dias. Mas tudo se passa, como se a medida provisória de julho valesse também sobre os trinta dias anteriores, tendo portanto uma abrangência legal de 60 dias e não de trinta.

Conforme a Constituição, toda medida provisória perde eficácia após 30 dias, não havendo possibilidade legal de fazer uma mesma medida provisória vigir mais tempo do que isso. Todavia, contornando legalmente a própria constituição que é omissa sobre reedição de medidas provisórias - pois os parlamentares que a redigiram jamais imaginavam que ela fosse ser utilizada como o é atualmente - , Fernando Henrique Cardoso passo a editar novas medidas provisórias com o mesmo teor das antigas. Do ponto de vista semiótico, tratam-se de outras medidas, uma vez que possuem signos - um número indicador, por exemplo - distintos, embora tenham sido provocadas por um mesmo objeto dinâmico, ao qual deveria ser possível aplicar, conforme a constituição, os interpretantes "urgência" e "relevância".

Com a sua afirmação de que o governo editou 83 medidas provisórias e não 1.202, o presidente destaca que, formalmente, inúmeras medidas que editou não diferiam entre si, pois de fato operavam como as anteriores. Reconhece, portanto, que esse mecanismo é um modo de burlar a constituição, pois embora formalmente a respeite, de fato a nega, uma vez que o conteúdo legislativo de suas medidas provisórias vigem por mais que 30 dias. A responsabilidade disso, entretanto, conforme o presidente deveria ser atribuída ao Congresso Nacional, uma vez que ele é a instância constitucionalmente estabelecida para apreciar tais medidas. Novamente assim se estabelece o simulacro, uma vez que o governo chefiado por Fernando Henrique também possui maioria no Congresso, mas mesmo dispondo de maioria não providencia a apreciação rápida das medidas provisórias como reza a constituição. Ao não apreciá-las, evita que se gere um debate sobre o seu teor e que interpretantes desfavoráveis a elas ganhem espaço no debate legislativo, onde a oposição tentaria derrotá-las.

Nisto revela-se no Governo de Fernando Henrique Cardoso uma das principais características do regime globalitário: valer-se de mecanismos formais, legais ou quase legais, para impor uma nova ordem econômica, política e social que renega as garantias da liberdade pública da maioria dos cidadãos para promover a expansão da liberdade privada de uma minoria de agentes econômicos que ao final do processo torna-se proprietária do patrimônio que antes era do estado - tanto de tudo aquilo que vai a leilão nas privatizações quanto dos recursos que neles são adquiridos. Retornaremos a esse assunto em um item específico.

 

e) Sobre a Estratégia Semiótica de Defesa

A estratégia pretendida pelo Governo era desviar o debate da compra de votos para o debate sobre o que o governo fez ou deixou de fazer, se fez mais ou se não chegou a fazer tanto. Apresentando números superdimensionados esperava que as críticas se voltassem às realizações de seu governo. Contudo, como conversas gravadas, apresentando detalhes sobre o esquema da compra de votos, vieram a tona logo em seguida, essa nota não teve a repercussão esperada. Pelo contrário ao ter arranhada a sua credibilidade no ponto mais contundente da nota - a negação sobre as denúncias da compra de votos - o interpretante de falsidade contaminava, também, os outros elementos sígnicos, as outras informações a ela articuladas.

Seria preciso uma outra estratégia semiótica mais eficiente aproveitando-se de fatos políticos geradores de signos que reafirmassem o presidente em sua autoridade ou que pudessem desqualificar os que o criticavam. Neste sentido, dois eventos foram bem aproveitados naquele momento: um pronunciamento de João Pedro Stedile e um suposto flagrante envolvendo coquetéis molotov na operação de desocupação de um condomínio residencial em São Paulo. O discurso do presidente em 22 de maio de 1997, modelizará ambos os eventos - já devidamente editados pelas mídias - como um ataque à democracia. Por outra parte, a estabilidade democrática - conforme a semiose presidencial - dependia da estabilidade econômica e a continuidade desta, por sua vez, implicaria na continuidade do Plano Real. A aprovação da emenda da reeleição, assim, visaria garantir a estabilidade econômica e democrática do país. Analisemos com mais detalhes três momentos fortes dessa semiose.

 

15. A Modelização Semiótica sobre Coquetéis Molotov no Conjunto Habitacional Juta II

Este caso é exemplar para mostrar como a mídia vai tecendo semioses e os signos vão sendo recapturados de modo tal a criar a impressão de que existiu algo que não ocorreu.

Na manhã de 20 de maio de 1997, aconteceu um confronto entre famílias de sem-teto e um pelotão da polícia militar no Conjunto Habitacional Juta II, em São Mateus, na zona sudeste de São Paulo. Ali, 440 famílias sem-teto haviam ocupando, desde o dia 4 de maio, 498 apartamentos que estavam em fase final de construção. A obra era de responsabilidade do governo de São Paulo, e tinha por finalidade a habitação popular. O governo obteve um mandado, junto à justiça, e enviou 139 policiais militares armados com revólveres e cassetetes, para realizar a desocupação do imóvel. Uma parte do contingente era composto por cavalaria. A polícia militar, mal preparada e mal orientada para atuar naquela situação de conflito, não portava escudos de acrílico, capacetes e outros instrumentos adequados à situação; além do mais, a cavalaria tinha dificuldade em mover-se no local, em razão do terreno acidentado. Ao ser enfrentada pelos ocupantes com paus e pedras, passou a revidar com tiros, e acabou matando três pessoas - um pedreiro, um metalúrgico e um ajudante de obras. O episódio foi filmado por um vídeo-repórter da TV Cultura, Aldo Quiroga, mostrando - em algumas cenas - a total inabilidade dos policiais em enfrentar a situação.

No dia seguinte, contudo, a polícia voltou ao local e, justificando-se pela violência cometida na véspera, afirmou ter ali encontrado, na operação de varredura, um conjunto de coquetéis molotov. Nesta oportunidade, todos os canais de televisão puderam filmar os artefatos em uma cena muito parecida aos flagrantes produzidos durante a ditadura militar. Entretanto, até aquele momento, nenhum veículo havia noticiado algo a respeito da existência ou utilização de coquetéis molotov naquele episódio.

Em pronunciamento feito no dia seguinte ao da exibição daqueles artefatos pela polícia, Fernando Henrique fez um discurso contra o radicalismo afirmando que "paus, pedras e coquetéis molotov são argumentos tão pouco válidos como as baionetas, só que menos poderosos". Em seguida, o locutor do Telejornal Brasil, lendo o texto produzido pela redação, afirma: "Fernando Henrique ataca as vozes estridentes da oposição e adverte aos que jogam pedras, paus e molotovs". Entretanto, ninguém havia atirado nenhum coquetel molotov naquele confronto. Nenhuma declaração da polícia feita anteriormente à convocação da imprensa para filmar as garrafas, amarradas com trapos, fazia referência a algum artefato daquele tipo. Isto indica que nenhum objeto destes fora utilizado pelos manifestantes contra a polícia. Nas imagens feitas do conflito, pelo cinegrafista da TV Cultura, não havia sinal dessas bombas caseiras. De fato, os representantes da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, que se deslocaram para o local a fim investigar o episódio, encontraram testemunhas afirmando que os coquetéis molotov exibidos nas TVs e apreendidos após a desocupação do imóvel, haviam sido forjados pelos PMs que os "apreenderam". (395) Posteriormente, os promotores encarregados do caso, divulgaram as declarações das testemunhas. Conforme o promotor Francisco José Tadei Cembranelli, o casal Celso e Mislena da Silva, disseram, em seu depoimento, terem visto policiais militares montando coquetéis molotov, que posteriormente foram exibidos pela polícia à imprensa como pertencentes aos sem-teto. (396)

Contudo, o que o telejornal havia afirmado era que o presidente estava criticando as "vozes estridentes da oposição" e advertindo "aos que jogam pedras, paus e molotovs", como se grupos sociais estivessem protestando atirando coquetéis molotov nas ruas. Há uma passagem de recapturas sígnicas em que as imagens vão sendo modelizadas com outros conjuntos de interpretantes. Assim, de uma cena em que a polícia leva a imprensa a um local em que estão colocados alguns coquetéis molotov, produzidos - segundo as testemunhas - pela própria polícia, chegamos à semiose de que os opositores do governo estão, em ação de protesto, atirando coquetéis molotov. O mais impressionante é que a condução da opinião pública, desse modo, passa despercebida para a maioria, que não se dá conta dessas semioses, dessas modelizações sígnicas.

O signo "oposição" é também gerador de interpretantes valiosos neste contexto. As pessoas que ocuparam aquele conjunto habitacional não o fizeram para agirem como opositores ao governo, mas porque necessitavam de moradia e, sendo pobres, não tinham facilidades para arcar com aluguéis que subiram muito desde o início do Plano Real. Com o signo "oposição", responsabilizava-se os que se opunham politicamente ao governo pela ações que estavam sendo exibidas e condenadas. Curiosamente, entretanto, no ano de 1997 somente se tem notícia da utilização de coquetel molotov em conflito, envolvendo a questão da moradia no Brasil, três meses depois do pronunciamento do presidente, em uma ocupação realizada em Brasília. Neste caso, quem usou um coquetel molotov foram, de fato, grupos que reagiram a uma ordem de reintegração de posse impetrada por uma administração petista, não sendo portanto uma manifestação de oposição a Fernando Henrique nem a seu favor.

Outro aspecto curioso a ser destacado é que, depois da montagem semiótica modelizando imagens produzidas no Conjunto Habitacional Juta II e das declarações do presidente sobre o uso de coquetéis molotov, este artefato passou a ser, ao que parece, mais utilizado no país. Conforme pesquisa que realizamos nos arquivos de um dos principais jornais brasileiros (397), em 1997 - até o pronunciamento do presidente - somente haviam ocorrido dois casos de utilização de coquetéis molotov, ambos em Minas Gerais (398). No ano de 1996 foram quatro ocorrências noticiadas: em Alagoas, Pará, São Paulo e Bahia. (399) Em 1995, foram três: Minas Gerais, São Paulo e Paraná (400). Dessas nove ocorrências, no total, três foram em assaltos e, em uma quarta, um carro-cegonha foi incendiado. Outras três foram em conflitos que envolviam estudantes, sem tetos, sem-terras e policiais. Em outras duas, os responsáveis não foram identificados, levantando-se conjecturas sobre os possíveis responsáveis. Assim, dos nove casos noticiados sobre o uso deste artefato no Brasil, desde o início do governo Fernando Henrique até o seu pronunciamento em 21 de maio de 1997, quatro deles envolveram assaltos a carros forte e ataque a carro-cegonha - que nada tinham a ver com opositores ao governo; três casos foram imputados a militantes de movimentos sociais durante ações reivindicatórias específicas; e em outras duas ocorrências não haviam sido identificados os responsáveis - portanto não se poderia estabelecer o perfil político de tais pessoas. Convém citar que militantes da UDR, entidade ligada aos latifundiários, ao informarem a jornalistas o rol de suas armas, incluíam aí coquetéis molotov (401). Após o jogo de mídia e o pronunciamento do presidente, entretanto, o número de casos noticiados no mesmo veículo informativo naquele ano aumentou. Foram seis casos: Alagoas, Paraíba, Brasília, Rio de Janeiro e dois em São Paulo (402). Destas ocorrências uma se deu durante uma fuga de presidiários, outra foi em assalto a banco, duas ocorreram durante a greve policial em julho, outra envolveu ação de sem-tetos e uma outra ocorreu em manifestação de camelôs - havendo versões contraditórias sobre este último episódio.

A falta de responsabilidade no emprego das mídias pode gerar interpretantes adversos ao interesse da democracia. Vimos que a maioria expressiva dos casos, noticiados no jornal pesquisado, em que coquetéis molotov foram atirados desde o início do governo FHC até o seu pronunciamento de 21 de maio de 1997 não poderiam ser imputados a membros de movimentos sociais-populares ou entidades políticas. Somente 3 casos ocorreram em situações de conflito localizadas, em meio a processos reivindicatórios específicos na área de educação e posse da terra, não havendo provas sobre a origem desses 3 artefatos, quem os produziu e quem os arremessou.

Se as políticas de democratização de propriedade rural, de habitação e de educação fossem mais vigorosas, é possível considerar que esses conflitos talvez não tivessem existido nesse nível de acirramento. No caso da moradia, por exemplo, há dados gritantes. O número de despejos de famílias que não conseguem pagar aluguel aumentou significativamente depois do Plano Real. O aluguel, que pressionou os índices de inflação de preços nos primeiros meses após a implantação da nova moeda (403), registrou, posteriormente, uma tendência de queda, quando também, se verificou simultaneamente, tanto uma aumento de ofertas de casas e apartamentos vazios para locação, quanto o aumento de famílias morando em condições inadequadas e precárias por dificuldades em pagar o aluguel de moradia. Em São Paulo, por exemplo, a média mensal de despejos em 1996 por falta de pagamento foi 40% maior do que a média dos últimos dez anos. Somente no primeiro semestre de 96, as ações de despejo por falta de pagamento aumentaram 49% sobre o mesmo período de 95 (404). A própria Caixa Econômica Federal promoveu despejos para retomar imóveis de mutuários inadimplentes: "o total de imóveis em poder da Caixa Econômica Federal (CEF), retomados por falta de pagamento, cresceu 70,9% em 96." (405) É neste contexto que ocorrem episódios dramáticos como os do Conjunto Habitacional Juta II ou da ampliação do número de favelas e de subhabitações no país.

 

16. A modelização semiótica do pronunciamento de João Pedro Stedile

Um forte movimento de recapturas semióticas foi perceptível na modelização das declarações de um dos líderes nacionais do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terras, João Pedro Stedile, sobre a realização de manifestações defronte a supermercados: "Pobres da cidade, façam como nós. Não esperem o governo, enfrentem seus problemas. Se vocês não têm casas, se organizem para pressionar o governo para resolver o problema habitacional, para ocupar os terrenos baldios. Se vocês não têm empregos, ocupem as fábricas que estão fechando e forcem a mudança na política industrial. Se têm fome, façam manifestações em frente dos supermercados. Está na bíblia que todo ser humano tem direito de se alimentar. E vão em busca da comida." (406) Modelizando essa declaração e agenciando determinados interpretantes que levassem à sua rejeição, a semiose hegemônica, que perpassava várias mídias, afirmava que João Pedro Stedile estava conclamando a população a invadir e saquear supermercados.

No dia seguinte, após as semioses modelizadoras do pronunciamento deste líder do MST terem agenciado interpretantes de variados tipos, o ministro da justiça, Milton Seligman , pediu ao ministério público do Rio de Janeiro a abertura de um inquérito, com a finalidade - segundo o Telejornal Brasil, do SBT - "de processar Stedile criminalmente por suas declarações" (407). O MST convocou, então, uma entrevista coletiva. Nesta oportunidade, acompanhado de um advogado, Stedile esclareceu o significado de sua declaração no dia anterior, aplicando o interpretante "vigílias" ao signo "manifestações", afirmando não ter receio de processos, uma vez que na constituição brasileira estão assegurados os direitos de moradia, emprego e alimentação.

Se analisarmos com cuidado a semiose operada no Telejornal Brasil do SBT, veiculado na noite de 22 de maio de 1997, perceberemos uma curiosa edição relacionando vários signos indiciais, operando a transposição de interpretantes de um signo a outro culminando no discurso de Fernando Henrique Cardoso.

Logo na abertura, como segunda e terceira manchetes do jornal, elenca-se: "Fernando Henrique ataca as vozes estridentes da oposição e adverte aos que jogam pedras, paus e molotovs. MST de Santo André já usou a polícia para expulsar sem-teto de terreno invadido." Embora as manchetes sejam a segunda e terceira, somente no penúltimo e antepenúltimo blocos do noticiário elas são apresentadas. Ambas as frases serão repetidas, mais duas vezes, como chamadas, na finalização do bloco contiguamente anterior ao bloco no qual seriam apresentadas, e no final do noticiário em que são repetidas as suas manchetes. Assim, quem assistiu apenas a abertura do telejornal ou o assistiu até a chamada que indicava, para o bloco seguinte, a matéria sobre o MST, ou assistiu apenas os dois últimos blocos, recebeu a informação de que o MST de Santo André havia usado a polícia para expulsar sem-tetos de um terreno invadido. Como os interpretantes hegemônicos do signo MST o articulam ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, a semiose induzia a pensar que o movimento de camponeses sem-terras havia expulsado um grupo urbano de sem-tetos de um terreno invadido, valendo-se, para tanto, dos serviços da polícia - embora tantas vezes o próprio MST tenha entrado em conflito com esta mesma polícia resistindo a ordem de despejos em ocupações rurais. A manchete contrapõe assim o MST (movimento de sem terras) aos "sem teto", signo que, em geral, caracteriza movimentos urbanos que lutam por moradia.

O bloco em que se trata deste assunto possui três segmentos: inicia-se com a previsão do tempo, em seguida apresenta-se a matéria sobre o MST de Santo André, que dura 2minutos e 57 segundos, seguidos de mais 43 segundos de comentários de Boris Casoi. Imediatamente a seguir inicia-se a matéria que trata das declarações do líder do MST, João Pedro Stedile, que dura 2 minutos, seguida dos comentários de Casoi, que duram 35 segundos. Na seqüência encerra-se o bloco com a chamada sobre Fernando Henrique, o qual "ataca as vozes estridentes da oposição". O seqüenciamento das matérias, portanto, possibilita a transposição de interpretantes do MST de Santo André ao MST, do qual Stedile é uma das lideranças nacionais, e, em seguida, a transposição dos interpretantes das críticas de Stedile - sobre a inoperância social do governo - ao ataque do presidente em relação às "vozes estridentes da oposição." Analisemos pois, cuidadosamente, esta semiose e o processo de modelizações realizado.

Logo após a previsão do tempo, tendo como ícone ao fundo a imagem de uma casa, Boris Casoi lê o seguinte texto: "O chamado Movimento dos Sem Terra e Sem Moradia de Santo André, na grande São Paulo, já usou a polícia para expulsar invasores de terrenos. Este mesmo movimento organizou a invasão da Fazenda da Juta que terminou, essa semana, em tragédia." Do modo como o texto está redigido, o Movimento do Sem Terra e Sem Moradia de Santo André permanece semioticamente associado ao conhecido MST que luta pela reforma agrária, uma vez que o movimento de Santo André organizou a invasão de uma fazenda, no caso, a Fazenda da Juta. Tratava-se, entretanto, do Condomínio Residencial Juta II, também conhecido como Conjunto Residencial da Fazenda da Juta. Como o texto é apenas lido pelo jornalista, não podemos considerar se se tratava da "Fazenda da Juta" ou da "fazenda da Juta", se se tratava de um nome próprio composto ou de um substantivo seguido de um nome próprio. De fato, quem não tivesse informações sobre o incidente no despejo dos ocupantes daquele conjunto residencial, necessariamente interpretaria a informação como a invasão de uma fazenda - portanto, na área rural - denominada "Juta". Destaque-se que o texto ao invés de dizer "invasão do Conjunto Residencial Fazenda da Juta", omite a expressão Conjunto Residencial, simplesmente afirmando "invasão da Fazenda (ou fazenda) da Juta" permitindo a permanência de uma semiose ambígua que articula aquele movimento de Santo André com o "MST da Reforma Agrária". Casoi destaca, então, que os detalhes viriam em seguida na reportagem de Antonio Carlos Ferreira.

Ambientada com as imagens da ocupação que resistiu à ação de despejo solicitada pelo MST de Santo André, a locução inicia: "Ademar Luis Machado passou rapidamente de herói a vilão. Ele é líder do MST de Santo André, que nada tem a ver com o MST da reforma agrária. Foi articulador da invasão do Conjunto da Fazenda da Juta, onde morreram três sem-tetos. Mas o Ministério Público acusa o MST de Santo André de ser uma imobiliária clandestina". A frase chave para dissociar o "MST de Santo André" do "MST da reforma agrária" dura seis segundos, resumindo-se a um aposto: "que nada tem a ver com o MST da reforma agrária". Contudo o signo "MST de Santo André" será repetido sete vezes neste segmento e mais três vezes - uma na chamada do bloco anterior, outra na manchete inicial e outra no encerramento do noticiário -, embora apenas em uma única oportunidade seja feito este aposto adversativo, que o desvincula do conhecido movimento nacional pela reforma agrária. O aposto de seis segundos se insere em uma matéria de 3 minutos e quarenta segundos.

A matéria, entretanto, mostra que tanto o movimento quanto o signo MST de Santo André eram um disfarce que abrigaria uma imobiliária clandestina que, para forçar os "invasores" de um terreno a assinarem um contrato de pagamento, por uma parcela ideal do imóvel, ao "movimento", teria usado como instrumento de coerção a ameaça de despejo, em cuja execução a polícia fora acionada. Todavia, os sem-teto negociaram um acordo, passaram a pagar prestações ao movimento e permaneceram na área. Esse fato, portanto, por si próprio, desmentia a semiose agenciada pelas duas chamadas da matéria, uma vez que elas afirmavam que: "MST de Santo André já usou a polícia para expulsar sem-teto de terreno invadido". Ora, se os sem-teto permaneceram no terreno, não podem ter sido dele expulsos. Contudo, ao manter o verbo no infinitivo ( expulsar), a frase logicamente evoca uma ação, mas não o seu efeito. Assim, por exemplo, a frase: "um homem usa um revolver para matar seu vizinho" não significa necessariamente que o vizinho tenha sido morto a tiros por este homem, pois o verbo no infinitivo não implica realização acabada. A única ação acabada foi a utilização do revólver. Haverá a possibilidade de que o homem use a arma para matar, mas que o outro não seja morto pela ação implementada com a arma. Assim, o movimento, segundo a matéria, usou a polícia para expulsar os sem-tetos, o que não significaria necessariamente que os sem-tetos tenham sido expulsos pela polícia naquela ação. Essa sutileza semiótica, entretanto, não poderia ser percebida pelos que assistiram somente as duas chamadas da matéria e o encerramento do noticiário, pois lhes faltariam o signo de que os sem tetos que seriam expulsos pela polícia, de fato, não o foram. Faltando-lhes, também, o interpretante de que o MST de Santo André seria uma imobiliária clandestina, que nada tinha a ver com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, seguramente compreenderiam a frase como significando que o MST que luta nacionalmente pela reforma agrária teria sido responsável pela expulsão de sem-tetos de um terreno, valendo-se para tanto da ação da polícia.

Embora a reportagem tenha exibido um documento em que aparece o nome oficial daquela entidade, Movimento dos Sem Terra pela Moradia de Santo André, seguido pelo número de seu CGC, em nenhum momento a matéria se refere à entidade com o seu nome de registro. O texto que Casoi lê na introdução da matéria fala do "Movimento dos Sem Terra e Sem Moradia de Santo André". O mais grave, entretanto, é que quando o líder do movimento ou da imobiliária - segundo a reportagem - é entrevistado para explicar a tentativa de expulsão dos sem-teto daquela área, com o concurso da polícia, sob a sua imagem exibe-se o seu nome e abaixo a sua caracterização como "Coord. MST / Santo André". Não apenas não se coloca o nome da entidade do qual seria coordenador, como também, ao inserir-se a barra "/" no signo, induzia-se à possibilidade de se considerar que ele era coordenador de uma seção regional do MST em Santo André.

Ora se a reportagem já havia caracterizado o movimento como disfarce para uma "imobiliária clandestina" e o seu líder como, possivelmente, um "explorador de sem-tetos", se já havia exibido imagens da porta do escritório onde funcionaria a imobiliária (na qual havia uma placa com a sigla MST - que seria não apenas um simulacro para esconder a existência de uma imobiliária ilegal, mas também para ela fosse interpretada com os interpretantes que se aplicam em geral ao "MST da reforma agrária"), porque a edição das imagens, vinhetas e caracteres de toda a matéria, com exceção de um aposto de seis segundos, mantiveram este simulacro aplicado à entidade ?

No fechamento da reportagem, antes dos comentários de Casoi, tem-se a declaração do promotor de justiça, Roberto Elias Costa, que pediu a dissolução do MST de Santo André, por "atividade ilícita": "Que movimento comunitário é esse que ao invés de agir como defensor dos sem terra, age como se fosse um proprietário, até como um especulador imobiliário, e despeja o sem-terra sem dinheiro ?" Esta declaração, por sua vez, levanta um questionamento, não sobre uma imobiliária clandestina, mas sobre um "movimento comunitário" que não defende os "sem-terras", e que, pior ainda, atua como "especulador imobiliário". O signo sem-terras é ambíguo, se comparado ao signo sem-teto que já havia sido empregado nas chamadas da reportagem. O signo sem-teto caracterizaria aqueles que lutam não por terrenos, mas por moradia - como fora o caso da ocupação do Conjunto Residencial Juta II, que se tratava da ocupação de apartamentos inacabados e não de terrenos baldios. O signo sem-terras, entretanto, aplica-se hegemonicamente ao movimento que luta pela posse da terra em áreas rurais para valer-se dela como meio de produção, isto é, para plantar, e não apenas como suporte para edificação, isto é, para construir habitação, como ocorre no caso de uma parcela dos movimentos urbanos que lutam por moradia. A frase colocada após a partícula "e", que opera logicamente como conector conjuntivo, encerra a pergunta do seguinte modo "despeja o sem-terra sem dinheiro". Novamente aqui voltamos ao problema do tempo do verbo. Colocado no presente do indicativo, o verbo significa que o "movimento comunitário", sujeito do verbo, está executando a ação de despejar o "sem-terra sem dinheiro" - que é o objeto que sofre a ação. A frase assim, é coerente com as chamadas da matéria, as quais afirmavam que o movimento havia usado a polícia para "expulsar sem-teto de terreno invadido", e dá margem a compreender que pelo menos uma expulsão esteja ocorrendo, tendo como causa o fato de o sem-terra não tem dinheiro para pagar pelo terreno que ocupou.

Após toda essa semiose sobre o "MST / Santo André", chega o momento do comentário de Boris Casoi, universalizando os interpretantes do caso destas pessoas a milhares de outras pessoas; o final do comentário é destinado a recriminar ações incompetentes da polícia que acabam redundando em mortes - observação essa que poderia ser aplicada como interpretante do caso da desocupação da "Fazenda da Juta" que fora citado na introdução da reportagem. O comentário foi o seguinte: "Taí. Por essa reportagem, você pode julgar qual o caráter, em que mãos estão milhares de pessoas que você viu aí, ontem, em todas as nossas reportagens, que acreditaram nessas lideranças, que uniram-se, deram-se as mãos prá resistir à ordem de despejo. Geralmente são pessoas humildes, tangidas pela pobreza e seduzidas por esse tipo de liderança. Essas são as vítimas. Mas nada disso justifica ações policiais de competência duvidosa, que acabam redundando em catástrofes, inclusive em mortes de seres humanos."

Este comentário é curioso porque a matéria mostrava o MST de Santo André como autor de uma ação de despejo, que somente não se concretizou porque a população resistiu e, por fim, aceitou assinar um contrato de compra do imóvel. Era pagar ou sair. O comentário por sua vez se referia às pessoas que acreditaram no dirigente do MST de Santo André, unindo-se contra uma ação de despejo, provavelmente na "Fazenda da Juta", tornando-se vítimas em razão do posicionamento destas mesmas lideranças. Os interpretantes dos dois eventos são, assim, articulados em uma única semiose, que possibilita, indiretamente, associar os coquetéis molotov "encontrados" na "Fazenda da Juta" com as lideranças do "MST / Santo André", e depois, indiretamente relacionar os coquetéis molotov ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, como veremos ao analisar a edição feita, pelo mesmo Telejornal, do discurso de Fernando Henrique Cardoso, no bloco seguinte de notícias.

Ao terminar de fazer o seu comentário, Casoi se volta para a câmera principal. O ícone ao fundo é, agora, composto pela bandeira vermelha do MST e a imagem sombreada de um trabalhador rural com chapéu na cabeça e enxada apoiada no ombro. A locução do texto diz: "O líder do movimento dos sem-terra, João Pedro Stedile deu uma entrevista hoje, em São Paulo, para explicar suas declarações de ontem". Inicia-se, então, a reportagem de Celso Teixeira com a seguinte locução: "No encerramento de um seminário ontem no Rio, o líder dos sem-terra defendeu a ocupação de terrenos baldios e manifestações na sociedade". Tem-se, então, a inserção de uma passagem da fala de Stedile que fora cedida pela Rede Globo: "Se têm fome, façam manifestações em frente dos supermercados. Está na bíblia que todo ser humano tem direito de se alimentar. E vão em busca da comida." (408). Em seguida o repórter continua a locução, enquanto são exibidas imagens da entrevista: "Hoje, com uma entrevista em São Paulo, o MST tentou reduzir o impacto das declarações de Stedile. Para João Pedro Stedile a reação do governo foi uma forma de retaliar o MST que decidiu esta semana não participar de uma comissão federal que vai discutir a reforma agrária. E, além disso, seria uma estratégia para desviar a opinião pública de acontecimentos que estariam abalando a popularidade do presidente." Mais à frente, continua o repórter: "Alertando que a miséria no país criou um ‘barril de pólvora’, hoje o líder dos sem-terra tentou ser mais cauteloso, falando em desapropriações de terrenos com pagamentos do governo e, ainda, citando ocupações de fábricas e vigílias em supermercados". Na seqüência aparece Stedile afirmando: "Há, ainda, no Brasil 32 milhões de pessoas que passam fome todos os dias e essas pessoas deviam se organizar. E façam vigílias em frente aos supermercados. Isso foi o que eu disse e essa é a linha política do movimento sem-terra."

Logo em seguida inicia-se o comentário de Casoi: "Vigília é diferente de invasão. Parece que houve uma explicação melhor ou um recuo do senhor Stedile. Propor invasão de terrenos baldios e propor a invasão de supermercados, realmente, é jogar água fora da bacia. Se ele propôs isso, realmente o governo tem razão em processá-lo. Agora, o que move o governo, realmente, fica por conta da imaginação e da opinião de cada um. O fato é que ele não pode propor invasão de supermercados. Agora ele disse, explicou melhor."

Ora, na introdução da matéria, Stedile é caracterizado como "líder do movimento sem-terras" e no início da reportagem como "líder dos sem-terra". Ocorre, pois uma vinculação semiótica de interpretantes destes signos com os interpretantes dos signos "essas lideranças" ou "esse tipo de lideranças" de sem-terras, criticados há poucos segundos quando da reportagem sobre o "coordenador do MST / Santo André". Afinal, Stedile é liderança do MST, como a ele se refere a matéria, não podendo ser de outro modo, pois ele o é. Em seguida tem-se a afirmação de Stedile propondo que se façam "manifestações em frente de supermercados" e esclarece que essas manifestações deveriam ser compreendidas como vigílias. O jornalista, contudo, modelizando os esclarecimentos, afirma que o "líder dos sem-terra tentou ser mais cauteloso, falando em desapropriações de terrenos... e, ainda, citando ocupações de fábricas e vigílias em supermercados". Ora, em português claro, o que significa a expressão "vigílias em supermercados" ? A preposição em entra aqui, na composição de adjunto adverbial, que exprime a idéia de lugar dentro do qual ocorre alguma coisa, no caso a vigília. A frase, talvez "infeliz" do repórter, afirma que o líder dos sem-terras propôs, portanto, vigílias dentro de supermercados, ao passo que, de fato, ele propusera manifestações em frente aos supermercados, o que significa do lado de fora e ante os mesmos.

Por sua vez o comentário de Casoi pode ser dividido em duas etapas a partir da conjunção condicional se que se localiza no centro do argumento. Ao dizer que "vigília é diferente de invasão", Casoi destaca que Stedile havia se explicado ou recuado de sua posição anterior. Assim, o jornalista opera com uma suposição de base - que Stedile tenha proposto a invasão de supermercados -, podendo, em razão disso, usar o verbo "recuar" como ação que lhe atribui. Em razão disso, a frase seguinte que possui o verbo "propor" no infinitivo, tem por sujeito o próprio Stedile: "Propor invasão de terrenos baldios e propor a invasão de supermercados, realmente, é jogar água fora da bacia." A partir daí, entretanto, valendo-se da conjunção condicional "se", Casoi enfatiza que se trata somente de uma hipótese: "Se ele propôs isso, realmente o governo tem razão em processá-lo. (...) O fato é que ele não pode propor invasão de supermercados. Agora ele disse, explicou melhor."

Assim, o comentário de Casoi não se refere ao que Stedile disse, mas ao que ele poderia ter dito em uma entrevista concedida à TV Globo. Contudo, a passagem polêmica da entrevista já havia sido exibida pelo próprio Telejornal Brasil do SBT alguns segundo antes, com as imagens cedidas pela própria Rede Globo e a declaração não suportava aquela modelização simbólica. Desse modo, o comentário se referia ao que Stedile não dissera na entrevista. Assim, Casoi, ao utilizar a conjunção condicional "se", que transformava a oração em uma hipótese, insinuava que talvez Stedile pudesse ter dito que as pessoas invadissem supermercados. Ora, se isso não foi feito na polêmica entrevista concedida no Rio de Janeiro, cujo trecho mais controverso a emissora já havia exibido, qual seria a base indicial para, jornalisticamente, elaborar o comentário inteiro a partir desta hipótese ?

Terminando o comentário, Casoi se volta para a câmera principal e anuncia as manchetes do próximo bloco: "Assinado o acordo sobre as dívidas do Estado de São Paulo e Fernando Henrique ataca as vozes estridentes da oposição". A semiose já esta articulada: uma das vozes estridentes da oposição, que está sendo processada pelo governo, é a do líder do MST.

Quando se inicia o bloco seguinte, Casoi introduz a reportagem: "O presidente Fernando Henrique Cardoso manda um duro recado aos sem-terra, durante a posse dos novos ministros da justiça e dos transportes." Começa então a matéria de Heraldo Pereira: "O esforço por retirar o governo da defensiva política, tendo como etapas principais, o discurso do presidente da república e a troca de ministros, foi cuidadosamente articulado." Destaca Pereira que na solenidade de troca dos ministros, "o presidente viu a esplanada dos ministérios cercada por manifestantes aliados" - um grande número de correlegionários vindos de Goiás, que se valeram de um carro de som em sua manifestação de apoio ao governo, realizaram uma queima de fogos de artifício e um grande almoço festivo. No lado de dentro, os salões eram disputados pelos políticos. "Parlamentares, governadores envolvidos nos escândalos dos títulos públicos, como os de Santa Catarina e o de Alagoas, e também pela figura central da crise provocada pela denúncia de compra de votos para aprovar a reeleição: o ministro das comunicações Sérgio Mota, presença marcante nas cerimônias de posse. O novo ministro da justiça, nem bem recebeu o cargo, já falou da perspectiva de um segundo mandato para o presidente Fernando Henrique Cardoso, agora que a emenda da reeleição foi aprovada pelos senadores em primeiro turno. A resposta veio em seguida: ‘o PMDB, disse o presidente, ocupa um pedaço de meu coração’." Na seqüência da matéria vão sendo apresentadas algumas passagens do discurso do presidente antecedidas por um comentário do jornalista. A passagem que nos interessa, entretanto, é a que encerra a reportagem. Conforme já havia sido antecipado por Casoi, destaca o jornalista que "o recado mais duro foi dirigido ao movimento dos sem-terras que defendeu a invasão de terrenos baldios e manifestações contra a fome em frente aos supermercados". Na seqüência, então, são editadas duas passagens do discurso presidencial dizendo o seguinte: "A onda premeditada de violência e anarquia não é apenas um atentado contra a democracia. É um atentado contra a esperança do povo brasileiro, que está fundada na estabilidade econômica, mas também na estabilidade política. (...) A sociedade não quer a desordem. Pedras, paus e coquetéis molotov são argumentos tão poucos válidos quanto as baionetas. Só que menos poderosos".

Essas passagens, conforme o Telejornal Brasil do SBT, estavam dirigidas ao movimento dos sem-terras. Mas por quê ? O que tem a ver o movimento dos sem-terras com os coquetéis molotov exibidos pela polícia no conjunto habitacional Juta II ? O que teria a ver as declarações de Stedile com uma "onda premeditada de violência e anarquia" ? De fato ambos os cenários haviam sido transfigurados, possibilitando a modelização do discurso presidencial - que trataremos em detalhes, na próxima seção - a fim de mudar o foco das atenções do escândalo da compra de votos.

O mais interessante, entretanto, é o comentário feito por Boris Casoi assim que termina a frase proferida por Fernando Henrique sobre os coquetéis molotov e as baionetas: "Esta aí, o presidente reagindo aos radicais que atacam paus, pedras e bombas molotov, porque não tem outros argumentos. São radicais autoritários." Ora, se o "recado do presidente" estava endereçado ao movimento sem-terras, então, o comentário de Casoi apenas qualificava os membros deste movimento ao qual o presidente se dirigia, taxando-os de "radicais autoritários" que "atacam paus, pedras e bombas molotov". A semiose está completa. Diferentemente do caso anterior, em que o comentário se construía sob um argumento condicional, aqui trata-se de um comentário feito a partir de um silogismo categórico, de figura clássica, composto por duas premissas e uma conclusão: Os que atiram paus pedras e coquetéis molotov foram criticados pelo presidente em seu discurso. Ora, esta crítica do presidente foi endereçada ao movimento sem-terras. Logo, o movimento sem terras está atirando paus, pedras e coquetéis molotov. O comentário de Casoi somente agrega ao objeto direto da crítica, os adjetivos de radicais autoritários, despossuídos de argumentos (409).

Vê-se, portanto, que a conclusão deste raciocínio nada mais é do que a tese defendida pelos policiais que exibiram os coquetéis molotov para a imprensa no Conjunto Habitacional Juta II. A operação somente terminou em 3 mortes porque os policiais teriam sido agredidos por sem-terras que estariam atirando paus, pedras e coquetéis molotov. E como explicitou o comentário sobre a matéria, no bloco de notícias anterior do mesmo Telejornal Brasil, foram lideranças irresponsáveis do "MST / Santo André" que promoveram a resistência gerando a tragédia. Este é um clássico exemplo de transfiguração de cenários e de con-fusão de interpretantes que vem sendo utilizado recorrentemente na produção de subjetividades através das mídias de massa no Brasil. Um signo vai sendo modelizado por outra semiose e assim sucessivamente, agenciando-se interpretantes satisfatórios aos grupos politicamente hegemônicos.

Destaque-se ainda que, no caso do pronunciamento de Stedile, o judiciário foi acionado imediatamente, passando a atuar a partir de uma versão distorcida dos fatos, diferentemente dos casos anteriores de denúncias de crimes com provas materiais em que ele se omitiu. Menos de 24 horas depois, do ocorrido, o procurador Geraldo Brindeiro sugeriu a Hamilton Carvalhido, que é chefe do Ministério Público do Rio de Janeiro, que abrisse um inquérito sobre o caso.. Conforme a Revista Veja, a diligência do procurador aqui manifestada foi surpreendente, uma vez que "quando tomou conhecimento de que os ex-deputados federais Ronivon Santiago e João Maia, do PFL do Acre, haviam confessado em fita gravada a prática do crime de corrupção, Brindeiro cruzou os braços. Ele dispunha da confissão dos acusados e tem poderes para mandar a Polícia Federal investigar os parlamentares, mas preferiu esperar. Também chegou às suas mãos o relatório da comissão de sindicância da Câmara, que recomenda inquérito. Mesmo assim, Brindeiro diz que é preciso ter ‘cautela’ para investigar os réus confessos." (410)

Todo este jogo de mídia desviou a atenção das manobras que o governo realizou para evitar a implantação de uma CPI que apurasse a compra dos votos para a aprovação da emenda que tornou possível a reeleição do presidente. Ainda conforme a Revista Veja - que, neste caso, associou Stedile a um bode expiatório - era o " primeiro pronunciamento público [de Fernando Henrique] desde que apareceram as fitas em que dois deputados do PFL, Ronivon Santiago e João Maia, confessavam candidamente ter embolsado 200.000 reais cada um para votar a favor da emenda da reeleição, dizendo que a fonte monetária da corrupção era o ministro Sergio Motta, tucano da gema. Mas, no seu discurso, o presidente falou apenas de passagem, e mesmo assim em tom de caso encerrado, da compra de votos, das fitas, da corrupção, da emenda constitucional feita sob medida para contemplar seu plano continuísta." (411)

Sobre a tentativa, realizada pelos deputados de oposição, de abrir-se uma CPI para apurar as denúncias sobre a compra de votos para que o congresso aprovasse a emenda da reeleição, este foi o comentário de Boris Casoi, naquele mesmo Telejornal Brasil: "Olha, tudo indica que uma CPI de verdade não seja viável. Não haveria dúvidas do processo se a CPI fosse realizada. De qualquer maneira, é preciso levar a apuração e a conseqüente ação penal às suas ultimas conseqüências. Doa a quem doer, custe o que custar."

Por fim, em 5 de maio de 1998, Stedile foi absolvido pela justiça. Conforme a jornalista Fernanda da Escóssia, "o juíz Mauro Pereira Martins absolveu Stedile e disse que, ao incentivar manifestações, ele pregava o exercício de um direito democrático." (412) Sobre os saques que passaram a ocorrer um ano depois do pronunciamento de Stedile - em razão da forte seca provocada pelo El Niño no nordeste brasileiro - havia uma divisão de posições entre os advogados. Conforme o Código Penal Brasileiro, artigo 19, "Não há crime quando o agente pratica o fato: I - em estado de necessidade." Esclarece o artigo 20 que "considera-se em estado de necessidade quem pratica fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se." (413)

 

17. O Discurso de Fernando Henrique Cardoso em 22 de maio de 1997 - democracia, paus, pedras, coquetéis molotov, estabilidade e reeleição.

O discurso enérgico nas mídias, entretanto, afirmando que as baionetas eram mais fortes do que paus, pedras e coquetéis molotov, insinuava que o estado - em razão do acirramento dos conflitos motivados pela exclusão social - poderia neles interferir usando uma repressão mais forte. Mais do que isso, insinuava que aquelas ações colocavam em risco a democracia no país. Analisemos um pouco melhor o discurso ali proferido (414) com essa tecitura semiótica.

Ao contrário do procedimento que vinha adotando anteriormente, no pronunciamento de 22 de maio o presidente optou por ler a maior parte do texto que havia preparado, ao invés de discursar livremente como de costume; fez apenas algumas considerações de improviso. Afinal, os signos ali tinham que fluir de modo certo, no momento oportuno (415).

Inicialmente o presidente acolhe os dois novos ministros, Iris Rezende, na pasta da Justiça e Eliseu Padilha, na pasta transportes, destacando que "suas excelências pertencem a um partido que faz parte da luta da história da democratização do país." Mais a frente destaca que o ministro da justiça deverá executar medidas que, "nos limites da lei e sempre respeitando os direitos humanos, coibam abusos e mantenham a ordem democrática, essencial ao bem estar do nosso povo." Uma vez que tal ministério "cuida para que a sociedade possa ter a tranquilidade necessária. E cuida não apenas na repressão, que quando necessária é feita..."

Nesta etapa do discurso são introduzidos signos que operarão como interpretantes das frases enérgicas sobre a manutenção da "ordem" e sobre o combate da "baderna", que serão feitas posteriomente.

a) Estabilidade Econômica

Na seqüência o argumento avança destacando o compromisso do presidente com a estabilidade econômica e política. "Srs. ministros, nossos compromissos com a democracia e o bem-estar do povo brasileiro não são de ontem... Desde que o presidente Itamar Franco me nomeou ministro da Fazenda venho empenhando todas as minhas forças para recuperar a estabilidade no país. Estabilidade econômica e estabilidade política.". O presidente começa, então, a destacar seus feitos no plano econômico. Entre outros elenca: "Nível de emprego estável. Setor agrícola saneado e em franca recuperação. E, sobretudo, aumento dos salários reais, com significativa expansão do consumo popular e uma sensível distribuição de renda. Desde o início do Plano Real, 13 milhões de brasileiros, 13 milhões de brasileiros ultrapassaram os níveis de pobreza. Isso é sensibilidade social de um governo que olha para o conjunto do país e toma as medidas necessárias com coragem, com persistência, para que os efeitos se façam sentir sobre aquelas vozes que em algum momento chamei de ‘roucas’, mas que sabem que hoje têm um destino melhor, que hoje têm condição de vida melhor para si e para seus filhos e, por isso, confiam crescentemente no nosso país." (416)

Contra-argumentando o discurso do presidente, podemos destacar que várias pesquisas, entretanto, apontavam que o desemprego - depois de uma ligeira redução em 1995 - estava aumentando no Brasil (417), como também o trabalho informal de pessoas que já estavam empregadas; a agricultura, por sua vez, continuava e continua em dificuldades e o Pronaf não atendia e nem atende as necessidades do conjunto das famílias agricultoras no país; a significativa expansão do consumo popular referida pelo presidente, faz eco à peça publicitária enganosa já analisada e não considera a também significativa expansão dos cheques pré-datados sem fundos, isto é, da inadimplência, e o aumento da população que se tornou refém dos agiotas tentando pagar dívidas à prazo sob uma taxa de juros insuportável. A sensível distribuição de renda que teria ocorrido após o Plano Real, quando 13 milhões de brasileiros teriam ultrapassado o nível de pobreza, é outro número fabuloso. Isso significa que o expressivo número de quase 10% da população brasileira teria saído da linha de pobreza e ingressado na faixa da classe média. Entretanto, é sintomático o aumento da população favelada do país, da população vivendo pelas ruas, das crianças vendendo coisas pelas esquinas. Estes signos indiciais contradizem o discurso do presidente. A sensibilidade do governo - referida no pronunciamento - promoveu cortes em áreas sociais por três anos seguidos, como atestam os pareceres da Assessoria da Comissão do Orçamento na Câmara Federal que analisou o parecer anteriormente elaborado pelo Tribunal de Contas da União sobre as contas do governo.

Um documento produzido pelo IBGE e pelo UNICEF em 1997 mostrou que 40,4% das crianças de 0 a 14 anos viviam, por volta de 1995, com uma renda per capita inferior a meio salário mínimo. Este conjunto perfazia 19,8 milhões de crianças. Por sua vez, na faixa de 10 a 17 anos, 4,6 milhões estudavam e trabalhavam, 2,7 milhões trabalhavam e não estudavam, 3,5 milhões trabalhavam mais de 40 horas por semana, 1 milhão estava procurando trabalho, ao passo que, 658 mil não trabalhavam, não estudavam e não realizavam afazeres domésticos. Outro número preocupante era que, entre as crianças de 5 a 9 anos, 522 mil estavam trabalhando, 80% delas em atividades agrícolas. (418) Assim, quem fará parte dos 13 milhões que saíram da linha de pobreza a que se refere o presidente ? Muitas dessas crianças, colaborando para que a família enfrentasse a situação de pobreza, tiveram que abandonar a escola para complementar a renda familiar. (419) Teria sido desse modo que 13 milhões de brasileiros saíram da pobreza ?

No caso da agricultura familiar, em particular, 85% do crédito do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar ficou - até o ano de 1997 - com as regiões sul e sudeste, restando aos agricultores do nordeste 8% do crédito, aos do centro-oeste 6% e aos norte 1%. (420) Os recursos emprestados aos agricultores vem do FAT - Fundo de Amparo ao Trabalhador, ao passo que os destinados ao desenvolvimento infra-estrutural rural vêm do orçamento. Muitos lavradores, entretanto, desistem do crédito temendo perder suas terras se não conseguirem pagar as dívidas contraídas. Por outro lado, uma pesquisa realizada pelo Lumen (Instituto de Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais) mostrou distorções na utilização dos recursos. Conforme Rudá Ricci, coordenador da pesquisa, no caso de Minas o financiamento de custeio concentrou-se no sul do estado e na zona da mata: "isso impediu que regiões mais carentes de Minas, como o Vale do Jequitinhonha, fossem atendidas." Conforme Ricci, "o Pronaf representou um avanço no atendimento à agricultura familiar, mas reproduz erros antigos na ação estatal, como o de favorecer os produtores mais abastados e organizados, em detrimento dos marginalizados." (421).

b) Estabilidade Política

Avança o presidente, então, para a consideração da estabilidade política, mudando o tom do discurso para o agenciamento de interpretantes de indignação.

"De uns tempos para cá, no entanto, tenho visto com indignação - e eu repito, com indignação - o comportamento cada vez mais ofensivo de setores inconformados, no fundo, com a sua própria falta de alternativas às nossas políticas. Parece que o meu apego ao diálogo e meu amor à liberdade têm sido confundidos por esses setores com sinais para que as virtudes republicanas sejam atacadas. Tenho sido tolerante e paciente porque é do meu feitio e porque é dever de quem tem mandato do povo para governar o país. Mas o limite da paciência e da tolerância é a democracia. A democracia exige respeito e ordem. Sem ordem legítima não há democracia. As invasões repetidas de prédios públicos e de propriedades particulares são ações coordenadas com objetivos políticos que constituem abusos antidemocráticos. Vem-se amiudando incitamentos à desordem, inclusive por parte de lideranças nacionais de alguns movimentos que suscitariam simpatia da sociedade não fosse sua agora óbvia vinculação político-sectária. Isso é grave. E tanto mais grave quanto o governo tem estendido as mãos e proposto negociações democráticas. A onda premeditada de violência e anarquia não é apenas um atentado contra a democracia. É um atentado contra a esperança do povo brasileiro, que está fundada na estabilidade econômica, mas também na estabilidade política. A sociedade brasileira exige um basta a esse clima de baderna. A sociedade não quer a desordem. Pedras, paus e coquetéis molotov são argumentos tão poucos válidos quanto as baionetas. Só que menos poderosos. O país cansou desses abusos. Os responsáveis pela ordem pública devem ser sensíveis a esse cansaço. De minha parte, como democrata, tenho o dever de impedir que a desordem corrompa a liberdade. Não faltarei ao meu dever..."

Assim, o objeto contra o qual se volta a indignação do presidente são os setores que não se conformam, não com as políticas do governo, mas, com a própria falta de propostas deles mesmos. Assim, as propostas que a oposição apresenta no Congresso são desconsideradas pelo presidente em seu discurso, como se elas não existissem. De fato, durante a campanha eleitoral, Fernando Henrique foi um dos últimos candidatos a apresentar um programa de governo ao país, embora posasse para a TV com um simulacro que fazia passar por plano (422). As oposições divulgaram, antes de FHC, as propostas que apresentavam para o país. Como ministro da Fazenda, entretanto, ele implementara somente um plano de estabilização da moeda, que foi o carro chefe de sua campanha. De fato, alguns programas de políticas sociais, iniciados no governo Itamar e que sofreram cortes na gestação de Fernando Henrique, resultaram de propostas da oposição que o presidente dizia não existir.

De outra parte, com os jogos semióticos daquele discurso, os movimentos sociais modelizados pelas mídias como "opositores" se convertiam semioticamente em setores que não possuem propostas alternativas às políticas governamentais e que passam ter um comportamento cada vez mais ofensivo - o que significa que antes eles já teriam um comportamento ofensivo -, atacando as virtudes republicanas, entre as quais o presidente destaca a manutenção da democracia pela manutenção da ordem. Afirma o presidente que esses setores desenvolvem "ações coordenadas com objetivos políticos que constituem abusos antidemocráticos." Aproveitando-se, então, da semiose produzida pelas mídias sobre a afirmação de João Pedro Stedile, destaca o presidente que lideranças nacionais desses setores vem incitando a desordem que extrapolaria os limites da democracia e da paciência do presidente. Mais do que isso a ação dessas lideranças deixariam evidente sua vinculação político-sectária. Desse modo, tratam-se de setores inconformados que desenvolvem ações políticas que extrapolam os limites da democracia, cujas lideranças político-sectárias promovem abusos anti-democráticos. Tais setores premeditaram uma onda de violência e anarquia - perceptível em manifestações de sem-tetos, de camelôs, de desempregados, de sem-terras, de sindicatos e de outros movimentos sociais - que seria um atentado à democracia e à esperança do povo brasileiro, assentada na estabilidade econômica e política. Então o presidente afirma que a sociedade brasileira não quer a desordem exigindo um basta a esse clima de baderna. Ora, mas quem é a sociedade brasileira ? Com sua afirmação Fernando Henrique exclui da condição de membros da sociedade brasileira aqueles que buscam satisfazer suas necessidades imediatas do modo que ainda lhes seja possível - como os ocupantes do Conjunto habitacional Juta II, os camelôs do Rio de Janeiro, a população sem-terra organizada em todo o país, etc - como também exclui todos os que fazem manifestações contra as políticas de seu governo, inclusive uma pequena parcela de sociais-democratas de seu próprio partido e que a ele se opõem em manifestações públicas, dizendo que a população deve pressionar o governo para que seus direitos não seja apagados da constituição. Os diversos empregos da noção "sociedade" nos pronunciamentos de Fernando Henrique - que recebeu inúmeros títulos de doutor honoris causa durante seu mandato, em razão de suas contribuições à sociologia - trataremos à parte, em uma seção própria.

Destaque-se também que, além da desocupação do conjunto habitacional que já analisamos, um outro fato recente daquela circunstância, ainda fresco na memória dos telespectadores e que dava suporte ao pronunciamento de Fernando Henrique, foi a "invasão" do gabinete do ministro do Planejamento, Antonio Kandir. Naquela oportunidade as mídias televisivas mostraram que os lavradores haviam levado animais para o gabinete como forma de protesto, entre eles um peru que ganhou notoriedade. Com efeito, o jornalista Elio Gaspari, em um artigo intitulado "FFHH não viu a baderna tucana", esclareceu quem era a liderança, neste caso, dos "opositores ao governo". Tratava-se de Francisco Urbano, presidente da CONTAG. Além de ser tucano, o líder da "invasão" já havia sido convidado pelo presidente a assumir o ministério da Reforma Agrária. Nas palavras do presidente, quando da oportunidade do convite, Urbano foi definido como um "líder" preocupado com o "aperfeiçoamento das estruturas capazes de lidar com a questão agrária" (423). Conforme o jornalista, depois de passada uma semana do episódio, não havia notícia que de que o tucano tivesse sido repreendido ou que algum processo pelo que fez ou disse naquela oportunidade tivesse sido aberto. Ao sair do gabinete de Kandir , Urbano afirmou com todas as letras: "Desocupamos o ministério, mas vamos voltar a ocupar agências bancárias, propriedades e prédios públicos se não houver uma resposta concreta do governo" (424).

Mas quais eram os interpretantes aplicáveis pelos que assistiam os telejornais ao signo de "opositores" usados nesses mesmos noticiários ou aos "setores inconformados que atacam as virtudes republicanas" referidos no discurso indignado de Fernando Henrique ? A análise que fizemos do Telejornal Brasil, não deixa dúvidas afirmando a quem se dirige o "recado do presidente". A maior parte da população desinformada cai nesses truques semiológicos por três motivos. O primeiro é a falta de uma formação educativa que lhe permita compreender como são operadas as semioses, isto é, a diferença entre signos indiciais ou simbólicos, como os últimos podem modelizar os primeiros, como os ícones podem se prestar às edições mais disparatadas, etc. O segundo é o bombardeamento de informações consonantes. Quando em vários órgãos a população encontra uma avalanche de informações diferenciadas mas complementares e não contraditórias a uma mesma teia sígnica e também encontra, por outro lado, algumas informações contraditórias, tende a aceitar a semiose hegemônica, uma vez que a dissonância gerada pela informação minoritária e contraditória é superada pela reafirmação da semiose hegemônica a partir de várias outras fontes. O terceiro é porque a maior parte da população somente tem acesso à informação disponibilizada gratuitamente através de rádio e TV, não tendo recursos ou interesse para investigar as informações em órgãos da imprensa escrita, jornais e revistas. Por não lê-los e não confrontá-los, não sabe também distinguir suas linhas editoriais, o que significa que não têm consciência do perfil da empresa capitalista que processa e comercializa as informações publicadas naqueles veículos impressos - cada qual buscando atingir um certo segmento de mercado. Em uma pesquisa do Ibope, em 1994, conforme a revista Veja, "25% dos entrevistados disseram que dão mais atenção ao noticiário da televisão do que a qualquer outra fonte de informação." (425) Há vários outros aspectos, contudo, que não temos como retomar aqui, pois não é este, especificamente, o tema de nossa investigação.

c) A Reeleição como Garantia da Estabilidade Política

Fernando Henrique também se voltou, em seu pronunciamento, aos escândalos da compra de votos para aprovar a emenda que permite a sua reeleição, sem citá-los claramente: "as vozes mais estridentes das oposições se aproveitam da falta de decoro de uns poucos parlamentares para tentar paralisar o Congresso e o governo com suspeitas e insinuações. Qualquer suspeita de corrupção deve ser investigada a fundo... Se comprovada, tanto os corruptos como os corruptores devem ser exemplarmente punidos. (...) Se houver algum membro do governo envolvido nesse episódio, será demitido. Não creio nisso. Não creio nisso. Para mim seria uma grande decepção, mas ela não inibiria a minha decisão, assim como seria covardia imperdoável em minha consciência punir inocentes apenas porque a sanha dos adversários insinua ou supõe, sem nem ao menos ter tido a coragem de dizer: eu acuso!" Ora, uma CPI com a finalidade de apurar a compra de votos para aprovação da emenda da reeleição somente não saiu porque o governo atuou fortemente para evitá-la, não apenas porque estando em curso uma CPI não se poderia promover reformas na constituição, mas porque o escândalo com fitas gravadas das possíveis transações traria muitos prejuízos ao governo e seus aliados se fosse investigado a fundo. Isso também analisaremos à parte.

Comentando então a aprovação de sua possível reeleição, FHC avança: "Para segurar a estabilidade, o crescimento e a melhora das condições de vida dos brasileiros, precisamos manter a confiança em nós mesmos e no país. É preciso, mais do que nunca, que a maioria que nos apoia, no Congresso e na sociedade, reaja com convicções e com argumentos. Convicções e argumentos não têm faltado ao governo. Apoio do Congresso tem havido. Ainda ontem o Senado aprovou em primeiro turno a emenda da reeleição. Agradeço e agradeço ao presidente Antonio Carlos Magalhães e, em nome dele, a todos os senadores esse gesto de tranqüila decisão, pensando só numa coisa: na importância da continuidade da estabilidade política e econômica do Brasil. Conto com o mesmo apoio para levar adiante as reformas necessárias para a continuidade do Plano Real." Assim, após excluir da sociedade brasileira um segmento que protesta contra seu governo e agradecer a "todos os senadores" pela aprovação da emenda - como se uma parcela destes não tivesse votado contra a emenda -, Fernando Henrique diz que a aprovação em primeiro turno da medida que permite a sua reeleição se fez pensando-se somente na continuidade da estabilidade econômica e política do Brasil e que a manutenção dessa estabilidade implica em que a sociedade mantenha a confiança nele e no Congresso. Assim, se para garantir a estabilidade era preciso aprovar a emenda da reeleição e continuar mantendo a confiança no presidente, daí implica que a garantia da continuidade exige a reeleição, pois, o presidente somente não seria reeleito se a sociedade não confiasse nele, tendo-se, por conseqüência, que a estabilidade econômica estaria ameaçada. Fernando Henrique, portanto, seria a única entidade capaz de manter a estabilidade econômica e política do país no próximo período. Esta semiose, de todas, foi a mais valiosa ao presidente. Conseguiu que fosse atribuído a si, como interpretantes de sua conduta, a estabilidade econômica e política brasileira. Por sua vez o interpretante geral de estabilidade econômica continua sendo a ausência de inflação e os outros signos já apresentados no discurso: manutenção de empregos, 13 milhões de pessoas que deixaram a linha da pobreza, etc. Fernando Henrique zela por este seu capital semiótico, mítico e binário: quem protesta contra suas políticas, deseja o retorno da inflação, a desestabilização econômica, a anarquia e a desordem, que teriam sido, agora, afastados graças à possibilidade de sua reeleição, embora as "vozes estridentes" preferiam o caos e a desordem.

d) O Sectarismo das Oposições frente à Aliança pelo Real - a Âncora do Bem-Estar do Povo

Por sua vez, para a oposição que se mantém contra as reformas neoliberais e para o membros de sustentação do governo que, pouco convictos no caso de algumas reformas, votam com a oposição afirma o presidente: "A história cobrará daqueles que, por sectarismo político ou por açodamento em desistir da luta, vierem a impedir que as reformas prossigam. O futuro do país, nesse aspecto, está nas mãos do Congresso e dos partidos que compõem a maioria no Congresso. Cabe aos partidos a responsabilidade... de votar as emendas constitucionais propostas e as leis necessárias para que o Real continue como âncora do bem-estar do povo." Afirma o presidente que, em sua atualidade, o país "Tem um governo que diz o que pensa, que nasceu das urnas, com programa aprovado pelo eleitorado." Destacando que os ministros empossados naquela oportunidade eram do PMDB e que agora participavam de uma aliança com o PFL, o PSDB, o PTB, o PPB na manutenção do governo, o presidente relativiza o papel dos partidos em seu governo, destacando a intenção de quem o compõe: "É a intenção de dar ao Brasil condições de prosseguir na rota das transformações. É a intenção de dar ao Brasil a continuidade num processo de mudanças com estabilidade. É a intenção de fazer com que esse povo brasileiro, que mal sabe, muitas vezes, o que está sendo decidido - mas decisões que acabam pesando sobre o cotidiano da população - , possa ter mais certeza, mais tranquilidade de que nós, juntos, independentemente dos partidos..., formamos uma aliança. E aliança se faz entre desiguais com vistas a um propósito comum. E nós temos o mesmo propósito, que é o propósito de fazer com que esse Brasil realmente assuma aquilo que está ao nosso alcance: a sua posição na esfera internacional, a sua posição como um país que foi capaz de se industrializar e que mantém uma agricultura próspera." Por outro lado não se tratariam de interesses pessoais a serem satisfeitos: "neste momento não serão questões menores de interesse pessoal, grupal e nem mesmo regional que irão paralisar a consciência cívica dos parlamentares que apóiam o governo para dar um voto consciente, um voto convicto, um voto argumentado, um voto que faça com que a sociedade veja que ao, ao invés de nós estarmos perseguindo quem quer que seja, cortando direitos, estamos, sim, cortando abusos e privilégios que minaram o bem-estar desse país e que, de agora por diante, está nas mãos do Congresso Nacional tomar as decisões pertinentes para que isso sofra modificação profunda." (426)

No discurso do presidente os que se opõem, no congresso, ao seu modelo neoliberal o fazem por "sectarismo político", sendo qualificados pois como sectários; por outro lado, cabe ao Congresso promover as reformas que mantenham o Real, ao qual aplica o interpretante "âncora do bem estar do povo". O signo Real, confunde aqui, tanto uma moeda, quanto um plano de estabilização desta moeda, quanto o conjunto de medidas neoliberais de privatização e desmonte do estado, quanto a continuidade de seu governo. Assim, todos os cortes na saúde e educação, redução de verbas para campanha de vacinação e combate preventivo à dengue, o endividamento do Estado no sistema financeiro, etc, que resultam dessas políticas praticadas em nome da manutenção da moeda, são dissimulados como a âncora do bem estar do povo. O cenário utópico desenhado pelo presidente visa agenciar esperanças e mover adesões. Trata-se de crer que quase chegamos ao novo Brasil e que para atingi-lo faltam apenas dois passos: finalizar as reformas e reeleger o presidente, mantendo-se portanto a estabilidade econômica e política. Um estudo mais detalhado do modo como essa peça sígnica do presidente, emitida em 22 de maio, foi modelizada pelos vários órgãos de imprensa, mostraria a sua habilidade em agenciar um conjunto de interpretantes que ganhariam mais espaços de comunicação do que a proposta da instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar a compra de votos para a aprovação da emenda da reeleição no mesmo período.

 

18. A Maravilhosa Dança dos Números

O significado semiótico da palavra índice não deve ser confundido pelo leitor, que está se iniciando na reflexão semiológica, com percentagens ou cifras que costumeriamente são denominados como índices quando aplicados estatísticamente sobre universos de objetos ou conjuntos de indivíduos.

Sob a classificação semiológica, todas os números são símbolos, sendo as matemáticas as linguagens em que esses signos cobram seus significados. As linguagens matemáticas, além destes, compõem outros signos que possibilitam relacioná-los, sem os quais ela não poderia existir como linguagem e não poderia expressar relações.

A formalidade da linguagem matemática opera a partir de lógicas que podem ser divergentes entre si. Os princípios válidos para o conjunto dos números irracionais, por exemplo, não valem para o conjunto dos números naturais. Todas as ciências da natureza formalizam, em geral, seus enunciados sob linguagens matemáticas e na base de cada ciência há um paradigma constituído sob uma determinada lógica. Essas formalizações expressam regularidades empiricamente observáveis, conferindo às ciência uma capacidade pragmática de prever resultados com uma certa margem de probalidade. A isto se denominam leis.

No caso das ciência humanas, os paradigmas compreensivos atuam com a hermenêutica, investigando os significados e as relações entre símbolos, ícones e índices ao âmbito das linguagens naturais - da linguagem cotidiana - podendo formalizar categorias analíticas investigando as diversas regiões da cultura, ao passo que os paradigmas explicativos operam com descrições vetoriais concebendo a existência de relações "necessárias" entre elementos empiricamente observados e formalmente quantificados, que permitem o estabelecimento de leis similares às das ciências da natureza, com diferenciados graus de probabilidade.

Tanto a economia quanto a sociologia podem operar sobre seus objetos últimos - entre os quais a produção, distribuição, acumulação e consumo de bens materiais, bem como, as relações sociais em geral - a partir de diversas lógicas, estruturando paradigmas distintos que compreenderão os fenômenos econômicos e sociais de maneira divergente, apontando modos distintos de neles interferir a fim de atingir os mesmos resultados. No caso de todas as ciências que, de algum modo, necessitam considerar os comportamentos humanos, as previsibilidades enfrentam a questão filosófica do exercício da liberdade, isto é, a tese de que nem todos os sujeitos se comportam do mesmo modo sob as mesmas condições, embora seja possível descrever certas regularidades universalizáveis com determinado grau de probabilidade sobre aspectos dos comportamentos humanos, considerando-se conjuntos particulares e gerais de indivíduos.

Sendo assim, por exemplo, o fato de que uma corrente econômica, partindo de uma lógica e de um paradigma, estabeleça certas condições para conduzir um determinado vetor da economia a se comportar de determinado modo e que, ao ser implementada essa teoria, atinja-se o comportamento econômico esperado para aquele vetor, não significa que ela seja a única cientificamente válida. Uma outra corrente econômica, partindo de outra lógica e de outro paradigma, poderá estabelecer, por sua vez, outras condições para forçar aquele mesmo vetor a se comportar também do mesmo modo e pode ocorrer que, ao ser implementada esta outra teoria, também se alcance satisfatoriamente o mesmo objetivo, tanto quanto a teoria anterior. A questão, pois, não é saber qual das duas é a mais verdadeira ou científica, mas qual das duas, neste caso, é a melhor para a sociedade como um todo, considerando-se a alteração que promoveram em outros vetores econômico-sociais para chegar àquele resultado e as conseqüências desses outros vetores para os diversos indivíduos e segmentos da sociedade.

Assim, por exemplo, há muitos modos de se financiar o déficit público ou de se alavancar o desenvolvimento nacional. Tudo depende da lógica e do paradigma econômico que estejam assumidos como referência para o estabelecimento das ações. De outra parte, as teorias econômicas podem também ser invocadas para justificar decisões que a rigor não são científicas.

Deste modo, frente ao debate sobre distribuição de renda, por exemplo, se deveriam ser taxadas ou não as grandes fortunas para garantir-se um programa de renda mínima aos mais pobres, alguém poderá invocar teorias sobre o capital humano dizendo que a distribuição de renda, sem efeitos perversos de caráter, será conseqüência da elevação dos níveis de educação por toda a sociedade. Em seguida poderá selecionar índices de realidade - fazendo um levantamento estatístico do nível de escolaridade nas famílias que têm rendimento mensal acima de 30 salários mínimos - e concluirá que todos têm níveis elevados de educação e que gastam mais recursos com este item que todas as demais camadas sociais. Poderá por fim, até mesmo, formalizar esses dados em uma complexa função matemática, relacionando o grau de instrução com o poder aquisitivo. Contudo, isto não passará de pura ideologia, pois o recebimento de recursos implica em inserção inserção laboral, ou participação de resultados de atividades produtivas ou especulativas, isto é, em trabalho remunerado ou em participação nos lucros, heranças, etc. Assim, mesmo que todos tivessem alto nível de instrução, não haveria vagas para todos, pois não é o nível de instrução o que gera postos de trabalho, do mesmo modo que não é o nível de instrução o que determina a participação em lucros ou recebimento de heranças.

O que analisaremos neste item são algumas pequenas falácias deste tipo, em que certos índices de realidade são recolhidos e modelizados sob semioses simbólicas, às vezes sofisticadas, servindo de argumento para justificar posições políticas, mas sendo inconsistentes do ponto de vista científico. Contudo, como já esclarecemos, mesmo as posições consideradas científicas sob algum paradigma, não são, também, necessariamente, as únicas válidas, como pretenderam alguns déspotas esclarecidos oitocentistas, bem como, os positivistas que atuaram pela proclamação da República no Brasil, responsáveis pela inscrição, na bandeira nacional, do lema "ordem e progresso", que seriam alcançados graças à condução do país pelos sábios que deveriam governá-lo com ciência e punho forte.

Analisaremos, pois, nos breves itens a seguir, como é possível simbolicamente modelizar signos indiciais a fim de agenciar interpretantes favoráveis a algum objeto ou como é possível gerar semioses simbólicas que nada tem a ver diretamente com signos indiciais relacionados com a realidade objetiva à qual a semiose simbólica pretende representar (427).

a) O Aumento do Salário médio

Segundo o governo Fernando Henrique, o aumento do desemprego em 14% na indústria, em apenas um ano até abril de 1996, estaria sendo compensado com o aumento do salário médio dos trabalhadores que permaneciam empregados. Aumento que foi de 9% até aquela data. Esses 9%, entretanto, eram apenas ilusão estatística. De fato, a maior parte das demissões atingiu os trabalhadores menos qualificados que recebiam menor salário. Assim, permaneceram empregados os que tinham maior salário. Com isso aumentou-se o salário médio dos trabalhadores empregados sem que tenha havido melhora real nos seus ganhos. Como escreveu o jornalista Aloysio Biondi: "suponha-se uma empresa que tivesse três trabalhadores, ganhando respectivamente R$ 200, R$ 180 e R$ 100, com uma ‘folha’ totalizando R$ 480 reais, portanto. No caso, o salário médio seria de R$ 160. Se o trabalhador de R$ 100 for demitido, a folha cai para R$ 380, soma dos salários de R$ 200 e R$ 180 dos sobreviventes. E o salário médio? ‘Sobe’ de R$ 160 para R$ 190. Pura ilusão." (428)


b) Inadimplência e Quitação de Dívidas

Depois que a inadimplência passou a chamar a atenção de uma parcela da opinião pública, os técnicos do governo e as mídias deram muito alarde ao fato de que aproximadamente 90 mil consumidores da Grande São Paulo, em maio de 1996, "acertaram" suas dívidas atrasadas, "limpando o seu nome" no Serviço de Proteção ao Crédito. Alguns veículos noticiaram, enganosamente, então, que os consumidores "quitaram" suas dívidas. De fato, isso não havia ocorrido, mas sim uma renegociação das dívidas. Isto é, os consumidores que não tinham como pagar o saldo das prestações restantes em poucas parcelas - em três prestações por exemplo - dividiram-no por um número maior de parcelas - 12, por exemplo - , reduzindo assim o valor mensal das prestações para retomar os pagamentos. Com a negociação, deixavam de ser inadimplentes. Mas continuavam na situação de devedores, até saldarem a dívida total com o pagamento da última prestação. Ao dizer que os consumidores "quitaram" as dívidas, a mídia induzia a crer que o poder de compra dessa parcela da população havia melhorado, quando de fato isto não havia acontecido.

c) A Classe Média e seus Recursos

A mesma ilusão produzida quanto à quitação das dívidas, se verificou também com a inadimplência de cartões de crédito, créditos bancários, mensalidades escolares, entre outras. Renegociações foram divulgadas como "quitações", implicando nas mesmas conseqüências semiológicas apontadas anteriormente, possibilitando a transfiguração de cenários.

d) Aquecimento da Economia

Alguns analistas econômicos e vários jornalistas, que neles acreditaram, argumentavam que a economia do país estava se reaquecendo, tomando como indicadores o aumento do salário médio bem como a redução na inadimplência, que como vimos reduziam-se a ilusões estatísticas. Este é um dos exemplos de como certos signos indiciais, mal compreendidos, possibilitam modelizações discursivas que agenciam expectativas socialmente favoráveis a certos interesses e a difusão de compreensões equivocadas sobre a realidade efetiva.

e) O otimismo das Previsões dos Técnicos

A inflação apurada em São Paulo pela Fipe para o mês de Abril de 96, atingiu 1,62%. Contudo, os técnicos da entidade, ao anunciar tal elevação, buscaram tranqüilizar a sociedade, afirmando que em maio a inflação ficaria em 1%. Contudo, uma semana depois, disseram que atingira 1,2%. Já na semana seguinte afirmaram chegaria a 1,3%. De fato, a inflação atingiu 1,34%, isto é, 34% a mais que a primeira previsão (429)

Naquele mesmo ano, um pouco antes do Dia das Mães, a mídia proclamava em suas manchetes: "Vendas a prazo crescem 55%". Contudo, quando se fez o balanço das vendas no mês de maio, concluiu-se que "as lojas de roupas, calçados e presentes venderam menos 15%. Só eletroeletrônicos venderam mais 20% sobre 95." (430) Quem leu a manchete otimista, mas depois não soube do resultado das vendas, ficou com a falsa impressão de que as vendas, no comércio em geral, cresceram significativamente.

f) O "El Niño" e o Aumento das Safras Brasileiras

Em agosto de 1997, os técnicos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais elaboraram um relatório prevendo as dramáticas conseqüências que a variação do El Niño traria ao clima das Américas e do Brasil, em particular (431). O Ministro da Agricultura, entretanto, segundo Biondi, afirmou que o El Niño até seria benéfico ao país. Conforme a argumentação do ministro, em outubro de 1997, prevendo os efeitos da alteração climática, o El Niño contribuiria para aumentar as colheitas, "porque vai provocar chuvas intensas e a água favorece as culturas." As chuvas, conforme a argumentação "só provocam estragos na época da colheita, lá para março, e os efeitos do El Niño devem terminar em fevereiro [de 1998]." (432) O governo desprezou o alerta dos metereologistas e as conseqüências deste desprezo foram muitas. Os preços dos alimentos passaram a subir desde dezembro de 97, com a cesta básica batendo recordes sucessivos (433). Por outra parte, o gigantesco incêndio em Roraima que mobilizou o ONU e a colaboração de vários países em seu combate se propagou daquele modo em razão do clima seco e sem chuva, decorrente do El Niño, ao passo que no sul do país as enchentes destruíram muitas plantações. O drama maior, entretanto, foi a falta de alimentos e de água no nordeste do país, levando a população faminta a saquear depósitos do governo, supermercados e caminhões que transportavam alimentos. Embora o governo tivesse a previsão elaborada pelos técnicos do INPE, nada fez com antecedência.

g) O Consumo Popular e a Crise das Indústrias

A desinformação provoca conseqüências graves. No início do plano Real muito se falou que havia ocorrido uma elevação no poder aquisitivo da população e que este seria o fator da elevação do consumo verificado nos primeiros meses após a implantação do Plano. Aquele "boom" de consumo, argumentado daquele modo, levou muitas indústrias a se endividar com a finalidade de aumentar a produção, tendo em vista atender a expectativa plausível de uma demanda estabilizada em patamares maiores, uma vez que o Plano teria trazido ganhos reais especialmente aos segmentos populares, que são a maioria da sociedade. Contudo, aquele nível de consumo não se sustentou e uma parcela dos empresários ficou endividada. Quando as taxas de juros subiram ainda mais, esta parcela de empresários viu-se cada vez mais em apuros com os negócios em retração ou estagnados em um certo patamar. Um levantamento feito pela Austin Asis - uma empresa de consultoria especializada em risco bancário - revelou que a dívida das empresas do setor eletroeletrônico veio crescendo em razão de um erro de avaliação inicial que superdimensionou a demanda por seu produtos. Em junho de 1995 essa dívida com os bancos representava em média 14,7% do patrimônio das empresas; em junho de 1996, a dívida havia se elevado para 28,3%, e em junho de 97 o percentual alcançou 29% do patrimônio (434). Conforme Mário Alberto Lopes Coelho, diretor da Austin Asis, "O que atrapalhou e ainda atrapalha essas indústrias é o grande volume de estoque, bancado com altas taxas de juros", que são cobradas pelos bancos para capital de giro, que variam de 4% a 7% ao mês. (435)

h) As Surpreendentes Vendas no Natal de Dezembro de 1997.

Uma semiose hegemônica perpassou a mídia no final dezembro e início de janeiro, informando que "as vendas de Natal superaram as expectativas", que "os catastrofistas estavam errados", uma vez que as previsões apontavam queda de 20% no faturamento, mas que ele caíra apenas 6%; que "o comércio até enfrentou falta de mercadorias" e que a indústria estava "suspendendo férias coletivas". Por sua vez, Fernando Henrique e sua equipe, disparando contra os "catastrofistas", disseram que os tais acabaram sendo "derrotados pela realidade". Foi somente depois de todo este jogo de mídia que a Federação do Comércio de São Paulo concluiu, de fato, o levantamento sobre as vendas do mês de dezembro. Como destacou Biondi, "a queda não foi de ‘apenas’ 6%. A queda do faturamento do comércio na Grande São Paulo, na comparação com dezembro de 1996, chegou a nada menos de 11,59% - e, não custa lembrar, o Natal do ano anterior já havia acusado queda de 5% em relação a 1995... Tudo somado, o Natal de 1997 foi uns 20% inferior ao de 1995." (436)

O mais grave, entretanto - como em diversos outros episódios citados anteriormente -, é que a imprensa não divulgou os dados corretos do mesmo modo que havia divulgado os incorretos. Conforme o jornalista, "o levantamento definitivo sobre as vendas de Natal foi divulgado pela federação no começo da tarde de anteontem..[13-01-98]. De cinco grandes jornais do Rio e de São Paulo, nenhum publicou a informação na primeira página ou, nem mesmo com destaque, em seus cadernos de economia... Resultado: a sociedade continua a acreditar - pois é essa a informação que foi alardeada - que as vendas do Natal ‘surpreenderam’. E as ‘análises’ dos de-formadores de opinião vão continuar com a mesma ladainha. Perde a sociedade, perdem empresários e trabalhadores. ...A equipe FHC mantém a falsa sensação de que, apesar dos pesares, a política econômica está no rumo certo." (437)

De fato, naquele mês a maioria dos setores do comércio acusou queda superior a 10%. O setor de alimentos, recuou 3,5%. O comércio de automóveis, foi o que registrou o pior desempenho, com 40% de recuo nas vendas; por sua vez, no caso dos produtos semiduráveis, sito é, roupas, calçados, tecidos e outros, a retração foi de 16%. Por outra parte, o comércio de bens duráveis - eletroeletrônicos, móveis e outros - a queda nas vendas foi de 14%. Quanto à reposição de estoques citada nas mídias, o que ocorreu foi o seguinte. Em novembro, os comerciantes anunciaram que, por cautela, reduziriam suas compras juntos à indústria, comprando apenas 60% do que haviam encomendado em 1996. (438)

Ora, mas como foram os brinquedos nas vendas de Natal ? Não seriam eles o carro-chefe ? A mídia chegou mesmo a afirmar que, em algumas lojas, ocorrera um "esgotamento" dos estoques de brinquedos. Contudo, conforme o levantamento final da Associação dos Revendedores de Brinquedos, o aumento previsto de 7% não ocorreu, mas sim uma queda de 6% no valor total das vendas.

i) O Poder de Compra da População

Após o Dia dos Pais em agosto de 1997, um jornal publicava a seguinte manchete: "Comércio tem o melhor Dia dos Pais em três anos". Abaixo da frase, destacava-se: "Consultas ao Telecheque crescem 27,3%, e ao SPC, 12,2% em relação a 1996". Contudo, de fato, contrariamente à manchete, as vendas do comércio haviam caído 20%. Uma análise mais detalhada desse exemplo, torna possível compreender algumas técnicas semióticas de manipulação da opinião pública que são utilizadas no Brasil.

A primeira técnica consiste em "escolher uma informação otimista", mesmo que, de fato, ela não torne possível esclarecer o objeto em questão. Neste último caso, "escolheu-se o número de consultas ao Telecheque e ao SPC para fingir que eles retratam aumento nas vendas" (439). A imprensa tem feito isso nos três últimos anos. Esses indicadores, entretanto, não podem ser comparados com indicadores de anos anteriores, por duas razões básicas. Em primeiro lugar porque depois da alta inadimplência ocorrida a partir de abril de 1995, um número bem maior de comerciantes começou a consultar esses serviços, buscando identificar os compradores que seriam maus pagadores, evitando desse modo futuros problemas em razão da falta de pagamentos. Em segundo lugar, porque ampliou-se a instalação de aparelhos ligados ao Telecheque por toda parte, graças ao barateamento dos produtos na área de informática. Com isso, necessariamente, um maior número de consultas seria feita.

A segunda técnica é "esconder no meio do texto, ou mesmo nas últimas linhas, os dados pessimistas." Na referida matéria, como que escondido, informava-se ao leitor: "Em relação a junho, as consultas ao SPC caíram 0,6% e ao Telecheque, 7,9%". A matéria prefere destacar não a queda nas consultas em relação aos meses anteriores, mas a sua elevação com base no mesmo mês do ano anterior. Como analisa Aloysio Biondi, " julho é mês de férias, tradicionalmente fraco em vendas na capital; agosto foi marcado, desde os primeiros dias, por liquidações de inverno (devido à ‘falta de frio’), e havia o próprio Dia dos Pais. Ainda assim, as consultas ao SPC e ao Telecheque, de um mês para outro, caíram... Mas o noticiário escolheu para manchete os dados comparativos com 1996" (440) - justamente porque, segundo o jornalista, ficariam "róseos." Em outra passagem rápida da referida matéria lê-se: "Já um levantamento preliminar da Federação do Comércio realizado junto aos grandes magazines mostra que houve queda de 15% a 20% nas vendas do Dia dos Pais, comparativamente à mesma data de 1996". Contudo, mesmo dispondo da informação que mostrava o péssimo comportamento das vendas, o noticiário não hesita em afirmar na manchete: "Comércio tem o melhor Dia dos Pais em três anos".

Frente a isso, Biondi afirma que "debates teóricos empolados sobre distorções e deficiências do jornalismo econômico não servem aos interesses do leitor nem ao país. São mera cortina de fumaça para fugir do problema real, concreto: há, hoje, incrível manipulação da informação, verdadeira lavagem cerebral da sociedade. O exemplo escolhido mostra como se encobre a real situação da economia. Mas tem havido a mesma manipulação em torno de todos os grandes temas sobre os quais a sociedade precisaria estar corretamente informada: destruição da indústria, privatização, reformas, situação do funcionalismo público, sistema financeiro etc." (441)

Analisando a afirmação de que um dos maiores problemas do jornalismo seria a falta de "falta de formação" ou a "falta de conhecimentos técnicos", especialmente dos repórteres e jovens jornalistas, argumenta Biondi que isso é uma inverdade, uma outra maneira de tentar fugir ao ponto central da questão. Ele argumenta que "o exemplo do Dia dos Pais mostra que não há desconhecimento ‘técnico’ e sim, ao contrário, a intenção deliberada de esconder a verdade. Ironicamente, é essa manipulação que exige dos jornalistas, sim, conhecimento das técnicas de comunicação para impor a mentira sem que o leitor/telespectador perceba que está sendo enganado." (442)

O problema da desinformação, entretanto, não pode ser analisado considerando-se apenas os jornalistas ou as mídias. Há outros órgãos da sociedade civil que promovem a desinformação. Algumas entidades chegam a distorcer dados estatísticos, visando produzir cenários e agenciar ações que lhes sejam favoráveis, como veremos em alguns dos itens à frente.

j) Desempenho Industrial

A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, por exemplo, divulgou no final de julho de 1997 algumas estatísticas quanto ao desempenho industrial no mês anterior. Boris Tabacof, falando pela entidade, divulgou uma tese otimista, afirmando que, embora as vendas de eletroeletrônicos estivessem caindo, a indústria paulista havia crescido 3,9% em junho, em razão de que a indústria de máquinas e equipamentos estava se expandindo, graças ao crescimento na área de telecomunicações, o que estaria compensando a queda no setor dos bens de consumo. Isso, entretanto, não era verdade. Conforme Aloysio Biondi, "as próprias estatísticas fornecidas pela Fiesp mostravam que o ‘crescimento’ de 3,9% em junho foi puxado por um salto de 37% nas vendas de carros - das fábricas às concessionárias. Isto é, carros ‘empurrados’ para as revendedoras, que acumulam estoques - e reduziram as compras em julho. A transformação anunciada por Tabacof não existe." (443) Embora os investimentos da Telebrás tenham crescido muito e os fornecedores que atuam nessa área devam aumentar a produção, é preciso considerar também as importações maciças de peças e componentes, que serão realizadas.

De outra parte, as próprias estatísticas de vendas, em alguns casos, não correspondem à realidade efetiva. Assim, por exemplo, a Volkswagen e a Fiat, em concorrência por mercado no país, disputavam o signo de marca mais vendida. Como, neste caso, o signo era um elemento vital para o agenciamento de outros consumidores, engendrou-se um simulacro como expediente para alterar os índices e gerar o signo desejado. Deste modo, conforme um jornal paulista, "a Fiat vendeu mais automóveis do que a Volkswagen em junho [de 1997] no atacado. Na tentativa de reverter as estatísticas, ainda não divulgadas, a Volks vendeu ontem [ 1-07-97] cerca de 4.000 veículos com data retroativa." (444) Desse modo, embora os veículos tenham sido efetivamente vendidos em 1o de julho - quando a transação foi concluída -, formalmente eles aparecem como tendo sido vendidos em junho, inflando as estatísticas da empresa naquele mês.

k) Venda de Alimentos

Por sua vez, a Federação do Comércio de São Paulo divulgou para a imprensa uma "análise" na qual reafirmava que, desde o Plano Real, as vendas de alimentos haviam crescido 60%. Conforme Biondi isso foi uma "distorção pura: escolheram, para comparar, um mês de vendas baixíssimas, véspera do Real, quando a remarcação de preços afugentou o consumidor. O próprio ‘comunicado’ da federação traz, em letras miudinhas, a informação verdadeira: de 1992 a 1997, em cinco anos, as vendas (e o consumo) de alimentos passaram do índice 100 para 109. Isto é, em cinco anos, expansão de 10%. Nada do ‘salto’ alucinante proclamado pela entidade e repetido pela ‘banda de música’ do Real." (445)

l) O Poder de Compra da Classe Média

Analisando o aumento do lucro da Arapuã, um jornalista inadvertidamente reproduziu a versão da empresa sobre o sucesso nas vendas. A empresa apostando na especialização, decidiu - no final dos anos 80 - trabalhar somente com eletrodomésticos e eletroeletrônicos, prevendo que "... as vendas desse tipo de produto poderiam crescer a qualquer sinal de aumento do poder aquisitivo dos consumidores." Como os consumidores estavam comprando mais, a conclusão era fulminante: "Com o Plano Real e o ganho de poder de compra das classes B e C, a aposta mostrou-se correta." (446). Aqui há dois níveis: o raciocínio e o argumento. O raciocínio é esse: se a empresa teve lucros e se ela afirma que o seu lucro adviria do aumento do poder aquisitivo dos consumidores, logo, houve aumento do poder aquisitivo dos consumidores. Esse tipo de raciocínio é uma falácia clássica na lógica formal - uma vez que o nexo de causalidade entre o antecedente e o conseqüente não fica posto como necessário. Trata-se da mesma falácia que alimentou o endividamento da indústria eletrônica e que a tornou refém da ciranda financeira. Talvez uma variável importante nesse caso seja considerar o barateamento dos eletroeletrônicos em razão da atual revolução tecnológica e o surgimento de novas necessidades reais que somente podem ser supridas com essas tecnologias - do mesmo modo que ocorreu um "boom" dos cursos de informática por toda a parte. Embora seja altamente provável que tenha havido um crescimento do poder de consumo da classe B - em razão de suas aplicações no sistema financeiro -, seria preciso um levantamento de dados sobre quais segmentos são responsáveis por esse aumento de vendas dessa empresa, o que sustenta a aquisição desses produtos pelo público, o que motiva o público a adquiri-los, se a área não seria um nicho de mercado, etc. Do ponto de vista do argumento a exposição é feita de outro modo. A empresa apostou que haveria demanda pelos produtos se houvesse aumento do poder aquisitivo da população. Ora, como o Plano Real promoveu um aumento do poder aquisitivo da população, logo a empresa aumentou seus lucros. Ocorre assim uma inversão da conclusão com a segunda premissa, por isso ela é tomada com conseqüência necessária e não como uma hipótese a ser investigada.

Mais abaixo, entretanto, o argumento se altera: "O crescimento das vendas em 96 ocorreu também devido à expansão do crédito ao consumidor... As vendas financiadas da Arapuã representavam 61% do total em 95, passando para 75% do total no ano passado. A taxa média mensal de juros caiu no período de 11% para 6% e os planos de pagamento mensais, que eram de até 20 meses, passaram a ser de até 30 meses." (447) Mais que isso, dizia um representante da empresa que, "após dois ou três anos de crescimento, podemos esperar uma acomodação das vendas em 97" - sinalizando que para crescer naquele ano as redes de varejo teriam de reduzir preços. Reconhecia também que a taxa de inadimplência da empresa, que ficara entre 4% e 5% em 1996, poderia crescer em 97, mesmo com as precauções tomadas de ampliar o rigor na concessão de crédito.

Vê-se, portanto, que enquanto na primeira parte do texto o aumento das vendas comprovaria o incremento do poder aquisitivo da população, na segunda parte afirma-se que o aumento das vendas "também" se deve "à expansão do crédito ao consumidor". Como base de comparação para legitimar o argumento, tomam-se dados de 95 que são confrontados aos de 96. Seria interessante comparar com dados anteriores ao Plano Real para analisar possíveis relações entre o crescimento percentual das vendas a prazo, as taxas de juros que incidiam sobre o valor parcelado e o crescimento do lucro da empresa.

m) A Classe Média e a Competição no Setor de Serviços

O setor de serviços - planos de saúde, escolas privadas, etc - pressiona bastante o orçamento da classe média. Desde julho de 1994 este setor veio reajustando preços muito acima da inflação. Cabeleireiros, barbeiros e manicures, por exemplo, chegaram a elevar o preço de seus serviços em 160% nos dois primeiros anos Real, ficando bem acima dos 56% de inflação verificada no período. Conforme dados da Fipe, entretanto, a partir de julho de 96, esta tendência de alta começou a ser revertida. Sendo entrevistado no programa "Roda Viva", da TV Cultura, José Roberto Mendonça de Barros, secretário de Política Econômica, afirmou: "A classe média está começando a recuperar parte do que perdeu na primeira metade do plano". Isso se deve, segundo ele, ao fato dos preços dos serviços começaram a refluir em razão da competição, tanto interna quanto externa - e destacou: "Existem investidores externos até no setor de cabeleireiros" (448).

Ora, se convém salientar que finalmente alguém da equipe econômica reconheceu que algum setor da sociedade saiu perdendo com alguma fase do Real, por outro lado o argumento insiste que a concorrência externa e também interna é o que possibilitou sanar esse desequilíbrio inicial. Isso não corresponde aos dados indiciais. Um levantamento feito junto a essas empresas internacionais recém-chegadas ao país mostrou que elas cobravam ainda mais caro pelos serviços que as empresas nacionais (449). De fato o que provocou a redução de preços neste setor a partir de julho de 96 foi o aumento da inadimplência e a perda do poder aquisitivo de maior parte da população, inclusive das classes médias. Isso explica, por exemplo, que tenha havido uma pressão maior de matrículas nas escolas públicas naquele ano, uma vez que parte da classe média tirou seu filhos das escolas privadas porque não tinha mais como pagá-las.

n) O Poder de Compra da População, o Imposto Inflacionário e a Questão da Habitação

O argumento do fim do imposto inflacionário, serviu para justificar os reveses que as classes média e pobre sofreram em seus salários nas renegociações ou outras perdas no que tange aos serviços prestados pelo Estado - "o maior flagelo para a população era o imposto inflacionário". Como já analisamos anteriormente, a extensão da perda do poder de compra mensal dos recursos disponíveis ao consumidor, em razão da inflação, varia muito dependendo de seus hábitos de consumo, mas jamais atinge o valor total da inflação verificada no mês em que ele gasta seus recursos. Muitas vezes, certas análises que tentam destacar aspectos considerados como conseqüências valiosas do Plano Real, se chocam com outras análises que retomavam o signo do "imposto inflacionário".

Isso ocorre por exemplo com argumentos utilizados no mercado imobiliário - quando se afirma, positivamente, que graças ao Real existe atualmente um maior número de imóveis à disposição para locação com preços mais baixos, uma vez que a livre concorrência e as leis da oferta e da procura estão ajustando o mercado. Mais do que isso, destaca-se, por exemplo, que caiu em 1996 o número de atendimentos no Procon de São Paulo que envolviam locações, comparado-se com os anos anteriores. A livre negociação no mercado, assim, superaria os tradicionais conflitos entre locadores e inquilinos.

Contudo, como destacou a jornalista Maria Inês Fornazao, essa representação não corresponde bem à realidade. Para explicar esse aumento do número de casas e apartamentos para locação após a introdução do Plano e essa queda de atendimentos sobre locação no Procon , é preciso considerar o que realmente as provocou. Conforme argumentou a jornalista, "até junho de 94, mesmo com o ônus de suportar despesas de condomínio e IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), muitos proprietários preferiram deixar seus imóveis vazios a alugá-los por um valor, que, já no segundo mês corroído pela inflação, significaria a metade das quantias inicialmente contratadas." (450) Agora, entretanto, com a estabilidade eles passaram a alugar seu imóveis, o que aumentou a oferta.

Conforme o argumento citado, o fenômeno inflacionário, neste caso, e sob certo aspecto, era favorável aos inquilinos, ampliando a cada mês os recursos que poderiam ser gastos com outras atividades. Tendo reajustes salariais mensais e pagando um mesmo valor nominal de aluguel que era, mensalmente, corroído pela inflação, o inquilino tinha, de fato, um recurso maior para gastar com outras despesas. Os contratos buscavam estabelecer uma média, iniciando com um patamar elevado sabendo que ao final de seu período de vigência o valor real da locação estaria corroído. Contudo, mesmo assim, conforme o argumento citado, muitos proprietários não alugavam seus imóveis porque não se sentiam beneficiados pela locação.

Quando houve a conversão para o real, os valores iniciais altos para locação foram mantidos, pois temia-se o retorno da inflação, mas como não houve a corrosão mensal desses valores, os inquilinos saíram prejudicados. Com a inadimplência, muitas pessoas "passaram a procurar imóveis mais baratos, menores ou mais afastados do centro. Houve um aumento do número de moradores e famílias de rua e de favelas. Existem ainda inúmeros imóveis desocupados, apesar do preço das locações continuar caindo, adequando-se à realidade econômica e ao bolso dos consumidores." (451)

Assim, no primeiro período após o real ocorreu de fato um aumento nos aluguéis, o que prejudicou os inquilinos, que não tendo condição de pagá-los se tornaram inadimplentes, vendo cortado o seu crédito na praça. Buscando imóveis mais baratos, tiveram que se contentar com residências menores ou mais afastadas do centro, o que lhes trouxe mais transtornos com o transporte coletivo e talvez um aumento de gastos com este item. Muitos não tiveram outra alternativa senão buscar moradias em condições de subhabitação, havendo com isso um aumento do número de favelas. Também foi perceptível um aumento de famílias morando nas ruas. Como conseqüência disso tudo, ampliou-se o número de imóveis vazios, o que pressionou a queda no valor dos aluguéis. Com mais imóveis vazios, com a queda no valor dos aluguéis e com os mais pobres buscando alternativas de moradia em favelas e outras subhabitações, caiu o atendimento a questões de locação de imóveis no Procon.

Assim, o que aparece inicialmente como conseqüências positivas do Plano de Estabilização da Moeda, são, de fato, conseqüências da trágica desestruturação da vida de uma significativa parcela da sociedade. Por outro lado, o signo a ser aplicado aos que ocupam imóveis para solucionar seu problema de moradia não deve ser o de "baderneiros" - utilizado pelo discurso oficial e reproduzido pelas mídias para agenciar interpretantes desfavoráveis no restante da sociedade - mas o de "desesperançados" nas políticas governamentais, uma vez que perderam as esperanças de solucionar rapidamente o seu problema de moradia por outros meios que não o da ocupação de terrenos que são mantidos vazios nos centros urbanos para fins de especulação imobiliária.

o) Os Bancos, o Imposto de Renda e a Inadimplência

Com os bancos quebrando e o Proer os socorrendo, muitos argumentaram que em razão da inadimplência e do imposto de renda em 1996 os bancos estavam sendo pressionados e estavam reduzindo seus ganhos, tendo que "se ajustar aos novos tempos". Contudo, um estudo da empresa de consultoria Austin Asis, revelou dados surpreendentes. Segundo um jornal, comentando este estudo, "por incrível que possa parecer, os impostos e a inadimplência ajudaram os bancos em 96 a manter a rentabilidade. (...) Segundo a Austin Asis, nos primeiros nove meses de 95, a rentabilidade dos bancos foi de 10,6%, antes do IR (Imposto de Renda), e de 7%, depois. No mesmo período de 96, a rentabilidade ficou em, respectivamente, 8% e 6,7%. (...) O aumento da rentabilidade dos bancos após o IR foi fruto de dois movimentos: queda da alíqüota cobrada e compensação de valores anteriormente pagos - já que os bancos provaram, indo à Justiça, que parte dos créditos em liquidação não seria mesmo paga." (452) No fundo, o lucro do sistema financeiro continua sendo uma caixa preta para a maioria da sociedade e continuará sendo motivo para muitas controvérsias.

p) O Proer, a Caixa Econômica Federal, o Banco do Brasil e a Saúde dos Bancos.

Em 1997, a equipe econômica do governo usou a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil "para comprar ‘negócios podres’ dos grandes bancos privados (e mesmo de empresas)... O presidente da Caixa, Sérgio Cutolo, chegou a afirmar, inacreditavelmente, que estava comprando ‘ativos líquidos e rentáveis’, como as carteiras de crédito imobiliário (empréstimos para as compras de imóveis). " (453) Contudo, o resultado que se verificou depois, mostra que não se tratavam de "ativos líquidos e rentáveis". Como destacou Aloysio Biondi, "no balancete de outubro [de 1997], a CEF acusa um prejuízo de R$ 100 milhões com créditos que ela ‘absorveu’ do Banco Econômico. E esse é apenas um caso. E os milhões de mutuários inadimplentes que deviam aos bancos que a Caixa Econômica absorveu a mando da equipe FHC? Essas operações não são um crime de lesa-patrimônio público? Não mereceriam uma CPI? Ou a abertura de processo pelo Ministério Público?" (454)

q) Entrada de Capitais Externos no País

Conforme as estatísticas, a entrada de dólares no Brasil para investimentos efetivos em fábricas, compra de empresas e outros, subiu de US$ 900 em 1993 para US$ 2,7 bilhões em 1995. Mas esses números também enganam. Conforme Biondi, "até há pouco tempo, as matrizes multinacionais ‘escondiam’ o dinheiro que investiam no Brasil. Preferiam registrá-lo, no Banco Central, como empréstimos às filiais... Porque os juros dos empréstimos não pagavam, ou pagavam menos impostos... Como em 1968, grande parte dos dólares que estão entrando não significa novas fábricas e novos empregos. Destina-se à compra de empresas e fábricas já existentes. A preço de banana, por causa da recessão." (455)

r) Quebra das Bolsas: quem paga a Conta do Pacote?

Em razão da crise das Bolsas de Valores que se iniciou no final de outubro 1997 na Ásia e se propagou pelo mundo chegando ao Brasil, o governo baixou um conjunto de medidas - um pacote econômico - para enfrentar a situação. No dia 11 de novembro daquele ano, a Folha de São Paulo publicou na primeira página o seguinte título sobre o pacote econômico: "Quem paga a conta? Sociedade, 48,5%, e governo, 51,5%". O leitor imagina que ele terá de arcar, como membro da sociedade, com 48,5% dos ônus do pacote. Entretanto, quem paga a despesa do governo é a própria sociedade. Analisemos o pronunciamento do ministro Antonio Kandir, comentando as medidas: "...teremos um esforço fiscal da ordem de, pelo menos, R$ 20 bilhões. Esse esforço ao nível do governo federal será da ordem de R$ 11,8 bilhões, ao nível das empresas estatais será de R$ 4,8 bilhões e ao nível dos Estados um ganho da ordem de R$ 3 bilhões. E, no que diz respeito ao governo federal, esses R$ 11,8 bilhões são predominantemente de cortes. Os cortes no conjunto das despesas de governo federal chegarão a R$ 5,2 bilhões. Haverá uma redução de incentivos fiscais correspondente a R$ 550 milhões; um aumento de tarifas da ordem de R$ 3,1 bilhões; um aumento de contribuições de impostos da ordem de R$ 1,5 bilhão, e um aumento das receitas patrimoniais de R$ 1,3 bilhão" (456). Vê-se, portanto, que a parte do governo nesse ajuste se realiza tanto à custa de cortes em gastos - para os quais se previam recursos, em grande medida, já arrecadados através de impostos -, como também por um aumento na arrecadação futura elevando os próprios impostos, as tarifas, etc. de fato, quem pagou a conta de todo o pacote foi a sociedade.

s) O Pacote Econômico Brasileiro e a Confiança Internacional

No começo de 1998, por sua vez, a semiose hegemonizada pela equipe econômica, consultores de bancos internacionais e formadores de opinião era esta: "O Brasil já reconquistou a confiança internacional, porque adotou o pacote, ou, como se diz, está fazendo a lição de casa". Destacava, entretanto, Aloysio Biondi que a realidade objetiva era bem distinta: "As empresas brasileiras e o próprio governo não estão conseguindo renovar os empréstimos baseados em títulos (bônus) no exterior, com prazo de um ano ou mais para pagar. Tem havido apenas ‘empréstimos-ponte’, de curtíssimo prazo, para rolar as dívidas anteriores. Equilíbrio precário, que pode ser rompido da noite para o dia." (457)

t) O Pacote Econômico e o Déficit Público

Após a edição do pacote argumentava-se que ele iria reduzir o déficit do setor público e que salvaguardaria o sucesso do Plano Real. Também aqui, a realidade objetiva era outra. Diz Biondi: "As taxas de juros brutais, que não mostram tendência de queda, estão fazendo a dívida do Tesouro (e dos Estados) explodir, isto é, criando um ‘rombo’ cada vez mais insustentável. E, como não haverá recuperação da economia, a arrecadação de impostos também cairá. Moral da história: a situação do Real continua em deterioração. A economia brasileira não saiu da armadilha. O círculo vicioso persiste: juros altos, rombo, desconfiança, juros mais altos, rombo. De uma hora para a outra, o ‘mercado’ dirá ‘não’ a esse quadro." (458)

u) Os Juros que sempre estão caindo, embora sempre continuem altos.

Em janeiro de 1998 a equipe econômica, líderes empresariais e políticos e formadores de opinião repetiam: "O governo já começou a reduzir os juros, que subiram 100% em novembro para defender o Real. Isso significa que em breve a economia poderá voltar a crescer, mesmo que em ritmo modesto, reduzindo-se o desemprego". Contudo, a realidade era outra. Sobre isso, afirmou Biondi: "No leilão para venda de títulos do Tesouro (dívida interna) da última terça-feira [06-01-98], o governo foi forçado a pagar escorchantes 37,7% ao ano aos compradores (bancos, grandes aplicadores). E, no mercado futuro, as taxas de juros previstas para fevereiro e março voltaram a subir, para a faixa de 2,8% ao mês. O mercado, ao exigir juros mais altos, revela desconfiança no futuro, apesar do ‘pacote’ de ajuste." (459) Por outro lado, não há uma relação mecânica entre redução de taxa de juros e redução de desemprego, podendo haver redução da primeira sem que ocorra redução da segunda.

Vale destacar que, quando das crises mexicana e do sudeste asiático, o governo elevou acentuadamente e de uma única vez as taxas de juros - como forma de evitar fuga de capitais estrangeiros - e depois foi abaixando-as de maneira gradativa. Assim, embora todos os meses os jornais noticiassem freqüentemente quedas nas taxas de juros, elas ainda estavam em patamares superiores aos praticados antes dessas crises, tornando o Brasil recordista mundial neste item.

v) Geração de Empregos

No dia 6 de maio de 1996 o governo divulgou um documento que induzia o leitor a um equívoco sobre o nível de emprego no país. O documento, que analisava os 23 meses do Plano Real, informava as taxas de desemprego levantadas pelo IBGE nos três anos anteriores, 1993 (5,3%), 1994 (5,1%) e 1995 (4,7%), mas omitia as taxas do primeiro trimestre de 1996. Conforme os números apresentados, o desemprego estava diminuindo. Contudo, o próprio IBGE já havia divulgado uma semana antes a taxa referente ao mês de março de 1996, que apontava em 6,38% o percentual da população economicamente ativa desempregada no país, sendo o maior nível de desemprego apurado desde maio de 1992 (460). Desde então estas taxas vêm oscilando e crescendo. Assim, em janeiro de 1998 a taxa de desemprego aberto do IBGE atingiu 7,25%, o maior índice já registrado desde janeiro de 1984, como mostra a figura 2, ficando entre os nove índices mais altos desde que esta pesquisa começou a ser realizada pelo referido instituto.

 

Figura 2 - Taxa Média De Desemprego Aberto Total

Período - 1983/1998 - Mês De Janeiro

Fonte: IBGE

Estes dados desmontavam outra tese do governo, suportada em dados anteriores e em projeções tendenciais. A equipe econômica, argumentava que o desemprego elevado era um problema da região sudeste do país e que havia geração de empregos no nordeste. Contudo, uma avaliação dos dados do IBGE mostrou que também no nordeste o desemprego era elevado. Conforme a análise feita pelo referido instituto, "a taxa de desemprego aberto cresceu expressivamente em todas as regiões metropolitanas, com exceção de Salvador. São Paulo, Recife e Belo Horizonte apresentaram as variações mais significativas, com destaque para a primeira região que apresentou a maior taxa da série histórica da pesquisa, 8,51%."(461) Em outras palavras o desemprego aumentou em todas as regiões, exceto salvador, e no caso de São Paulo esta foi a taxa recorde, uma vez que o IBGE nunca levantou uma taxa superior a esta para este mês. Por sua vez, as taxas de desemprego apuradas pelo DIEESE, com outra metodologia, apontavam, para regiões metropolitanas, índices de 16,6% em São Paulo, 13,4% em Belo Horizonte e 20,1% em Recife (462).

As pesquisas mensais do IBGE sobre desemprego vem derrubando outro mito, o de que os empregos estavam diminuindo na indústria, mas aumentando no setor de serviços e comércio. Conforme o documento, anteriormente citado, deste Instituto "na análise mais detalhada do número de pessoas procurando trabalho, constatou-se que do acréscimo de dezembro de 1997 para janeiro de 1998, 40% das pessoas realizaram seu último trabalho no setor de serviços, 22% na indústria de transformação, 14% no comércio e 5,2% na construção civil."(463) Assim, dos que procuravam emprego em janeiro, segundo a pesquisa, 54% trabalharam pela última vez no setor de serviço e comércio, contra 27,2% da indústria de transformação e construção civil. Mesmo considerando-se as dispensas no comércio em razão do pós-festas natalinas ainda assim o número superava, em muito, o da indústria.

w) A Reforma Agrária e o Imposto Territorial Rural.

Após a alteração do ITR, a semiose hegemônica iniciada com Fernando Henrique Cardoso e seus ministros, e ampliada pela milionária campanha publicitária que a divulgou, afirmava que "o governo vai fazer a reforma agrária por intermédio da cobrança do Imposto Territorial Rural, que taxará a propriedade improdutiva - e, ainda, proporcionará R$ 1,3 bilhão, em dois anos, para desapropriações etc." Contudo, o ITR , conforme projeções mais sólidas iria arrecadar aproximadamente R$ 300 milhões em 1998, cerca de um bilhão de reais a menos do que dizia a campanha. (464)

x) O Apoio à Agricultura e a Safra 97/98

No início de 98 era perceptível que progressivamente vinha ocorrendo uma elevação nos preços do arroz e do milho. Entre outros vetores, especialmente climáticos, é preciso destacar que este fenômeno também esteve ligado à falta de financiamento: "Para o arroz o governo reduziu o crédito do Banco do Brasil em 75%, já no plantio da safra de 1997. A produção caiu de 13 milhões para a 10 milhões de toneladas nos anos recentes. Para o milho haverá nova queda no plantio porque os preços deram prejuízos aos produtores no primeiro semestre de 1997" (465), havendo falta de apoio do governo na comercialização da safra. Conforme Biondi, "O governo anuncia que reservou R$ 8,5 bilhões para empréstimos aos agricultores na safra 1997/98. ‘Até agora [janeiro de 98] foram liberados apenas R$ 3,5 bilhões’, diz o presidente da Ocepar, organização das cooperativas de produtores do Paraná." (466)

y) As Verbas da Saúde, a Dengue e a Mosca Branca

Em 1997 os casos de dengue no país aumentaram chegando a 220 mil, o que representou quatro vezes a incidência de 1994. Embora os fenômenos climáticos tenham agravado a situação, não se pode esquecer contudo que o combate à doença ficou extremamente prejudicado por falta de recursos. Destacou Biondi, sobre este aspecto, que houve um "retenção de verbas, com liberação de apenas R$ 26 milhões até agosto [de 1997], contra R$ 206 milhões previstos para o ano." (467)

Outro inseto que está se multiplicando de maneira danosa é a mosca branca que vem atingindo a agricultura. Conforme o jornalista, "no ano passado [1997], o ministro da Agricultura reclamava que a equipe FHC não estava liberando verba para combate à ‘mosca branca’... Agora ela já se alastrou e atinge proporções incontroláveis. Herança da ‘contenção’ de gastos da equipe FHC." (468)

z) Não Haverá mais Buracos nas Estradas em 120 dias

No dia 17 de junho de 1997, no programa de rádio "Palavra do Presidente" falando sobre as rodovias federais Fernando Henrique afirmou: "Num prazo de 120 dias, não haverá mais buracos, e as estradas estarão com faixas bem visíveis, tanto no meio quanto no lado da estrada." (469) Tratava-se de uma afirmação disparatada sem qualquer base indicial que a pudesse suportar. Dito pelo presidente, em um programa de divulgação nacional em que fala das ações do governo, isto pode ser caracterizado como uma irresponsabilidade. De fato, 120 dias após o pronunciamento as estradas federais continuavam com buracos e sem a sinalização descrita. Ao ser indagado por jornalistas sobre a sua afirmação, o presidente modificou o conteúdo propositivo de sua afirmação anterior: "Não sei disso. Não é até outubro. Eles (o Ministério dos Transportes) tinham um certo prazo. Recentemente, conversei com o ministro, que me disse que está acelerando. Como as estradas estiveram no Brasil durante muito tempo desleixadas, e nós estamos começando a recuperar, até engrenar pode haver algum atraso." Em outro momento afirmou: "Eu não quero dizer (qual é o prazo) porque não sou o ministro dos Transportes. Não quero assumir uma responsabilidade que não é diretamente minha. Mas a idéia nossa é que, havendo tudo em ordem, daria para, em 120 dias, tapar os buracos." (470) Do mesmo modo como falou das estradas, o presidente, às vezes, também falou da saúde, emprego e educação - como já analisamos em outras passagens. O que importa é gerar signos favoráveis. Às vezes, entretanto, ocorrem exageros nessas declarações e o efeito esperado não é atingido, gerando descrédito, em vez de confiança, naqueles que possuem alguma base indicial como critério avaliativo daquelas semioses.

z’) Sobre o Consumo de Frangos e Alimentos em Geral

Conforme análise das duas Pesquisas de Orçamentos Familiares realizadas pelo IBGE, entre 1987 e 1996 "houve redução de gastos com comida (de 18,72% para 16,39%). (...) Entre os produtos adquiridos para consumo no domicílio, houve uma reordenação do percentual gasto com cada elemento. (...) As reduções mais significativas ocorreram em Carnes Frescas e Vísceras (de 17,13% para 12,97%), Cereais, Leguminosas e Oleaginosas (de 5,56% para 4,22%) e Açúcares e Derivados (de 4,44% para 3,40%). Nas Carnes, todos os componentes sofreram redução; nos Cereais, destaca-se a diminuição do gasto com arroz." (471) Contudo, "cresceu o consumo per capita de alguns alimentos importantes. Quando se divide a despesa total com cada produto pelo seu preço médio, utilizando a série histórica do Sistema Nacional de Índices de Preços ao Consumidor, verifica-se a diversificação de hábitos e uma significativa elevação no consumo per capita de alguns produtos com importante valor proteico. De 1987 para 1996, o brasileiro passou a consumir mais frango (16,56%), carne bovina de segunda (6,95%), carne bovina de primeira (5,97%) e biscoitos (28,02%). No mesmo período, observa-se a redução no consumo per capita de arroz polido (-16,56%), feijão (-15,56%), farinha de trigo (-29,73%) e leite de vaca (-19,31 %). (...) Por área, é possível notar que as quedas mais acentuadas de participação do gasto com Alimentação na despesa total familiar ocorreram em Belo Horizonte (de 19,52% para 15,62%), Rio de Janeiro (de 20,85% para 17,50%), São Paulo (de 17,78% para 14,80%) e Porto Alegre (de 17,89% para 15,91%). Nas localidades onde as condições socioeconômicas são mais precárias, a parcela do orçamento gasta com alimentos permaneceu estável ou subiu ligeiramente, como os casos de Belém (de 21,65% para 22,34%), Fortaleza (de 22,63% para 23,33%), Salvador (de 21,47% para 22,80%) e Recife (de 23,55% para 23,30%)." (472)

Assim, embora houve uma queda de gastos com comida, houve o aumento do consumo de carnes e biscoitos ao mesmo tempo em que diminuiu o consumo de arroz, feijão, farinha e leite. Esta estatística entretanto é per capita. Contudo, se analisarmos essa variação por classes de rendimentos, e compararmos o desempenho entre as classes (ver tabelas 11 e 12) perceberemos que uma parcela da sociedade permanece comendo mais e melhor e passo que outra - a grande maioria - continua comendo menos e pior.

Tabela 11 - Despesa Média Mensal Familiar em Alimentação por Classes Selecionadas

de Recebimentos em moeda corrente,segundo Itens Selecionados de Alimentos - POF 1996.

Fonte: IBGE - Pesquisa de Orçamentos Familiares 1996

Assim, uma família com rendimento até dois salários mínimos gastava em média R$ 77,74 por mês com alimentação, ao passo que uma família com renda superior a 30 salários mínimos gastava em média por mês R$ 507, 96 com alimentação. Não é preciso destacar que a qualidade dos alimentos consumidos por estes dois segmentos também é distinta. Manter uma família alimentada com R$ 77,74 por mês exige selecionar alimentos de qualidade inferior ou em quantidade inferior. Conforme dados da POF de 1996, as famílias de até 2 salários mínimos gastavam em média, por mês, R$ 3,32 em arroz, R$ 2,41 em feijão, R$ 0,93 em macarrão, R$ 4,33 em leite, R$ 7,86 em pão, entre outros gastos.

Tabela 12 - Valor da despesa média mensal familiar com alimentação por classes de rendimento em moeda corrente e a participação relativa da classe no consumo total

Fonte: Pesquisas de Orçamento Familiar (1987 e 1996)

Sistema IBGE de Recuperação Automática - SIDRA 97

Com base em todos esses dados indiciais é possível, por exemplo, que um jornalista afirme estar melhor a situação da população porque ela consome mais frango, ao passo que outro venha a dizer que a situação piorou porque a população está comendo menos arroz e feijão e tomando menos leite. Ora, se ao invés de almoçar ou jantar - como tradicionalmente se fazia - uma parcela da população passe a comer sanduíches e pastéis de frango, por exemplo, os produtores de frango terão suas vendas aumentadas, mas isso não significa entretanto que a população como um todo melhorou o seu padrão de consumo. Por outro lado, se outra parcela reduz o consumo de arroz e feijão porque passou a ter uma refeição mais balanceada, isso não significa que a situação da população piorou. Do mesmo modo, se as elites aumentassem significativamente os seus canis e comprassem bem mais carne de segunda para alimentar os seus cães, aumentaria também a estatística de venda deste produto nos açougues e um comentarista desavisado poderia dizer que aumentou a quantidade de consumo per capita de carne entre os brasileiros. Na POF, entretanto, isso jamais ocorreria porque este gasto seria incluído no item específico de ração para animais.

As mídias, entretanto, exploram os signos indiciais que lhes convém. Os governos fazem peças publicitárias modelizando os signos que possam lhes agenciar interpretantes favoráveis e a maioria da população não se dá conta desses expedientes semióticos adotados.

z’’ ) Sobre o Fundo Social de Emergência

A aprovação do Fundo Social de Emergência, logo após a introdução da moeda Real, criou a impressão de que se tratava de um fundo com recursos facilmente disponíveis para gastos sociais, uma vez que fora criado para aplicação "no custeio de ações do sistema de saúde e educação, benefícios previdenciários e auxílios assistenciais" (473). Na verdade, contudo, para constitui-lo retiravam-se recursos de fins sociais - da saúde, da educação e de políticas sociais - bem como de impostos, com a única finalidade de garantir a estabilização monetária através da estabilização fiscal. Isto significava disponibilizar recursos ao governo para pagar as taxas de juros altas que ampliavam o capital dos grandes investidores no sistema financeiro. Assim, retirava-se dinheiro da saúde e educação para pagar juros a especuladores e chamava-se a fonte indireta desse repasse de recursos de "Fundo Social de Emergência". Entendamos bem. O governo diretamente retirava dinheiro de outras áreas para pagar os juros da dívida interna e depois retirava o dinheiro do Fundo Social de Emergência para cobrir essa áreas. Assim foi que recursos deste fundo acabaram sendo utilizados para recepção de autoridades estrangeiras, compra de flores para enfeites de cerimônias governamentais, pagamentos de despesas com viagens, etc. Dele saíram recursos para: "comprar cristais para o presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton", quando de sua visita ao Brasil; para confeccionar bandeiras que foram levadas na viagem do presidente ao Reino Unido, quando lá recebeu um título Honoris Causa; para comprar caixas de madeiras forradas em veludo, com a finalidade de "acondicionar presentes para autoridades estrangeiras"; para revisar um aparelho de cinema localizado no Palácio do Jaburu, que é a residência oficial do vice-presidente do país, Marco Maciel; além de custear compra de tampa de vaso sanitário, papel de alta alvura para convites, etc. Também os diplomatas se valeram dos recursos do fundo Social de Emergência, gastando R$ 22 mil para os "eventos do Dia do Diplomata" em 1995. Com esses R$ 22 mil, seria possível pagar cerca de 9.000 consultas ambulatoriais, pelo preço da época, na rede pública de saúde. Por outra parte, um coquetel no Itamaraty, por ocasião de inauguração da mostra "Arte Moderna Brasileira" (que é uma seleção da coleção particular de obras de arte de Roberto Marinho), também foi custeado com dinheiro do Fundo Social de Emergência. Os recursos gastos naquele coquetel, R$ 8.500, poderiam pagar 4.000 consultas médicas realizadas na rede pública de saúde (474).

A Procuradoria Geral da República, por sua vez, enviou dois ofícios a Pedro Malan, solicitando esclarecimentos acerca de gastos deste tipo com recursos do FSE. O governo, então, editou uma portaria para evitar que os ministérios gastassem recursos do FSE pagando despesas administrativas como "reforma de gabinetes, compra de doces e flores para atos oficiais, festas do Itamaraty", entre outras (475).

Embora o montante de recursos utilizados nesses itens relacionados acima seja irrisório em relação ao montante de recursos do FSE - que em 1995 seriam de R$ 21 bilhões (476) - eles servem para ilustrar como este signo foi utilizado para acobertar um expediente de liberar recursos para cobrir outras despesas do governo que nada tinha a ver com social ou emergencial. Frente a estas denúncias, o porta-voz do governo afirmou que despesas, como as que citamos, feitas com recursos do Fundo Social de Emergência eram um "artifício contábil" e que os valores a elas referentes seriam "repostos integralmente" (477). Posteriormente esse fundo transformou-se no Fundo de Estabilização Fiscal, dando autonomia para o governo valer-se dele como fosse conveniente para o equilíbrio de suas despesas.

 

19. O caso do Orçamento de 1996 e o Tribunal de Contas da União

O caso da aprovação das contas do governo em 1996 foi motivo de muita polêmica. O processo todo envolveu quatro fases. Na primeira, o TCU - órgão vinculado ao poder legislativo - reprovou as contas do governo referentes aos gastos sociais. Em seguida, o governo afirmou que o TCU se equivocara ao analisar os gastos governamentais e promoveu uma campanha de marketing para comemorar o terceiro ano do Real. No terceiro momento, o relator, na Câmara Federal, que deveria dar o parecer sobre as contas do governo - que é do próprio PSDB -, desmentiu afirmações de Fernando Henrique e sua equipe sobre os gastos sociais. Os aliados do presidente, por sua vez, rejeitaram as observações do relator e aprovaram as contas. Por fim, ficou esclarecido que o governo realmente gastou menos na área social que no ano anterior, embora o corte nos gastos não fosse da ordem que o TCU apontara inicialmente.

No dia 10 de junho o Tribunal de Contas da União apreciou o relatório de contas do governo para o ano de 1996, ficando a aprovação ou rejeição das mesmas a cargo do Congresso Nacional. Conforme o TCU ocorrera um significativo corte nas verbas para a área social. No início do ano, o TCU já havia divulgado um relatório acusando o governo de reduzir em 12,55% as verbas destinadas a educação e cultura e em 51,86% as despesas com saúde e saneamento (478).

Fernando Henrique, valendo-se então da mídias, reagiu prontamente: "Eu pedi aos ministros da Saúde e da Educação que me façam uma representação para eu representar ao presidente do TCU, porque há funcionários do TCU que não estão à altura de lá estar. Eles estão passando para a opinião pública dados errados" (479). Quanto às despesas, disse o presidente: "O gasto da Saúde. Pode ver lá no livrinho meu ‘Mãos à Obra’. Aumentou sensivelmente. Está errado o relatório do TCU." (480)

Os representantes do governo argumentavam que o TCU se equivocara ao contabilizar gastos com o ensino primário em 95 - que não é atribuição da União - no total dos recursos da área de educação e posteriormente compará-los com os gastos realizados na área em 1996. Argumentava-se também que na Saúde havia ocorrido algo semelhante (481).

O engano maior do TCU na avaliação das contas de 96, entretanto, ocorreu porque o Tribunal baseou-se "em números errados fornecidos pelo próprio governo" (482), uma vez que o Balanço Geral da União de 95, usado pelo Tribunal para comparar os gastos sociais do governo em 96, estava equivocado. Aqueles dados não correspondiam às informações disponíveis Sistema Integrado de Administração Financeira - que é uma base pública de dados.

Posteriomente o senador Jefferson Peres (PSDB-AM), relator incumbido de examinar as mesmas contas já com o parecer do TCU e as defesas governistas, afirmou, em seu relatório apresentado à Comissão do Orçamento no Congresso, que a redução de gastos sociais feitos pelo governo não havia atingido o montante anteriormente anunciado pelo TCU, mas salientou que havia ocorrido de fato uma "redução real da aplicação de recursos federais nas esferas de saúde e saneamento, educação e cultura". (483) Conforme o senador, o governo reduziu as verbas destinadas à saúde e ao saneamento em 10,3% em 1996 em relação ao ano anterior. Na área de educação e cultura, a redução seria de 8,6% no mesmo período. (484). No relatório, escreveu o senador: "A um governo engajado na social-democracia não cabe esse tipo de política (de corte na área social). Ainda mais quando se considera que a priorização dessas áreas foi objeto da campanha eleitoral do senador Fernando Henrique Cardoso" (485). Em números absolutos, a verba para saúde e saneamento caiu de R$ 16,421 bilhões em 95 para R$ 14,730 bilhões em 1996; nas áreas de educação e cultura, as verbas diminuíram de R$ 10,181 bilhões para R$ 9,304 bilhões. A proporção dos percentuais se deve à inflação do período. O relatório indicava ainda que o governo descumpriu as exigências constitucionais ao não aplicar no ensino fundamental e na educação infantil de crianças até seis anos, a metade dos recursos que estavam vinculados à educação. O governo aplicou apenas 37% das verbas da educação no ensino básico (486).

Um estudo da Assessoria da Comissão de Orçamento do Congresso concluiu, então, conforme os jornais, que "o relatório do TCU sobre contas da União estava errado no varejo, mas certo no atacado: FHC diminuiu os gastos sociais em 96." (487) De fato, em números absolutos, o governo havia gasto na Saúde R$ 14,9 bilhões em 95, sendo que em 96 o gasto caíra para R$ 14,4 bilhões. Considerando-se, contudo, a inflação do período, concluiu-se que havia ocorrido uma queda real de 16,3%. Na Educação, percebeu-se a mesma coisa. Os gastos passaram de R$ 9,07 bilhões em 1995, para R$ 9,15 bilhões em 1996. Contudo, considerando-se a inflação ocorrera uma queda real de 12,25% nos recursos investidos nessa área. (488)

Enfrentando esta situação semioticamente adversa, o governo iniciou uma campanha de marketing, em comemoração ao terceiro ano do Plano Real, divulgando dados sobre o desempenho do governo na economia e nas políticas sociais. De fato, buscava-se esvaziar as críticas feitas ao governo referentes à implementação de seu orçamento (489).

Contudo um acordo conseguido junto às lideranças dos partidos governistas possibilitou que, no dia 13 de novembro de 1997, a Comissão de Orçamento do Congresso aprovasse o relatório sem alterações, retirando-se as ressalvas anteriormente feitas por Peres. Como escreveu o jornalista Oswaldo Buarim Jr. "o líder do governo no Congresso, senador José Roberto Arruda (PSDB-DF), disse que não aceitou as ressalvas porque o relatório de Peres serve a ‘flagrante uso eleitoral’ pela oposição a FHC." (490) Assim, se o governo infringe a constituição ao desrespeitar as diretrizes do orçamento da União, se fica comprovado tecnicamente - pelos cálculos da Assessoria da Comissão do Orçamento do Congresso - que tal infração ocorreu e, pior do que isto, que os erros na avaliação do TCU, em parte, se deviam à consideração de dados equivocados que foram publicados pelo próprio governo sobre o período anterior, a conclusão à qual se chega é que não se deve sequer ressalvar esses fatos no relatório, pois isso seria um desserviço às pretensões eleitorais de Fernando Henrique Cardoso a um segundo mandato presidencial. Este é um bom exemplo do "simulacro de democracia" em que, formalmente, o relatório foi votado, respeitando-se o rito estabelecido e sendo aprovado por maioria. Nas propagandas governamentais, por sua vez, confirmava-se a preocupação federal com as políticas sociais. A bancada de sustentação do governo não poderia, em contrapartida, conceder um capital semiótico tão valioso à oposição, isto é, reconhecer que o governo não pratica aquilo que anuncia na publicidade. Burla-se, portanto, a democracia substancial para evitar-se a geração de um signo (aprovação do relatório com ressalvas) modelizando outro signo (as ressalvas produzidas por um senador do partido do presidente) que poderia ser posteriormente modelizado novamente pelas oposições durante a campanha eleitoral.

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NOTAS: 

365. Marilene FELINTO. "Cada governo tem Jornal Nacional que merece". Folha de São Paulo, 21-05-96, p. 3-2

366. Ibidem

367. Folha de São Paulo, 31-05-96, p. 1-1

368. Irineu MACHADO. "Em Cambridge, FHC é comparado a César". Folha de São Paulo, 05-12-97, p. 1-6

369. Ibidem

370. Clóvis ROSSI. "Presidente pede desculpas". Folha de São Paulo, 04-12-97, p. 1-4

371. Clóvis ROSSI. "Intelectuais cobram reforma agrária". Folha de São Paulo, 14-02-98, p. 1-10

372. Ibidem

373. Clóvis ROSSI. "Na Itália, FHC faz críticas ao ‘atraso’ dos partidos". Folha de São Paulo, 14-02-97, p. 1-9

374. Clóvis ROSSI. "FHC passa mal ao defender nova democracia radical". Folha de São Paulo, 04-12-97, p. 1-4

375. Conforme denúncias, que levaram à posterior condenação pela justiça de Paulo Maluf, Celso Pitta e Wagner Ramos, os três participaram no desvio de R$ 1.229.805.353,36, entre os anos de 1994 a 1996. O dinheiro, ao invés de ser utilizado no pagamento de dívidas da Prefeitura foi reunido em caixa único, sendo desviado para custear despesas que haviam sido contraídas com obras públicas. As penas impostas pelo juiz da 9ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, Venicio Antonio de Paula Sales foram: a perda dos direitos políticos por quatro anos a todos eles, a cassação do prefeito Celso Pitta, uma multa equivalente a 80 vezes o valor que os três receberam como remuneração enquanto trabalharam na prefeitura da cidade, além de ficarem proibidos de realizar contratos novos com órgãos públicos. Evidentemente, os três entraram com recurso junto a uma instância superior. Cf. "Maluf e Pitta são condenados por caso dos Precatórios - Os dois perdem seus direitos políticos, mas podem recorrer" Brasil On Line, AJB 02/03/98 22h34

376. Carlos Eduardo ALVES. "Maluf vai para o Oriente Médio". Folha de São Paulo, 20-03-97, p.1-8

377. Ibidem

378. "O efeito-máquina". Revista Veja, 14-09-94, p. 39

379. Andrei MEIRELES e Mino PEDROSA . "Serjão sai de cena - Ministro vai à Europa e FHC decide colocá-lo na geladeira para esfriar crise", Isto É, 21-05-97

380. José Luis FIORI. "Zelig ou uma estratégia presidencial". Folha de São Paulo, 19-01-97, p. 5-3

381. Ibidem

382. Ibidem

383. Ibidem

384. Ibidem

385. William KRISTOL apud Ibidem

386. "Órgão da CNBB fez acusação ‘falsa’, diz Planalto". Folha de São Paulo, 15-04-97, p. 1-12

387. Ibidem

388. Conforme este estudo, o dólar comercial que valia R$ 1,1080 para a venda em 14/11/97, poderia valer R$ 1,66 se fosse corrigido pelo IPC da Fipe, R$ 1,55 se corrigido pelo IGP-DI, R$ 1,41 considerando-se o IPA do IGPI-DI, ou R$ 1,24 se corrigido pelo IPA industrial do IGP-DI, ou ainda R$ 1,28 se ele fosse ajustado pelo índice Funcex para dólar/real. A minibanda em vigor, então, era de R$ 1,1055 a R$ 1,1105 e a banda larga era R$ 1,05 a R$ 1,14. Cf. Gabriel J. de CARVALHO. "Dólar ‘ideal’ valeria de R$ 1,24 a R$ 1,66". Folha de São Paulo, 16-11-97, p. 2-3

389. Gabriel J. de CARVALHO. "Dólar ‘ideal’ valeria de R$ 1,24 a R$ 1,66". Folha de São Paulo, 16-11-97, p. 2-3

390. Fonte das cotações: jornal O Estado de São Paulo: 02/03/93, Economia, p.1; 02/03/94, p.B-3; 02/03/95, p. B-1; 02/03/96, p. B-1; 04/03/97, p. B-1. Trata-se da cotação praticada no mercado no primeiro dia útil do mês de março para cada ano. Abreviações associadas ao dólar: cc - comercial para compra; cv - comercial para venda; pc - paralelo para compra; pv - paralelo para venda; cvci - valor do dólar corrigindo-se, aproximadamente, o câmbio pela inflação segundo o IPC-Fipe.

391. Tomamos como referência para dimensionar esses gastos a POF de 87 considerando a despesa mensal média familiar para a classe de recebimento até dois salários mínimos, onde consta alimentação (45%), moradia (14%) e transporte (6,31%), que são os três itens que mais pesam no orçamento desta classe.

392. Em 1997, por exemplo, o Brasil alcançou os Estados Unidos na taxa de alumínio reciclado. Isso ocorreu principalmente porque nos dois últimos anos, em razão do desemprego, dobrou o número de catadores ambulantes de latinhas vazias, como afirmou José Roberto Giosa, coordenador da comissão de reciclagem da Associação Brasileira de Alumínio e que também é diretor da maior empresa fabricante de latas de alumínio no país, a Latasa. Cf. Mario Cesar CARVALHO. "Miséria alimenta indústria da reciclagem". Folha de São Paulo, 14-12-97, p.3-5

393. Cristiane Perini Lucchesi. "Salários deixam de acompanhar inflação". Folha de São Paulo, 20-04-96, p. 2-3

394. "Constituição da República Federativa do Brasil". Editora Saraiva, 2a edição, 1989.

395. Marcelo OLIVERIA. "Testemunhas acusam PM de forjar bombas". Folha de São Paulo, 23-05-98, p. 3-4

396. André LOZANO. "Área teve alteração para perícia". Folha de São Paulo, 27-05-97, p. 3-3

397. Esta pesquisa refere-se, basicamente, a todos os jornais publicados pela Folha de São Paulo nos anos 1994, 1995, 1996 e 1997, disponibilizados em uma biblioteca digital, com acesso através das Internet.

398. Folha de São Paulo, 09-05-97, p. 2-11; 16-05-97, p.1-16.

399. Folha de São Paulo, 27-08-96, p.1-13; 09-05-96, p. 3-2; 20-04-96, p.1-10; 18-01-96, p.3-1

400. Folha de São Paulo, 10/11/95, p.1-12; 28-06-95, p.3-3; 07-03-95, p.3-4

401. "Pedindo sigilo, ruralistas dizem ter um arsenal de armas, como carabinas e escopetas, além de cães, coquetéis Molotov - bomba incendiária caseira - e lunetas, para observar os movimentos dos sem-terra na área." Cf. José Ernesto CREDENDIO e Edmilson ZANETTI "MST e UDR disputam poder no Pontal". Folha de São Paulo, 17-08-97, p. 1-17

402. Folha de São Paulo, 15-07-97, p. 3-4; 18-07-97, p.1-2; 08-08-97, p.3-8; 09-08-97, p.3-1; 19-12-97, p.3-5; 29-12-97, p.1-1

403. Gabriel J. de CARVALHO. "Aluguel se estabiliza, mas a inadimplência aumenta." Folha de São Paulo, 19-05-96, p. 2-14

404. "Ações de despejo crescem 49% em SP" Folha de São Paulo, 04-07-96, p. 2-5

405. Gabriel J. de Carvalho. "CEF já tem 20 mil imóveis retomados". Folha de São Paulo, 23-02-97, p. 2-1

406. Altair THURY FILHO e Laura CAPRIGLIONE. "A voz rouca da ordem - Cai a popularidade e FHC reage com discurso astuto para esconder a reeleição" Revista Veja, 28-05-1997, p. 26-29 e Jornal Nacional, Rede Globo, 21 de Maio de 1997

407. Telejornal Brasil, 22 de maio de 1997

408. Conforme a Folha de São Paulo, outra frase polêmica teria sido a seguinte: "Ocupem os terrenos baldios que estão lá só para especulação imobiliária. Se organize e pressione, faça manifestações na frente da Fiesp, na frente das fábricas que estão fechando pela política econômica do governo. E, se tiver fome, faça manifestação na frente dos supermercados". Fernanda da ESCÓSSIA. "Stedile é absolvido de incitar invasões". Folha de São Paulo, 06-05-98, p.1-9

409. Na continuidade daquele bloco de notícias analisou-se a queda de popularidade de Fernando Henrique, que entretanto se manteria ainda em níveis similares aos do mesmo período no ano anterior, informou-se sobre a tentativa de instituir uma CPI para apurar a compra de votos e paralisar a votação da emenda constitucional. Faltavam ainda 90 assinaturas para que uma CPI se instalasse, mas esse número, posteriormente, não chegou a ser alcançado.

410. Altair THURY FILHO e Laura CAPRIGLIONE. "A voz rouca da ordem - Cai a popularidade e FHC reage com discurso astuto para esconder a reeleição" Revista Veja, 28-05-1997, p. 26-29

411. Ibidem

412. Fernanda da ESCÓSSIA. "Stedile é absolvido de incitar invasões". Folha de São Paulo, 06-05-98, p.1-9

413. "O que diz a lei". Folha de São Paulo, 06-05-98, p. 1-9

414. "Leia o discurso do presidente na posse dos dois novos ministros". Folha de São Paulo, 23-05-97, p. 1-5

415. William FRANÇA. "FHC prega ‘basta’ a ‘clima de baderna’ e critica o MST" 23-05-97, p.15

416. "Leia o discurso do presidente na posse dos dois novos ministros". Folha de São Paulo, 23-05-97, p. 1-5

417. MAURO ZAFALON. "Inflação cai, mas o desemprego cresce". Folha de São Paulo, 30-06-96, p.1-12 "As vagas na indústria continuam sendo fechadas. O Plano Real, que no início reverteu a tendência de queda no nível de emprego, provocou aceleração do desemprego a partir do segundo semestre de 95. Em média, foram fechadas 10,5 mil postos por mês no Real."

418. Fernando ESCÓSSIA. "40% das crianças do país são pobres". Folha de São Paulo, 18-11-97, p.3-1

419. "Menino troca escola por vendas". Folha de São Paulo, 18-11-97, p. 3-1 e "Governo destina poucas verbas" . Folha de São Paulo, 18-11-97, p. 3-1

420. Bruno BLECHER. "Pronaf favorece regiões mais desenvolvidas". Folha de São Paulo,16-12-97, p. 1-6

421. "Em MG, pesquisa acusa distorção". Folha de São Paulo, 16-12-97, p. 1-6

422. Emanuel NERI e Vinicius Torres FREIRE. "Livro com planos de FHC é ‘falso’ - Volume da TV trata do sobrenatural". Folha de São Paulo, 31-08-94, Especial, p.1. Conforme os jornalistas: "O plano de governo que Fernando Henrique Cardoso exibe nos seus programas no horário eleitoral gratuito é tão falso quanto as notas de real que aparecem em novelas de TV. A capa do volume ‘Mãos à Obra, Brasil - Proposta de Governo - Fernando Henrique’ envolve as 230 páginas de ‘A Natureza das Coisas - A vida secreta dos objetos inanimados’, de Lyall Watson (Editora Cultrix, R$ 10). (...) O PSDB ainda não apresentou todo seu plano de governo - é o último dos favoritos à disputa presidencial a fazê-lo. Em seus programas de TV mais recentes, FHC brande o livrinho e o folheia, explicando o que seria seu eventual governo. Em ‘A Natureza das Coisas’, Watson pretende mostrar que ‘as coisas, mesmo as totalmente inorgânicas e inanimadas, às vezes se comportam como se fossem vivas e, de raro em raro, até sensíveis’. Para tanto, Watson conta casos como o do carro ‘fujão’. Em 1978, uma costureira foi desligar os faróis de um carro em Illinois (EUA). Assim que ela botou a mão na fechadura, o carro vazio deu a partida. A polícia seguiu o carro, que acabou cometendo ‘suicídio’, batendo de frente em um caminhão. O policial que perseguiu o fujão teria dito: ‘Foi uma coisa parecida com aqueles filmes estranhos de satanás’". Este era o livro que Fernando Henrique exibia na TV como se fosse o seu Plano de Governo. Assim, o simulacro das mídias encobre a realidade efetiva modelizando um signo - a imagem do livro exibido na tela - como representante de algo que não existe agenciando interpretantes para este ente imaginário como se ele efetivamente existisse. O imaginário passa a ser considerado como efetivo em conseqüência da semiose publicitária desenvolvida.

423. Elio GASPARI. "FFHH não viu a baderna tucana". Folha de São Paulo, 25-05-97, p. 1-15

424. Ibidem

425. "O efeito-máquina". Revista Veja, 14-09-94, p.36

426. "Leia o discurso do presidente na posse dos dois novos ministros". Folha de São Paulo, 23-05-97, p. 1-5

427. Recolhemos neste ítem, entre outros elementos, várias analises realizadas pelo jornalista econômico Aloysio Biondi em alguns de seus artigos.

428. Aloysio BIONDI. "A Alegre Dança das Estatísticas Enganosas", Folha de São Paulo, 11-06-96, p. 2-2

429. Ibidem

430. Ibidem

431. "O El Niño deste ano está assustando os meteorologistas por dois motivos. O fenômeno foi detectado precocemente e, desde o início, tem apresentado grande vigor". "No Brasil, as regiões mais afetadas costumam ser o Nordeste, com a intensificação da seca, e o Sul, onde podem ocorrer chuvas em excesso." Cf. Marcos PIVETTA. "El Niño pode ser o maior do século - Cientistas dizem que efeitos do fenômeno podem se prolongar até 98; no Brasil, Sul e Nordeste são mais afetados". Folha de São Paulo, 28-08-97, p. 3-4

432. Aloysio BIONDI. " ‘Seus três filhos morreram. A senhora está triste?’ ". Folha de São Paulo, 23-10-97, p. 2-2

433. Ibidem

434. Fátima BERNARDES. "Alto estoque eleva dívida da indústria". Folha de São Paulo, 03-08-97, p. 2-15

435. Ibidem

436. Aloysio BIONDI. "Reação nas vendas de Natal? Invencionice". Folha de São Paulo, 15-01-98, p.2-2

437. Ibidem

438. Ibidem

439. Aloysio BIONDI. "A manipulação do jornalismo econômico". Folha de São Paulo, 28-08-97, p. 2-2

440. Ibidem

441. Ibidem

442. Ibidem

443. Aloysio BIONDI. "Lideranças empresariais e equipe FHC, a conspiração". Folha de São Paulo, 07-08-97, p. 2-2

444. Folha de São Paulo, 2-07-98, p. 2-2

445. BIONDI. "Lideranças empresariais..."

446. Mauricio ESPOSITO. "Lucro da Arapuã é maior". Folha de São Paulo, 10-07-97, Especial, p. 6

447. Ibidem

448. Arthur PEREIRA FILHO e Mauro ZAFALON. "Tabela de serviços resiste à concorrência". Folha de São Paulo, 13-07-97, p. 2-14

449. Ibidem

450. Maria Inês FORNAZAO. "Área de habitação no Procon-SP". Folha de São Paulo, 09-02-97, p. 7-2

451. Ibidem

452. "Efeito Contrário". Folha de São Paulo, 09-01-97, p.2-2

453. Aloysio BIONDI. "O que eles dizem e a realidade". Folha de São Paulo, 08-01-98, p.2-2

454. Ibidem

455. BIONDI. "A Alegre Dança das Estatísticas Enganosas". Talvez tenha ocorrido algum erro de impressão com a cifra U$ 900, apresentada na matéria. O que interessa-nos resgatar, contudo, é a falácia do argumento, bem apresentada pelo jornalista.

456. " ‘A característica dessas medidas é que são realizáveis’, diz Kandir". Folha de São Paulo, 11-11-97, Caderno Especial, p.7

457. BIONDI. "O que eles dizem e a realidade"

458. Ibidem

459. Ibidem

460. "Desemprego cai, diz texto do Planalto". Folha de São Paulo, 07-05-96, p.1-4

461. IBGE "Pesquisa Mensal de emprego - Estimativa para o mês de Janeiro de 1998" http://www.ibge.gov.br/informacoes/indices/pmec0198.htm

462. Vandeck SANTIAGO. "Desemprego entre recifenses supera 20%, constata o Dieese". Folha de São Paulo, 11-03-98, p.2-1

463. IBGE "Pesquisa Mensal de emprego..."

464. BIONDI. "O que eles dizem e a realidade"

465. BIONDI. "Reação nas vendas de Natal? Invencionice"

466. Ibidem

467. Ibidem

468. Ibidem

469. Carlos Alberto de SOUZA. "FHC rejeita responsabilidade por estradas". Folha de São Paulo, 17-10-97, p. 1-6

470. Ibidem

471. IBGE. "Pesquisa de Orçamentos Familiares..."

472. Ibidem

473. Alexandre SECCO e William FRANÇA. "Desvios nos gastos de fundo continuam". Folha de São Paulo, 04-05-95, p. 1-4

474. Alexandre SECCO. "Governo pagou coquetel com verba do fundo social - Recepção no Itamaraty inaugurou exposição da coleção de Roberto Marinho". Folha de São Paulo, 19-05-95, p. 1-4

475. "Governo agora quer dar destino social ao fundo" Folha de São Paulo, 12-05-95, p.1-6

476. Ibidem

477. SECCO e FRANÇA. "Desvios nos gastos de fundo continuam"

478. Oswaldo BUARIM JR. "Senador do PSDB diz que FHC cortou gastos sociais". Folha de São Paulo, 21-10-97, p.1-4

479. "Presidente afirma que três ministérios serão extintos". Folha de São Paulo, 17-06-97, p.1-5

480. Ibidem

481. Folha de São Paulo, 17-06-97, p. 1-4

482. Ibidem

483. BUARIM JR. "Senador do PSDB diz..."

484. Ibidem

485. Ibidem

486. Ibidem

487. "Dança dos números". Folha de São Paulo, 20-06-97, p. 1-4

488. Ibidem

489. Folha de São Paulo, 12-06-97, p. 2-6

490. Oswaldo BUARIM JR. "Comissão retira ressalvas de contas de FHC". Folha de São Paulo, 14-11-97, p.1-14